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Ócio e fruição em passeios culturais: o encontro com o diferente

Foto: Cauê Colodro
Foto: Cauê Colodro

O programa Trabalho Social com Idosos, do Sesc São Paulo, consiste em um conjunto de atividades que visam promover sociabilidade, autonomia e valorização da pessoa idosa por meio de atividades transversais de cultura e lazer, pensadas a partir das especificidades das pessoas com mais de 60 anos de idade.

O Sesc São Paulo tem como diretriz a intergeracionalidade e a transversalidade em suas ações. É fato que a transversalidade já se encontra na rotina e escopo de trabalho dos animadores culturais, uma vez que estes são responsáveis por diferentes programas e linguagens. Entretanto, tal transversalidade nem sempre se encontra presente no pensamento programático, pois somos atravessados por um sintoma da sociedade moderna: vida produtiva versus tempo livre. Esta organização social, refletida no cotidiano do trabalho, pode comprometer a criatividade, a sensibilidade e a escuta atenta ao público competências tão necessárias para o trabalho do animador cultural – dado que tais habilidades precisam do solo fértil do tempo dos encontros genuínos para germinar. Assim, muitas vezes, o modus operandis do cotidiano de trabalho reflete o pragmatismo da vida moderna, de modo que precisamos nos atentar às gratas surpresas que surgem pelo caminho.

Atuando com o Trabalho Social com Idosos e Ação Educativa em Exposição de Artes Visuais, na unidade de Santo André, havia um desejo de envolver o público idoso na fruição artística das exposições. Algumas tentativas anteriores, realizadas sem sucesso, apontavam para uma impossibilidade de concretizar este desejo. Porém, certa vez, recebemos um grupo de idosos de outra região para visitar a exposição corrente na unidade. Em meio a todas as demandas operacionais que tal visita disparou, o acompanhamento e a mediação do grupo na exposição revelaram outra perspectiva sobre o público idoso: são pessoas extremamente interessadas em se apropriar de cada detalhe, desde a arquitetura da unidade até as mais diversas nuances presentes nas obras ali expostas. A possibilidade de sair de sua cidade de origem em conjunto para visitar uma exposição despertara naqueles idosos um interesse profundo por tudo que estava ao seu redor. Ao final da visita, os educadores da exposição comentavam que aquela teria sido uma das melhores visitas já realizadas.

Alguns questionamentos tornaram-se evidentes: dos diversos estereótipos que a velhice carrega, a figura do velho endurecido-teimoso-refratário às mudanças sociais é um dos mais propagados. O outro extremo desse estereótipo, o velho-que-tudo-conhece, cheio de sabedoria, pode ser tão perigoso quanto. Ambos os estereótipos escondem o fato de que a pessoa idosa é sujeito de cultura - tem tanto a ofertar quanto a receber em sua experiência de vida.

A velhice, comumente associada ao término da vida produtiva do mundo capitalista, pode apresentar um solo fértil para experiências de fruição, uma vez que a incorporação do tempo livre é uma tendência na vida das pessoas maiores de 60 anos. O ócio, negado ao tempo “produtivo” da vida adulta, guarda em si potencialidades de fruição estética e transformação, quando a ele se oferta o acesso aos bens culturais que a humanidade produziu. A experiência estética, quando comprometida pela organização social da vida moderna, fica sobreposta por adesões a preconceitos e estereótipos, tornando os sujeitos suscetíveis às tendências regressivas da barbárie, que visam eliminar toda a diferença, impedindo a existência da alteridade.

Neste contexto, as ações coletivas que envolvem visitas a instituições de cultura despontaram como uma possibilidade de sensibilização e de ampliação de repertório do público idoso frequentador da unidade. Tendo em vista a necessidade da convivência na diferença, foi proposto que as visitas às instituições de cultura tivessem como diretriz a diversidade cultural, com o objetivo de incentivar o protagonismo do público idoso na apropriação dos espaços de cultura.

Deste modo, foi criada a atividade “Passeio Cultural”, que consistia em passeios de um dia, que possibilitassem experiências de diversidade cultural. Por meio da transversalidade de linguagens, esta atividade visa construir conhecimentos que, a partir destas experiências, despertem o interesse e sensibilidade para as questões da alteridade. O passeio, com oferta prioritária de vagas para o público idoso, conta com preço acessível, que compreende o transporte e lanche.

Entre os anos de 2016 e 2017, o Passeio Cultural visitou instituições como o Itaú Cultural, Museu AfroBrasil, MASP, Sesc Pompeia, Museu do Futebol e Museu da Imigração. Foram abordados os temas da História do Brasil, Questão Racial, Arquitetura como Mediação, História Esportiva e As Diferentes Imigrações.

Em todas as edições, uma mediação durante o trajeto de ida e volta era realizada a fim de contextualizar o objetivo do passeio ao programa Trabalho Social com Idosos. Foi possível perceber a crescente evolução de interesse por parte do público frequentador da atividade em relação às questões de Diversidade Cultural, aliado ao vínculo de socialização formado entre seus participantes.

No ano de 2018, com o Passeio Cultural já consolidado como uma proposta bem sucedida entre os idosos, a unidade de Santo André avaliou a necessidade de aprofundar ainda mais as reflexões sobre diversidade. Outros projetos desenvolvidos na unidade passaram a trabalhar com o mesmo recorte, como o “Ponto de Encontro”, em que há um momento de troca de impressões e avaliação sobre a programação oferecida para esse público, sendo também um momento de troca e reflexão sobre diversos assuntos, contando com a presença de profissionais convidados, e o “Sessão da Tarde”, projeto mensal de exibição de filmes com bate papo e mediação da psicóloga Claudia Araujo. A curadoria dos filmes passou a ser feita com base nos mesmos temas norteadores das escolhas de equipamentos culturais a serem visitados no Passeio Cultural.

Considerando estatísticas recentes sobre o aumento da intolerância no país, que registram o Brasil como líder no ranking de mortes da comunidade LGBT, casos crescentes de xenofobia, racismo e violência contra a mulher, além da disseminação de discursos de ódio propagados nas redes sociais, considerou-se necessário aprofundar as intervenções de cunho educativo que reforçassem a socialização, o convívio e o respeito à diversidade humana, contribuindo para que os idosos se percebam como atores sociais, comprometidos com a participação ativa nas discussões sobre questões relevantes do tempo presente.

Amparados pelos dados obtidos com pesquisa “O Trabalho Social com Idosos no Sesc”, realizada em 2015, pelo Sesc SP, em parceria com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), que mapeou o perfil do público idoso que frequenta as unidades do Sesc, a equipe de Santo André decidiu realizar algumas adaptações ao Passeio Cultural com o intuito de qualificar ainda mais essa experiência junto aos idosos.

A referida pesquisa possibilitou traçar um perfil médio do idoso frequentador do programa Trabalho Social com Idosos do Sesc Santo André, que pode ser definido, resumidamente, da seguinte forma:
Em sua maioria, são mulheres, predominantemente brancas, católicas e aposentadas. Em termos de escolaridade, com maior incidência, temos o ensino fundamental completo, mas com bom número de graduados e em termos de renda, boa incidência na faixa de 5 a 10 salários mínimos. Embora esse público seja identificado como menos conservador do ponto de vista de supostos casamentos de filhos ou filhas com pessoa do mesmo sexo, é identificado como mais preconceituoso no caso de casamentos com pessoas de classe social diferente ou de outra cor/ raça do que a média dos idosos ouvidos em outras unidades.

A avaliação obtida das experiências dos outros projetos, que levantavam as mesmas questões, mostrou, na prática, que o desafio de desconstrução de preconceitos entre os idosos ainda é uma questão importante a ser perseguida. Novamente nos confrontamos com os estereótipos da velhice - a ideia do idoso refratário a outras formas de vida que não as que estão legitimadas socialmente, ou baseadas em suas crenças, mostra-se ineficaz para a compreensão da formação da subjetividade dessas pessoas com mais de sessenta anos, ainda em constante transformação, atentas a novos aprendizados e com bastante conhecimento a ser compartilhado.

A partir dessas observações, foram definidos os dois primeiros roteiros de 2018 para o Passeio Cultural, que compreenderam uma visita ao Memorial da Imigração Judaíca, no Bom Retiro, realizada em 16 de março, e um retorno ao Museu AfroBrasil, no Parque Ibirapuera, em 17 de maio. O bate-papo preparatório para a primeira visitação ficou a cargo da psicóloga Claudia Araújo, também mediadora do projeto Sessão da Tarde, no Sesc Santo André, e quem conduziu a conversa que antecedeu a visita ao Museu AfroBrasil foi Fabiano Maranhão, que atua no setor de Diversidade Cultural da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Além desse bate-papo introdutório, os dois mediadores também participaram das visitações mediadas em ambos os equipamentos, o que reforçou o vínculo já pré-estabelecido junto ao grupo, facilitando a quebra de barreiras e deixando o grupo de idosos mais à vontade para todo tipo de questionamento.

A fusão de história, arte e religião encontrada nos dois espaços, que retratam a contribuição dos judeus e dos povos africanos ao desenvolvimento do Brasil bem como denunciam o autoritarismo velado em nossas relações e o racismo como fator estruturante de nossa sociedade, serviu para estimular, entre os idosos, uma reflexão sobre a relação que constroem entre si, com os outros, e com o meio em que vivem.

Cada vez mais atuantes na sociedade, os idosos, hoje, estão longe de representarem o papel passivo de meros espectadores da história, de um tempo que, supostamente, não mais lhes pertence. A juventude, outrora tida pelo senso comum como revolucionária, de fato tem se mostrado cada vez mais suscetível aos discursos prontos do status quo, mais adaptada ao modo de vida moderno. Compreendendo a educação como dispositivo de transformação social, as ações desenvolvidas pelo Trabalho Social com Idosos visa criar espaços de aprendizado e sociabilização entre pessoas com mais de 60 anos, que são, de fato, sujeitos históricos e como tais devem assumir seu protagonismo, não se omitindo quanto às importantes questões sociais de seu tempo.

O projeto Passeio Cultural com Idosos vem cumprindo até aqui essa função de provocar novas formas de enxergar o mundo e compreender a pluralidade dos modos de ser de diferentes grupos, convidando os idosos a abrirem- se ao diálogo para experimentar a beleza da vida humana em toda sua diversidade.