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Ancestralidade à mesa


Obra Amalá: territórios de justiça, proteção e poesia de Luiz Marcelo.

Na Grécia Antiga, a palavra para “cozinheiro”, “açougueiro” e “sacerdote” era a mesma – mageiros, cuja raiz é igual à de magia. Quem faz esse relato é o professor norte-americano Michael Pollan em Cozinhar – Uma História Natural de Transformação (Intrínseca), livro no qual compartilha uma perspectiva histórica, sociológica e antropológica da alimentação. Para além do sentido de nutrição do corpo, a comida é uma expressão cultural que pode, sim, fazer parte de um ritual sagrado – da preparação à partilha.

No Brasil, a influência de povos africanos responde por uma alimentação que herda ingredientes e formas de preparo singulares. A exemplo da feijoada, à base de feijão e carnes consideradas menos nobres. Típico prato de uma quarta-feira ou sábado na capital paulista, e que também integra rituais sagrados. Nos terreiros de candomblé, a feijoada é uma oferenda à divindade Ogum. “A comida no candomblé é feita num ritual. É uma comida para o espírito, para a alma e para a gente. Quando termina o ritual, essa comida é nossa. Nós comemos a comida abençoada pelo orixá”, explica a chef Ana Célia Santos, do restaurante Zanzibar, na cidade de Salvador.

Em funcionamento há 40 anos, o Zanzibar preserva a memória e histórias da alimentação que desembarcaram no país com diferentes povos africanos que aqui chegaram escravizados. Na cozinha, Ana Célia prepara pratos com inhame, aipim, gengibre, banana-da-terra, quiabo e pimenta. Receitas que aprendeu com ancestrais e africanos que vivem na Bahia. “A comida africana tem menos dendê que a baiana. Lá também se come muito pirão, mas a gente aqui não faz o pirão direto. Eu ralo o inhame e faço uma farofa, e com a banana-da-terra faço um purê. Então, a comida que faço tem algumas mudanças para a Bahia”, afirma. Dessa maneira, a chef busca valorizar a cultura afro-brasileira.
 


 

Comida, religiosidade e arte

Quando se fala da comida como parte de um ritual sagrado, fala-se também sobre todas as expressões culturais que acompanham esse ritual, caso da música e da dança. Há três décadas, o artista e pesquisador Ayrson Heráclito investiga a alimentação como um rito e manifestação da cultura afro-brasileira. O resultado são performances, fotografias e vídeos em que a comida é uma expressão artística. Obras protagonizadas por azeite de dendê, charque e outros alimentos, como a pipoca, oferenda a Omulu nos terreiros de candomblé.

“É pela alimentação que se constituiu a maioria das oferendas. Assim como nosso corpo físico precisa de alimento, os deuses também precisam. É nesse lugar de alimentar o físico e o espírito por meio das divindades que me dedico a pesquisar e criar trabalhos que conectam pela comida esses dois mundos: o terreno e o espiritual”, explica Ayrson, que ao lado de Ana Célia Santos, Adriana Aragão, Beatriz Coelho, Bel Coelho, Maria Lago e Patrícia Durães, assina a curadoria da exposição Ounje – Alimento dos Orixás, no Sesc Ipiranga, até 25 de agosto. 

Em Ounje, essa imersão na cultura africana a partir da alimentação nos terreiros das religiões afro-brasileiras, em especial do candomblé, propõe um percurso artístico e sensorial. Como a obra Amala, do artista Luiz Marcelo, composta de 1.400 quiabos de cerâmica e chamote (refratário de cerâmica) que formam um portal de proteção e ligação entre o sagrado e os deuses ancestrais. O uso do chamote em círculo representa o solo sagrado desses terreiros: a gira onde dançam os orixás.

“Como a gente compreende o candomblé de forma bastante expandida e como uma grande expressão cultural e artística, além de religiosa, convidamos artistas que estão entre o cinema e a dança, entre a fotografia e o filme, para que eles pudessem trazer essa expansão perceptiva de diferentes linguagens para o universo da alimentação sagrada e da alimentação ritual afro-brasileira”, explica Ayrson. “Escolhemos artistas que vêm desenvolvendo, há certo tempo, esse sentido de conexão e tradução dos elementos do candomblé com as linguagens artísticas”, complementa.

 

Para o corpo e para o espírito

A comida de terreiro está em exposição, conversas, show e performances  

Até 25 de agosto, a exposição Ounje – Alimento dos Orixás abrange não só um acervo composto de diversas linguagens nas artes visuais, como também uma programação integrada, com espetáculos de dança, música, teatro, performances, oficinas, bate-papos e atividades para o público infantil. São diferentes propostas artísticas em diálogo com a alimentação, com o objetivo de apresentar ao público a importância da cultura afro-brasileira. E, como pondera a chef e curadora Ana Célia Santos, “promover o respeito”.

Confira destaques da programação de julho:
 

Ciclo de debates

Arte Afro-Brasileira Contemporânea

Com Ayrson Heráclito, Renata Felinto, Amanda Carneiro e Claudinei Roberto (dia 17/7)

A chamada arte afro-brasileira é um campo expressivo e incontornável da produção de arte no Brasil. Esse é o contexto para o debate, em que serão discutidos trabalhos de artistas contemporâneos que se dedicam ao tema, refletindo sobre as relações entre menção e silêncio, universalidade e especificidade. O objetivo é ampliar a compreensão sobre a prática e a produção visual dos artistas e da arte afro-brasileira.

A influência do Candomblé na Culinária Brasileira

Com Reginaldo Prandi, Dona Cici, Vilson Caetano Jr e Bel Coelho. (Dia 24/7)

O modo de preparar uma comida de terreiro, uma oferenda ao Orixá, é peculiar de cada casa de candomblé. Há em comum, entre essas casas que abrigam as comunidades de santo, a atribuição de significados aos detalhes de seu processo de cozimento e a disposição ao servir o alimento. Narrativas, símbolos, rezas, designações, cantos e danças estão contidos em cada prato oferecido aos Orixás. Essa atividade convida pessoas de terreiros para contarem sobre essas narrativas encarregadas da essência das comidas de santo e suas influências fundamentais na culinária do Brasil.

Religiões Afro-Brasileiras e Intolerância Religiosa

Com Mãe Luciana, Vagner Gonçalvez da Silva, Hédio Silva Jr. e Adriana Aragão (dia 31/7)

Nesta mesa se debaterá o crescente processo de intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras, demonstrada em casos de destruição de símbolos religiosos em espaços privados e públicos e de agressões físicas contra adeptos. Também serão abordadas as reações jurídicas e os movimentos de combate a esse processo de intolerância, para garantir uma convivência democrática com respeito à diversidade cultural.

 

Narrativas das Comidas de Terreiro

A chef Bel Coelho (foto) convida cozinheiras de terreiro e filhos de santo para atividades que envolvem o preparo e degustação de uma comida de terreiro e conversas sobre narrativas relacionadas aos Orixás:

A fartura de Oxóssi

Com Mãe Gê, Mãe Sandra Xadantã e Bel Coelho (dia 4/7)

Tudo o que se come pra Exu

Com Zé, Ieda, Nega Duda e Bel Coelho (dia 18/7)

Comidas e a Bola de Fogo de Iansã

Com Dona Cici, Marlene, Adriana Aragão, Bia Rodrigues e Bel Coelho (dia 25/7)

 

Show

Fabiana Cozza (dia 13/7)

A cantora paulista volta-se à riqueza do universo da mitologia africana iorubá para interpretar canções novas e releituras de temas que exploram as histórias e mitos de deuses e deusas que integram o panteão dos orixás. No show, canções inéditas entremeadas de clássicos do gênero visitam a história do povo negro, dialogando com a ancestralidade, a cultura e a diáspora africana brasileira.

 

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