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A arte de lembrar

A artista plástica Leila Danziger descobriu nas origens de sua própria família a potência de uma vasta obra que faz dialogar memória, ética e emancipação.

texto: Gabriel Vituri
 

Leila Danziger
Leila em seu apartamento no Edifício Líbano - RJ (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

 

Em 1985, ao chegar à França para começar sua formação em artes, Leila Danziger percebeu que havia algo em suas origens que chamava atenção, como se por detrás de sua trajetória pessoal e familiar houvesse mais potência do que ela imaginara até ali.

Ainda que a Segunda Guerra Mundial tivesse ficado no passado havia quatro décadas, os franceses, ela conta, esforçavam-se para lidar com os traumas que o Holocausto havia espalhado por todo o continente europeu. Enquanto nação, tentavam compreender e reconhecer sua própria responsabilidade na ascensão do regime nazista. “Meu sobrenome lá gerava um efeito muito curioso nas pessoas. Cobravam de mim uma relação com a história que eu não tinha”, lembra a artista. Durante a guerra, fugindo da perseguição aos judeus, seu pai e seus avós refugiaram-se no Brasil: “O fato de meu pai ter vindo da Alemanha era uma espécie de tabu, e isso é bem comum em famílias com experiências assim. Ele queria ser brasileiro, tipicamente brasileiro, possuía esse desejo muito forte nele”.

Então, enquanto se estabelecia na Europa para estudar – primeiro, no curso de Artes Gráficas, que logo foi substituído pelo de Artes Visuais –, a “consciência histórica” de suas origens foi criando forma até que Leila compreendesse que, dali em diante, sua obra e suas memórias andariam pelos mesmos caminhos. “Eu desejei ser artista a partir de um encontro com a história”, diz.

Hoje, aos 57 anos, Leila Danziger mistura imagem e palavra para levar seus trabalhos a galerias e museus dentro e fora do Brasil, com um trabalho fortemente marcado pelo uso de documentos públicos, arquivos familiares, registros da imprensa e afins. “O impresso é um documento de civilização incrível, me encanta. Se eu não fosse artista plástica eu certamente seria designer, porque pra mim é um meio muito importante.”

Como boa parte dos que se tornam artistas, Leila sempre cultivou uma relação com desenho e pintura – mas, embora gostasse muito dessas atividades, o plano de se tornar artista plástica nos anos 1980 não a empolgava. “Há um ponto importante na minha vida, e que não está no meu currículo porque não sei bem onde encaixar, que foi meu primeiro emprego, no Mobral, o Movimento Brasileiro de Alfabetização”, recorda. “Eu queria ser ilustradora, e na época fazia ilustrações para material didático. Tive uma formação legal com pessoas bacanas, com quem eu convivia intensamente.”

Nessa época, depois de um curto período na Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde nasceu, Leila abandonou o curso e se mudou para a França, quando considera que houve a virada – “pela arte mesmo”, diz – na maneira como se relacionava com a trajetória de sua família. Ao prestigiar uma exposição em Paris sobre a cultura europeia, ela se deparou com cenários essencialmente familiares: “Me lembro que ela terminava com uma projeção dos artistas e intelectuais judeus que deixaram Viena por causa do nazismo em 1938, e só ali me dei conta, de uma forma muito física, que meus avós e meu pai tinham fugido de Berlim nessa leva, embora minha família não fosse nem de intelectuais, nem de artistas, mas de pessoas com profissões muito comuns”. Leila conta que aquilo a fez perceber como sua vida estava implicada naquela história.
 

Cadernos do Povo Brasileiro de Leila Danziger
Perigosos, subversivos, sediciosos [Cadernos do povo brasileiro] A instalação traz livros censurados pela ditadura militar no Brasil e fotografias de mortos e desaparecidos tanto no período ditatorial como no democrático. Os rostos estão cobertos por páginas extraídas dos livros censurados. (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

 

Literatura e outras leituras
Não foi só pela arte, todavia, que Leila passou a lidar com suas origens. “Lembro do dia em que li ‘É Isto Um Homem?’, do Primo Levi, em que ele conta a ida dele para Auschwitz.” O encontro com a literatura foi determinante para a maneira como a artista plástica passou a interpretar a influência de seu passado na sua forma de trabalhar. “Eu percebi que tinha uma transmissão em que eu me reconhecia, sobretudo pela literatura”, explica. “É uma virada que me acompanha até hoje.” Além de Levi, a poesia de Paul Celan foi uma obra “absolutamente transformadora” para ela. “Ainda na França, comecei a estudar alemão, que era o tabu absoluto na família. Então, as pessoas achavam que eu falava a língua por causa do meu pai, mas era pelo Celan, porque eu queria entender, escutar aquilo”, justifica.

Há mais ou menos dez anos, a artista começou a escrever poesia (“eu brinco que é a faixa bônus da minha vida”), e, em 2012, publicou o primeiro de seus três livros do gênero. “Para mim é um desdobramento do processo do trabalho, porque existe uma questão sobre a escrita do artista, e na verdade eu comecei a escrever poesia porque isso me permitia fazer experimentações, pensar nos processos”, afirma. Pesquisadora com dois pós-doutorados e professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Leila concilia a vida acadêmica com seu trabalho artístico e ressalta que uma coisa alimenta a outra. “Me instiga muito essa conexão entre a universidade e a arte”, pontua, reflexão que contrasta com a ideia de que a pesquisa poderia frear ou impactar negativamente em sua produção. “Sou muita grata ao ambiente acadêmico. A universidade me constitui como pessoa. Fui uma aluna feliz, agradeço aos meus professores e meus alunos hoje são muito importantes, as trocas com eles são fundamentais”, destaca.

Há quase vinte anos como professora em uma universidade pública, Leila se diz grata a agências públicas de fomento à pesquisa que lhe proporcionaram oportunidades de estudo ao longo de sua carreira, mas lamenta o fato de essas instituições com frequência evitarem nomear a arte em seus programas de auxílio. “No campo da universidade, a arte como conhecimento sensível se consolidou muito nos últimos anos, então são coisas indissociáveis”, pondera. Como professora, porém, ela acredita que o desafio é não deixar que a obra tome conta do docente, “é preciso pensar além do próprio trabalho, você precisa ser maior do que ele”.
 

Próximas três imagens: Pequenos Impérios - Leila organizou esta série a partir do arquivo do pai (veja panorama à pág. 16). “Se cada resto, cada ‘pequeno império’ é um arquivo, cabe perguntar o que está arquivado na matéria que o constitui”, ela escreveu. (fotos: Arquivo pessoal/Divulgação)

Pequenos Imperios - Leila Danziger

 

Pequenos impérios
Em 2011, com a morte de seu pai, Rolf Manfred Danziger, a artista plástica se deparou com a missão de esvaziar o apartamento onde ele morava, o que envolvia revirar e vasculhar incontáveis materiais de arquivo que vinham sendo guardados por ele, “de uma forma muito organizada”, diz. “Eram pastas e fichários em torno de algumas temáticas obsessivas: Rio de Janeiro, construção civil (desabamentos e desastres), política brasileira, segunda grande guerra, Israel (a língua hebraica), contas (todas as contas de luz e gás), recibos, certificados de garantia de todos os eletrodomésticos que teve na vida, todos os impostos de renda, registros com a contabilidade diária dos gastos da família desde a década de 1970”, lista a artista, que lembra que Rolf tinha uma kombi cheia de coisas armazenadas e um banheiro inutilizado por conta da quantidade de material.
 

Pequenos Imperios - Leila Danziger


A solução encontrada por ela para “processar” tanta coisa se transformou em diversas obras, inclusive Pequenos Impérios: “Criei um ritual e fiz categorias com carimbos, com frases, e aí carimbava e fotografava essas seleções, mas esse trabalho é uma pontinha de um iceberg imenso, e esse fundo de arquivo hoje orienta meu trabalho todo, o que eu digo ou não digo”. À semelhança da catalogação fantasiosa de Jorge Luís Borges em seu conto “O idioma analítico de John Wilkins”, em que o autor argentino organiza sua lista de classificação de animais a partir de uma “certa enciclopédia chinesa”, a artista encontrou no acervo do pai o que ela chama de micro-história: um apanhado que a partir do universo familiar é capaz de orientar pesquisas e eixos de trabalho dentro do que ela chama de grande história.

Pequenos Impérios, na realidade, nunca chegou a ir para uma exposição. No catálogo de Edifício Líbano, no entanto, uma de suas obras de grande destaque que veio a público em 2012, na Galeria de Arte IBEU, em Copacabana, Leila Danziger optou por colocar as imagens dos arquivos organizados como parte da série. “Eu guardei muita coisa, mas me arrependo de não ter guardado tudo”, lamenta a artista, que precisou se livrar de uma fração do material por uma questão de espaço, já que iria se mudar para o mesmo apartamento onde tudo se encontrava. Em outras palavras, era impossível que ela e o legado arquivístico do pai habitassem o mesmo espaço sem que algumas escolhas fossem feitas.
 

Pequenos Imperios - Leila Danziger


Leila também guarda os livros que seus avós trouxeram da Alemanha, compilação que depois se transformou em Bildung, trabalho exposto em 2014 no Museu de Arte do Rio (MAR), reunindo pranchas com livros e documentos costurados, além de uma estante de madeira com documentos e outras obras.

Para a artista plástica, ainda que os documentos existam, eles precisam ser lidos no presente a partir de uma demanda atual. “Eu posso ler um documento hoje de forma completamente diferente de como eu leria dez anos atrás ou daqui a outros dez”, explica. “A questão é como ler, e isso é o que me interessa: ler no visível e no discursivo.” Nesse sentido, Leila pontua que nem tudo é legível o tempo todo, “depende da conjuntura, de uma ausência do presente, e é isso o que muda o trabalho”.
 

Próximas três imagens: Diários Públicos - Produzida ao longo de vários anos, desde 2001, a série é composta de páginas de jornal submetidas a um apagamento seletivo, pintadas e  carimbadas com frases poéticas. Retrata “nossas pequenas e grandes catástrofes de cada dia: a solidão extrema, a vida nua, o estado de bando”, como descreveu a própria artista. (fotos: Arquivo pessoal/Divulgação)

Diários Públicos - Leila Danziger

 

Incertezas
A família de Leila veio ao Brasil em dezembro de 1935, pouco tempo depois da introdução no Estado alemão das Leis de Nuremberg, em setembro daquele ano. Com as leis antissemitas, os judeus tiveram seus direitos de cidadania limitados. “Meu pai havia perdido o direito de estudar no ginásio público em que estava matriculado, meu avô perdeu o comércio que tinha, eu nunca soube exatamente do que era”.

Leila tem consciência de que a Segunda Guerra é um tema delicado, e que justamente por isso é preciso cautela na discussão sobre as memórias e os temores que surgem de um marco tão tenebroso na história recente da humanidade. “Nos anos 1980, houve uma onda muito assustadora de revisionismo, que foi combatida com veemência na época, e achei que isso tinha sido desqualificado, interrompido”, diz. A partir do Holocausto ela diz ter aprendido a se identificar com a exclusão do outro, com a violência da separação e com os estados de exceção – por isso, pondera que é preciso estar atento aos usos políticos que se faz da memória. “É preciso buscar emancipação num sentido de igualdade, de amenizar sofrimentos. A memória serve a um projeto de poder ou a projetos emancipatórios? É esse questionamento que precisa ser feito”, afirma.
 

Diários Públicos - Leila Danziger


“Eu me pergunto muito qual é o teor emancipatório dos trabalhos. Na arte, é isso que a gente faz, a gente constrói narrativas. Mas a questão é qual é o viés ético, a postura ética, que conduz esse trabalho e essas narrativas que vão surgir. Qual o interesse, de que lado eu me coloco, com quem eu faço alianças”, completa. A ela, interessa pensar nos documentos que esperam o momento de serem lidos, e sobretudo “estar do lado dos excluídos, de quem está à margem”.

Para a artista plástica, há no ar um dever de memória que é muitas vezes vazio. “É preciso existir conteúdo histórico, saber mais sobre o que queremos lembrar, ler documentos, conhecer detalhes concretos”, defende. “No Brasil, a história da escravidão só tem sido enfrentada recentemente. No caso da ditadura, é o terror completo. Há dois anos, quando se elogiou [o coronel Carlos Brilhante] Ustra publicamente durante o processo de impeachment da [ex-presidente] Dilma Rousseff, aquilo nunca deveria ter sido admitido”, critica. Para ela, o incêndio do Museu Nacional, ocorrido no Rio em 2018, também é um pesadelo absoluto. “A gente fica falando de memória por anos e parece que tudo pode virar poeira, ou ser desdito por um tuíte. Mas não tem problema, vamos em frente. Vamos continuar falando.”


Diários Públicos - Leila Danziger