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Luxo para todos

 

Corria o ano de 1934 quando o Brasil promulgava sua nova Constituição. Progressista em relação aos direitos laborais, a Carta dava relevo ao salário mínimo, à padronização da jornada de trabalho máxima em oito horas diárias, ao repouso semanal e às férias anuais remuneradas.

Apesar de a lei nacional atender a uma grande parcela dos trabalhadores brasileiros, as férias nem sempre se materializavam em viagens. Os militantes dos direitos trabalhistas entenderam que viajavam somente aqueles trabalhadores que tinham recursos financeiros suficientes para arcar com as despesas cotidianas e investir, depois, em viagens. Nesse grupo não se incluiria a carioca Neusa, que não usufruía dos benefícios da legislação mesmo muitos anos depois de sua edição. Nascida numa família com poucas posses, Neusa trabalhou como empregada doméstica em sua cidade natal. Sem direito garantido ao descanso anual remunerado, em mais de 50 anos nunca verdadeiramente tirou férias ou – luxo para poucos! – viajou.

Evidenciada a desigual distribuição do consumo do turismo, passou-se à luta pela garantia do acesso regular às viagens para pessoas alijadas dessa prática. O florescimento do turismo social como uma atividade voltada ao atendimento de trabalhadores e famílias de baixos recursos financeiros e organizada por Estados, sindicatos e outras instituições de caráter não lucrativo, era a resposta que buscava legitimar, a partir do final dos anos 1940, o que se considerava uma prolongação natural do direito às férias remuneradas.

Em tal contexto socio-histórico, o Sesc em São Paulo inaugurava em 1948 o Centro de Férias Sesc Bertioga, marcando seu pioneirismo no desenvolvimento de ações de turismo social no Brasil. Na oferta de práticas turísticas voltadas principalmente aos trabalhadores do comércio de bens e serviços e de turismo com renda mensal de até 5 salários mínimos, o Sesc sempre preocupou-se não somente em impulsionar a democratização do acesso às viagens, mas igualmente em desenvolver conteúdos que estimulassem a realização plena das potencialidades de cada indivíduo, como pessoa e como cidadão.

Hoje, num claro alinhamento com os desafios contemporâneos, o Sesc harmonizou a luta pela superação das desigualdades de acesso com a busca por assegurar que o turismo promovido também se dirija à redução de impactos ambientais e sociais negativos, à valorização do patrimônio cultural e da diversidade, à promoção dos direitos humanos, à inclusão social, à equidade de gênero e à acessibilidade. O Sesc procura da mesma forma colaborar com a consolidação de cadeias econômicas éticas e sustentáveis no turismo, gerar conhecimento a partir de pesquisas e debates sobre as dinâmicas coetâneas do setor e garantir a fundamental presença dos processos educativos, realizados por meio da educação pelo e para o turismo.

Nesses 70 anos de história, o Turismo Social absorveu novos públicos, com aspirações próprias e modos particulares de significação, consumo e fruição das viagens. Como dona Neusa, que, aposentada e vivendo acabrunhada na São Paulo dos anos 2000, ganhou “de presente” de sua filha um cartão de matrícula do Sesc e agora não quer perder uma excursão ou passeio. A próxima viagem de dona Neusa será ao Rio de Janeiro, para conhecer lugares que ela sempre viu de longe, mas nunca pode visitar. “Vou voltar pra casa, mas agora como turista”, afirma, comemorando um luxo a que tem direito.

 

Flávia Roberta Cortez Lombardo Costa,
mestre em Turismo, é coordenadora de Turismo Social do Sesc em São Paulo e presidenta da Secretaria para as Américas da Organização Internacional de Turismo Social.

 

 

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