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“Os centros de memória são instrumentos de ação”

ANA MARIA CAMARGO, historiadora e professora da usp

Ana Maria Camargo
(foto: Dani Sandrini)
 

Para especialista, o objetivo final de um centro de memória deveria ser subsidiar decisões e lastrear a execução das ações sob sua responsabilidade

entrevista: Carla Lira, Gabriel Vituri, João Paulo Guadanucci e Marta Raquel Colabone

A historiadora e professora da Universidade de São Paulo Ana Maria Camargo, filha de pai bibliófilo e colecionador de livros e periódicos antigos, dedicou a vida a estudar a questão dos arquivos e centros de memória.

Hoje, diz, já triplicou o acervo herdado do pai, além de ter colecionado documentos que, adquiridos nas feiras de antiguidades, servem para ilustrar suas aulas. “Acabei reunindo uma vasta documentação representativa das atividades rotineiras de pessoas das mais diversas condições sociais. Pessoas comuns...”, revela.

Nesta entrevista, a professora discorre sobre o que são e para que servem os centros de memória na contemporaneidade e lamenta o fato de muitas instituições ainda terem uma compreensão limitada da importância desses espaços.
 

O que caracteriza um centro de memória e o diferencia dos arquivos, museus, bibliotecas e outros acervos?
O nome “centro de memória” é uma peculiaridade nossa, do Brasil. Basta pesquisar na literatura de outros países, e não se vai encontrar essa expressão para designar um arquivo ou um centro de documentação. Se eu fosse comparar o centro de memória com as instituições mais convencionais de custódia de documentos, como museus, bibliotecas e arquivos, eu o aproximaria da ideia de “arquivo”, e vou justificar: acho que um centro de memória é (ou deveria ser) um arquivo ampliado. No livro que escrevemos [“Centros de memória: uma proposta de definição”, edições Sesc, 2015], Silvana Goulart e eu partimos da ideia de que “centro de memória” é um novo nome pra designar velhas práticas que, por sua natureza, foram assumindo um caráter pejorativo, ou de menor importância.
 

Como assim?
O arquivo, dentre todas essas instituições, é a que tem menos visibilidade, porque é associada a algo velho, inservível, lúgubre, reduto da burocracia. Temos uma ideia muito negativa do arquivo. Por outro lado, um centro de memória que não contenha ou abranja o arquivo não passa de algo supérfluo e de vida efêmera. Dentro de uma instituição, quando se quer fazer cortes para economizar recursos, a primeira coisa que cai é o centro de memória. Procuramos retratar esse fenômeno no livro, sobretudo a partir da experiência de Silvana Goulart, que acompanhou em várias entidades a criação e o desmantelamento de centros de memória, quase todos associados à área de marketing. Nas entidades privadas, principalmente, o centro se torna lugar para uma pequena exposição, um pequeno museu, um espaço onde ficam os papéis e os objetos que serão depois transformados em livro institucional. Subordinado ao setor de comunicação e com funções predominantemente ornamentais, o centro de memória não é capaz de subsidiar as decisões do organismo como um todo, seja ele público ou privado, nem de servir de lastro para as atividades que desenvolve.
 

De que maneira se forma (ou deveria se formar) um centro de memória?
O centro de memória seria um arquivo alargado, um arquivo que comporta não só o material que a instituição naturalmente produz e acumula ao longo das suas atividades, mas também aquele do qual ela se apropria para se desenvolver e cumprir sua missão. É preciso haver uma série de informações disponíveis, preparadas para uso imediato, e não apenas aquelas originárias de suas atividades precedentes. O centro de memória deve agregar, além do arquivo, documentos que lhe são complementares, e que muitas vezes são produzidos por iniciativa do próprio centro. Um exemplo disso seriam as entrevistas que o Sesc fez com participantes de atividades e eventos antigos, que não ficaram devidamente registrados nos documentos rotineiros. Não tendo sido produzidas ao longo das práticas administrativas da instituição, o que não lhes confere o caráter de documentos de arquivo, tais entrevistas acabam assumindo estatuto documental por força desse gesto de atribuição de sentido que os centros de memória podem realizar. Em resumo, o centro de memória abrigaria todo e qualquer suporte de informação que possa ser útil ao organismo onde está instalado, qualquer que seja seu formato, sua linguagem, sua procedência.
 

As coisas vão ganhando sentido, então.
Sim, e podemos fazer vários tipos de comparações. Em uma fábrica de caminhões, por exemplo, o arquivo contém projetos, gráficos, notas de compra, contratos de prestação de serviços e outros tantos documentos. O caminhão, produto final da fábrica, não é colocado no arquivo, pois nasceu para sair da empresa. Se tomo por referência uma fábrica de pregos, é possível que, por suas dimensões diminutas, o arquivo abrigue uma amostra desses produtos, que também nasceram para sair da empresa. Nesse caso, os pregos assumem o estatuto de documentos pelo gesto de atribuição de sentido que sempre podemos empreender nos centros de memória. Como o livro procurou demonstrar, os centros de memória seriam o amálgama das funções tradicionalmente exercidas por bibliotecários, museólogos, arquivistas e historiadores, adquirindo sempre a fisionomia das instituições em que estão inseridos.
 

E como essas instituições se diferenciam entre si?
Quanto maior for o grau de intervenção de uma instituição no meio em que atua, maior a importância de seu arquivo, de seu centro de memória. É o que ocorre com as prefeituras, com os tribunais e tantas outras entidades que atendem a uma demanda social ampla. A importância dos documentos reunidos em seus acervos nada tem a ver com o fato de serem órgãos oficiais ou de representarem o poder público, e sim com o largo espectro de sua atuação na sociedade.  Não é à toa que constituem fonte de primeira ordem para a pesquisa histórica.
 

Ana Maria Camargo
A historiadora Ana Maria Camargo observa painel que registra a expansão do Sesc no Estado (foto: Dani Sandrini)
 

Qual o potencial de um centro de memória?
O centro de memória deve ser um órgão que torna disponíveis, e de modo imediato, as informações necessárias para o funcionamento da instituição, sejam elas retiradas do arquivo administrativo, do noticiário de imprensa, de livros e artigos publicados ou dos depoimentos de antigos funcionários. Na condição de mecanismos de retaguarda, os centros de memória não desfrutam de grande visibilidade. Não se trata de má compreensão de suas finalidades, ou de falta de marketing. É que eles são peças instrumentais e de inegável importância, mas sem o protagonismo de outros setores. Essa a razão pela qual os franceses comparam os serviços ligados à documentação com atividades “ménagères”, similares às tarefas domésticas, que só aparecem quando não funcionam. O clássico exemplo do trabalho da dona de casa, que costuma ser percebido apenas quando a comida não aparece na mesa no horário de costume, caberia como uma luva para o arquivo e seus congêneres... Pode parecer contraditório, mas a importância dos centros de memória está na sua instrumentalidade, característica que, ao mesmo tempo, os torna invisíveis.   
 

Como definiríamos essa instrumentalidade?
A instrumentalidade é algo que está no cerne do documento de arquivo. É o traço que o distingue e que dá sentido aos conceitos e princípios da ciência que o tem por objeto. É por meio do documento de arquivo que, nas sociedades complexas, certas atividades são viabilizadas e, a posteriori, comprovadas. Os estudiosos do aparecimento da escrita vinculam seu nascimento à necessidade de consignar compromissos e direitos. Ou seja: os remanescentes mais antigos da invenção da escrita são exemplos típicos do ato de representar ações e dotá-las de efeito probatório e duradouro. Se observarmos bem, os documentos de arquivo equivalem às ações que viabilizam, ao mesmo tempo que lhes servem de prova. Os arquivos nunca são uma finalidade para as instituições que os acumulam, mas meios pelos quais essas instituições asseguram sua continuidade.
 

A discussão dos centros de memória na atualidade tem um caráter muito diferente do que tinha no passado?
O fato de termos entendido o centro de memória como um arquivo ampliado, como um lugar que pode reunir tudo aquilo que é estratégico para a instituição, faz com que ele seja concebido de forma bem flexível. Não podemos afirmar que existe um modelo perfeito de centro de memória, mas há estudos que vêm sendo feitos em vários lugares para criar esse armazém de documentos, informações e dados e torná-lo operacional. O advento das novas tecnologias teve um efeito intrigante no âmbito das organizações: tornar imperceptível a descontinuidade entre a ação e o documento que lhe serve de veículo, fazendo com que muitos autores, como apontamos no livro, postulem a necessidade de materializar (convertendo-os em documentos) os procedimentos rotineiros e voláteis da instituição, garantindo sua mobilização.
 

O que seria essa mobilização?
Seria, basicamente, a capacidade de extrair da documentação elementos específicos, pontuais, e outros mais genéricos, indicadores de tendências. Gosto de fazer um recuo no tempo e evocar o modo como no Brasil das capitanias e províncias os arquivos governamentais acumulavam documentos que, em intervalos mais ou menos regulares, eram examinados, sistematizados e submetidos a abordagem estatística. Para tanto costumava-se contratar determinados indivíduos, geralmente militares (que conheciam matemática), para escrever uma história daquela região de uma perspectiva panorâmica. Não se tratava da história diletante que conhecemos, mas de uma função pragmática cuja principal justificativa era permitir   que se pudesse “bem governar” aquela área. Nos centros de memória também é necessário, em espaços de tempo cada vez mais curtos, sistematizar informações, torná-las inteligíveis e apresentá-las de forma projetiva, apontando tendências. Só que a velocidade do mundo, hoje, não permitiria contratar um especialista para dar conta dessa tarefa...
 

Nesse sentido, que desafios surgem nesse panorama de hoje, mais rápido?
Há varias pesquisas sobre o assunto. O eixo de tudo é a construção de uma base de dados poderosíssima, que articule diferentes camadas de dados e informações. É, sem dúvida, um trabalho dos mais sofisticados, a exigir o concurso de especialistas de várias áreas.  A maioria das instituições, no entanto, escolhe o caminho mais curto para disponibilizar, para usuários internos e externos, os documentos de seus acervos: o da digitalização selvagem. É mais fácil digitalizar tudo, por mais caro que seja esse processo, do que criar metadados pertinentes para a documentação sob custódia de um centro de memória. Como os arquivos públicos não têm investido em instrumentos de pesquisa que apontem para o potencial informativo das séries ali conservadas, optando por apresentá-las em quilométricas relações de imagens digitais, resta saber se têm de fato alimentado trabalhos acadêmicos novos... Acho difícil.
 

Mudando de assunto, essa sua relação com os arquivos e as memórias também passa por uma esfera pessoal?
Bem, meu pai era um bibliófilo, e eu sou herdeira de seu fascínio pelo mundo dos livros, da história, da literatura, das coleções de revistas e jornais antigos. Praticamente tripliquei sua biblioteca. Meu interesse pelos arquivos, em particular, me levou a frequentar feirinhas como a do Bixiga, onde aparecem documentos pessoais em grande quantidade. Alguém morre e no dia seguinte a família já põe à venda seu diário íntimo, sua correspondência, seus retratos e uma infinidade de coisas. Eu compro quase tudo. Tenho até fornecedores fixos, que sabem do que gosto e que procuram não dispersar os conjuntos com os quais pretendo recompor, na medida do possível, a organicidade do que restou de uma vida. Tenho usado esse material em minhas aulas, mas a quantidade de documentos é tamanha e tão variada - incluindo álbuns de figurinhas, bilhetes de loteria, apólices, livros do bebê, material de propaganda política, cadernos de receitas e muitos outros itens - que preciso dar um destino melhor para eles.  Penso que poderiam constituir o embrião de um núcleo devotado à vida das pessoas comuns, na contramão das políticas que miram os ícones da política, da ciência, da literatura ou da arte. Não sei o que fazer, mas aceito sugestões...