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Memória Social em fragmentos: o poder das encruzilhadas e a museologia em ação

Mario de Souza Chagas*

Ilustração Patricia Brandstatter
ilustração: Patricia Brandstatter

 

"Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir."
José Saramago


I
A deusa da memória, aquela que tem o poder de produzir e evitar o esquecimento, é conhecida na mitologia grega como Mnemosine. A existência da deusa confirma-se na relação com o outro, com seus pais (Urano e Gaia), com suas cinco irmãs (Teia, Reia, Têmis, Febe e Tétis), com seu sobrinho e amante (Zeus), com suas nove filhas (Musas) e com os seres mortais que a cultuam e cantam.

Na atualidade, a memória, do ponto de vista das ciências humanas e sociais, é tratada como um conceito ou uma prática social impregnados de afetividades e subjetividades e que, por isso mesmo, existem em relação. Eis um bom ponto de partida: a memória e o esquecimento não existem por si, ambos existem em relação; no entanto, sem eles não há existência humana possível.

Inspirado em conferência ministrada pela professora Margarida de Souza Neves quero sugerir que a primeira frase do primeiro verbete do primeiro volume da Enciclopédia Einaudi, publicada em Portugal, na cidade do Porto, em 1985, seja considerada como uma chave especial. O verbete denomina-se “Memória” e foi escrito por Jacques Le Goff. A frase diz o seguinte: “O conceito de memória é crucial”.

Aqui o crucial é compreendido como uma referência à cruz e à encruzilhada da memória, por onde passam diversas linhas conceituais e práticas.

A imagem que ilustra este artigo, lembrando a íris do olho humano e a escultura de Marcel Duchamp, parte da crucialidade do conceito de memória e chega à compreensão de sua complexidade e presença multifacetada no mundo (in-mundo).

II
Pela encruzilhada da memória passam a memória e o esquecimento, é impossível separá-los. Onde há memória, há esquecimento. Toda e qualquer política de memória, é política de esquecimento. Passam pelo mesmo caminho o coletivo e o individual. Há uma dimensão coletiva da memória, assim como uma dimensão individual. Além disso, mesmo que a memória seja social, é o indivíduo quem lembra. Pela encruzilhada da memória passam a identidade e a diferença, a permanência e a mudança. Os processos identitários implicam prática que leve em conta as diferenças; assim como a percepção da mudança depende da noção de permanência. Se tudo fosse apenas mudança e se tudo mudasse ao mesmo tempo e na mesma direção não haveria sequer condições de se perceber a mudança.

A preservação e a deterioração também passam pela encruzilhada da memória. A preservação está para a memória assim como a deterioração para o esquecimento. Deterioração e esquecimento fazem parte da dinâmica da vida social. Síntese: toda e qualquer política de preservação leva em si o seu oposto.

A crucialidade da memória permite a compreensão de que por ela também passam a liberdade e a tirania, o poder e a resistência. A memória não tem valor em si, não é positiva ou negativa, não expressa verdade ou mentira e, por isso mesmo, tanto pode servir à libertação quanto à tirania; tanto pode estar ao serviço do poder repressivo do estado quanto a favor da sociedade e do poder criativo de indivíduos e coletivos.

É possível também falar em memória voluntária e involuntária, em memória fixa e em memória volátil, em memória do corpo e em memória da alma, em memória afetiva e em memória cognitiva, tudo isso aponta para a crucialidade da memória.

O conceito de memória é mesmo crucial. Por ele passam o tempo e o espaço, o passado e o presente, o presente e o futuro. Há uma memória do espaço, assim como uma memória do tempo. Se por um lado habitamos o espaço, por outro, o espaço nos habita. Construímos memórias no tempo e o tempo constrói memórias em nós. Por mais que a memória esteja fundeada no presente, não se pode negar a sua articulação com o passado, nem o seu desejo de se projetar no amanhã, no futuro do agora.

Pela cruz e pela encruzilhada da memória passam a memória e a história, a repetição e a criação. A história é o reino do desejo de precisão, ela quer ser ciência, racional; a memória aceita a aventura, o impressionismo, o voo do impreciso. A repetição e a criação dependem inteiramente da memória. Repetir pode ser criar e também pode significar a impossibilidade da criação, tudo depende da consciência da repetição e do que se pretende com ela. A criação no campo da arte, da magia, da ciência, da técnica e da política depende inteiramente da memória.

 

III
A percepção do novo e do velho passa pela memória. Um objeto musealizado, como uma espevitadeira, por exemplo, mesmo tendo mais de cem anos poderá ser absolutamente novo para quem não o conhece e poderá ser fonte de inspiração. Além de tudo isso, ainda passa pela encruzilhada da memória a revolução e a conservação. A memória pode ser conservadora, mas também pode ser revolucionária. Uma saturação de memórias, informações, técnicas, tecnologias, conhecimentos e acessos; associada à experiências repressivas, abusivas, exploradoras e desrespeitosas, por exemplo, pode provocar uma explosão libertadora. Memória, tensão, crise, explosão. A favor desse argumento apresenta-se a reflexão de Jacques Le Goff que finaliza o verbete citado: “A memória até então acumulada vai explodir na Revolução de 1789: não terá sido ela o seu grande detonador?”.

 

IV
A narrativa que aqui se oferece movimenta-se na encruzilhada entre a criação e a resistência e tem a intenção de fortalecer o diálogo com e o exercício de uma nova imaginação poética (potência de criação) e também política (potência de resistência) em articulação com os movimentos sociais e com a afirmação da arte, da filosofia e da ciência colocadas a favor da celebração da potência da vida.

 

V
“A memória é uma ilha de edição”. Este verso-poema de Waly Salomão opera uma extraordinária síntese e propicia a compreensão de que a memória é construção social e, como tal, é construtora de sociabilidades e subjetividades. Este poema também conduz ao rápido entendimento de que a memória não é total, ao contrário, é sempre seletiva e formada por fragmentos, vestígios, sobejos e retalhos com os quais se compõem narrativas épicas, líricas, trágicas, cômicas e científicas. A memória inscrita no corpo é uma ilha de edição e, por isso mesmo, segue jogando o jogo de capturas e movimentos de fuga, de manipulações e emancipações, de tiranias e liberdades.

O verso-poema iluminado pela luz do cinema ilumina a compreensão: a memória está (ou pode estar) no campo das relações e das lutas e está habilitada para mobilizar afetos, representações, direitos, devires e compromissos.

 

VI
A potência de criação e a potência de resistência estão presentes em iniciativas de memória e museus sociais que podem ser inspiradores. Apresento de um modo muito breve quatro iniciativas localizadas no Rio de Janeiro.

1. Museu da Maré
Lançado em maio de 2006 é o primeiro museu instalado em uma favela da cidade do Rio de Janeiro e administrado pelos moradores e ex-moradores da favela. O conjunto de favelas da Maré situa-se na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Ali vivem mais de 130 mil pessoas, ocupando uma extensão de 800 mil metros quadrados, distribuídas em 16 favelas ou comunidades que guardam entre si semelhanças e diferenças, pluralidades e singularidades históricas, geográficas, culturais, arquitetônicas, musicais e mais. Seu projeto é inovador do ponto de vista histórico, antropológico, educacional, artístico, museológico e tem servido de inspiração para outras iniciativas de memória e museologia social no Brasil e no exterior.

2. Museu Vivo de São Bento
Lançado em 2007, no município de Duque de Caxias, na baixada fluminense do Estado do Rio de Janeiro, o Museu Vivo de São Bento é uma experiência inovadora. Trata-se de um museu de percurso, também reconhecido como museu de território e ecomuseu, cujo projeto resultou do acúmulo de reflexões e experiências desenvolvidas por um coletivo de professores com forte atuação na rede estadual e municipal de ensino e na militância do Sindicato Estadual de Profissionais da Educação (SEPE).

3. Museu de Favela (MUF)
Fundado em 2008 por moradores das favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, o MUF é uma organização não governamental, de caráter comunitário, concebido como um museu de território, ancorado na memória social e no patrimônio natural e cultural, tangível e intangível. Os 20 mil moradores da comunidade, incluindo modos de vida, narrativas, criações artísticas, saberes e fazeres, bem como o território de 12 hectares de área, localizado nas encostas do Maciço do Cantagalo, entre os bairros de Ipanema, Copacabana e Lagoa, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, constituem o lócus privilegiado do Museu.

4. Museu das Remoções
Iniciativa desenvolvida por moradores, apoiadores e amigos da Vila Autódromo, o Museu das Remoções foi lançado no dia 18 de maio de 2016, quando se comemorava o dia internacional de museus, com o tema “Museus e Paisagens Culturais”, sugerido pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM). Situada na Barra da Tijuca, no município do Rio de Janeiro, a Vila Autódromo era constituída de pelo menos 600 famílias. O processo de remoção foi perverso e muito violento. Em nome do grande capital e de um megaevento de caráter mundial (as Olimpíadas), a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, atendendo aos interesses de poderosas empreiteiras, decidiu remover famílias que moravam na Vila Autódromo há mais de 50 anos e que estavam com sua situação fundiária regulamentada. O processo de remoção envolveu luta, sangue, disputa. Pelo menos 580 famílias foram removidas. Talvez a prefeitura não contasse com a resistência de 20 famílias que insistiam em dizer: “Nem todos têm um preço”. Essas vinte famílias, com o auxílio de apoiadores e amigos, inventaram novas possibilidades de estar no mundo e venceram os Jogos Olímpicos. Foi neste quadro que, entre janeiro e fevereiro de 2016, organizou-se um grupo visando à criação do Museu das Remoções, a partir dos escombros das casas destruídas, dos registros documentais e das memórias da Vila Autódromo. O Museu das Remoções, criado por uma comunidade popular que enfrentou o poder destruidor do poder público e descobriu na luta o seu próprio poder, chamou para si a tarefa e a responsabilidade de contar a história das remoções a partir da perspectiva dos afetados pelas políticas de remoções. O lema do Museu: “Memória não se remove”, passou a ser a chave de ações, projetos e encaminhamentos.

 

VII
A minha sugestão é que essas experiências não sejam tomadas como modelos e sim como inspirações. A seleção destas experiências tem um componente que não é desprezível. É importante que o leitor compreenda que tenho uma relação de afeto político e de afeto poético com todas elas, nesse sentido, minha narrativa está contaminada de afetos. Muitas outras iniciativas de museus sociais e populares com os quais também tenho relações de afeto poderiam ser incorporadas, mas, neste caso, os limites previstos para o texto seriam rompidos. Além das quatro experiências museais seria possível citar, por exemplo, o Museu da Rocinha Sankofa Memória e História, o Museu do Horto, o Memórias do Cerro Corá, o Ecomuseu Amigos do Rio Joana, o Museu Casa Bumba Meu Boi - Raízes do Gericinó, o Museu de Artes Lúdicas e muitas outras.

 

VIII
Registre-se que as iniciativas apresentadas não pedem permissão para ser museus; todas se assumem e se afirmam como museus. Esses museus desenvolvem um conjunto de práticas na primeira pessoa (do plural e do singular) e nos auxiliam a valorizar a importância de uma museologia compreensiva e libertária. Esses museus nos ajudam a perceber os limites da museologia normativa que dá mais valor às regras e normas do que à própria dinâmica da vida. Esses museus são uma indicação clara de que a Museologia Social está em movimento e continua celebrando a potência de criação, a potência de resistência e a potência da vida. Estamos diante de museus que produzem novas linhas de ação e fazem rizoma com o mundo. São museus que, com memória e criatividade, produzem transformações sociais e fazem história; museus que exercitam novas imaginações políticas, poéticas e museais e colaboram para a inovação e a invenção de conceitos e práticas.

 

IX
As mudanças conceituais e teóricas geradas no campo dos museus afetam e produzem transformações relevantes na museologia que, no entendimento aqui sustentado, está longe de ser ciência castiça e descomprometida com a vida. Esta perspectiva coloca em xeque a orientação museológica que se considera isenta de ideologia e crê na possibilidade de uma museologia pura, higiênica, esterilizada.

Por fim, cabe considerar que a museologia social ancora-se no desejo de prestar serviços práticos à vida e, por isso, está interessada em inventar, imaginar, ver, rever e transver os museus compreendendo-os como atos que afetam e potencializam a vida. A museologia social implica um saber-fazer “in-mundo” contaminado de vida afetiva e social.
 

*Poeta, museólogo, doutor em Ciências Sociais pela UERJ e um dos responsáveis pela Política Nacional de Museus. É diretor do Museu da República.