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A visita

Foto: Editoria de Arte

 

Seria como nós, não fossem a ausência de pelos e a transparência da pele, que permitia que víssemos seu interior sem órgãos e sem veias. Não tinha sexo, não tinha idade, não tinha umbigo. Vivia fora do tempo, em todos os tempos. Embora tampouco tivesse asas, chegou voando, em silêncio, grave e forte, como são os mais fiéis emissários (ou os mais infestos demônios). Aproximou-se da pequena casa de pedra, parou ao lado da janela lateral esquerda e, sem nunca tocar os pés frios no chão, ficou a observar a menina, que se encontrava sentada, de pernas cruzadas, no centro do quarto, em cima de um tapete feito de couro de boi.

Ela usava um longo vestido vermelho e sua cabeça estava coberta por um não menos longo véu azul-turquesa: já tivera sua menarca e não poderia mais se apresentar como se ainda fosse uma criança. Estava de costas para quem olhava desde a rua, através da janela, e talvez por isso não tivesse notado a presença daquela espécie de estafeta de outro mundo, que agora a guardava com atenção. Ocupava-se em desembaraçar, com um pente de osso, os longos cabelos castanhos da boneca de madeira que o pai lhe dera antes de morrer. Os fios dos cabelos da boneca eram os mesmos do da menina: provinham de uma mecha cortada a faca por ela própria, às escondidas, alguns meses antes, quando ainda morava no templo.

Acreditava que, transferindo à sua boneca derradeira uma parte de si, sua existência se prolongaria naquele fragmento sem vida de madeira articulada e, desse modo, como a alma, aquela mecha sobreviveria à extinção de seu corpo. Mas não era o que aconteceria, e ela – apesar de muito jovem, mal saída da infância – sabia disso. Suas outras quatro bonecas – todas calvas – achavam-se ao pé da mesa de cabeceira, onde ficava a lamparina, mantida sempre acesa: era preciso estar preparada para sair tão logo fosse chamada pelo noivo, que ainda não conhecia. Sobre a cama de solteira, estavam dobrados dois conjuntos de lençóis de casal, com as bordas debruadas em dourado, que a menina mesma havia costurado a partir de uma enorme peça de linho cru presenteada por sua velha mãe, duas camisolas de algodão, doadas pela prima, toalhas, lenços, panos, mantos e um tapete de pele de ovelha. Com o que havia sobrado do linho, fez miniaturas de vestidos, que agora cobriam os corpos rígidos de suas bonecas. A tarde já trouxera a lua, e uma brisa inesperada soprava para dentro do quarto. Depois de pentear o cabelo de sua preferida, a menina levantou-se e levou-a para junto das outras quatro. Ajeitou todos os vestidinhos antes de perfilá-las da mais baixa à mais alta.

Admirou as cinco bonecas, todas compostas, e, em segredo, congratulou-se pelos vestidos de linho tão bem-acabados, com um fino bordado vermelho nas bainhas. Esboçou um discreto sorriso antes de sair do quarto. A criatura de pele transparente, espécie de estafeta, mantinha-se no mesmo lugar, do lado de fora da janela. Não havia tirado, nem por um segundo, seus assustadores olhos translúcidos de cima da menina. Sua mão gélida havia pousado, sem que percebesse, ali onde deveria existir o sexo, que faltava. Se a criatura possuísse qualquer genitália, masculina ou feminina que fosse, talvez ela a tivesse acariciado. Depois de alguns minutos, a menina voltou carregando, com uma certa dificuldade, um recipiente grande de metal vazio e uma ânfora cheia de óleo. Depositou o recipiente exatamente onde estava sentada e despejou, dentro dele, o líquido que trazia no jarro. Foi até a mesa de cabeceira, pegou a lamparina e aproximou-a do líquido inflamável. Precisou afastar-se rapidamente para não ser atingida pela chama, que explodiu mais alto do que ela esperava.

Quando o fogo abrandou um pouco, a menina abaixou-se junto às cinco bonecas, beijou cada uma delas na testa e acomodou-as todas no colo, como bebês. Com as cinco nos braços, acercou-se do recipiente e, sem hesitar, lançou as bonecas ao fogo. As cinco caíram desordenadas, umas por sobre as outras. A primeira coisa que queimou por completo foi o longo cabelo castanho da preferida, o cabelo que era também o da menina. Os vestidos de linho, do mesmo linho dos lençóis do enxoval, não demoraram a ser incinerados pelas chamas rubras. A madeira dos pequenos corpos duros crepitava. E a menina assistia ao incêndio com a cabeça levemente inclinada e as mãos postas junto à boca. Apesar de estar, desde o início desse ritual, de frente para a janela, mesmo assim não reparou na criatura de pele transparente que a observava com atenção (quase com compaixão) e que, agora, abaixava a cabeça e cruzava as mãos sobre o peito em sinal de respeito. Olhando seus próprios pés frios, que flutuavam a dez centímetros do chão de terra batida, deu-se conta de que havia passado o momento em que deveria ter entrado no quarto, pousado por completo sobre o tapete de couro de boi e, ajoelhado diante da menina, ter-lhe dito: “Alegra-te! Ele agora está contigo”. Mas já não era mais tempo de alegria. A possibilidade de salvação, que se havia aberto pelo curto período a esta designado, se extinguiu de súbito, como o fogo das bonecas. “Uma espada trespassará vossos corações”, disse a criatura, quase sem intenção, em voz alta, antes de revoar para o lugar de onde viera, incapaz de cumprir sua missão. A menina estremeceu e, julgando ter ouvido um murmúrio vindo da rua, caminhou até a janela e olhou para fora. Poderia ser seu futuro esposo. Mas não havia vivalma. Nada parecia se mover naquela noite de lua cheia e poucas estrelas. Nem mesmo os insetos, que acalentavam os sonhos da menina com seus cicios noturnos. Nem mesmo as folhas da antiga oliveira, que dançavam brejeiras ao menor ventinho. A menina então ergueu os olhos ao céu e ainda pôde ver, antes que se apagasse para sempre, o brilho vibrante de uma estrela jamais vista por aquelas terras que poderiam ter sido santas.


 

VERONICA Stigger é escritora, professora e crítica de arte. Seu livro de estreia, O Trágico e Outras Comédias (7Letras), foi publicado primeiramente em Portugal. Entre outras obras de sua autoria estão Opisanie Swiata (Cosac Naify), romance vencedor do Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional em 2013, e Sul (34), que ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura em 2017 na categoria Crônicas e Contos.

 

 

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