Postado em
Serestas ao Luar
Ao apostar na temática popular e cantar a dor
de amores contrariados, Catulo da Paixão Cearense
levou a música da boemia para os salões da aristocracia carioca
Violonista e seresteiro, Catulo da Paixão Cearense costumava dizer que o violão o conduziu à poesia e que sua sensibilidade havia sido formada pelo contato com a natureza nordestina. O nascimento, em 1863, diferentemente do que sugere o próprio nome, foi no Maranhão, mas a mudança com a família para o Ceará ocorreu quando ainda era criança. Além de alimentar as lembranças da infância, a região entra em seu repertório por meio da literatura de cordel e de cantadores como Manoel Riachão.
Aos 17 anos, seguiu com os pais para o Rio de Janeiro. Morou no bairro de Botafogo, onde também ficava a relojoaria de seu pai, que trabalhava como ourives. Na cidade, na década de 1880, mergulhou na boemia e no ritmo do choro, logo se enturmando com os artistas locais em Copacabana – tudo a contragosto do pai, que não via com bons olhos as escolhas do filho. Nem o dia a dia puxado como estivador, organizando as cargas de navios no porto, o afastava das serestas. Foi também por essa época que Catulo deixou o entusiasmo por seu primeiro instrumento, a flauta, e se rendeu ao violão.
O músico não chegou a completar o ensino formal, contudo, era autodidata e acabou acumulando mais uma função: a de professor. Além do português, Catulo aprendeu francês. “Estudava, por mim, tudo o que me interessava. Livrei-me, por milagre, de não ser hoje um doutor”, afirmou certa ocasião. O convite para lecionar se fez com o violão em mãos, numa época efervescente da história brasileira.
O Rio de Janeiro no fim do século 19 fervilhava com a Proclamação da República. Numa noite, ao apresentar-se na casa do senador Gaspar da Silveira Martins, não viu só os aplausos merecidos. Daí em diante, trabalhou como “explicador”, um orientador informal para os filhos do senador.
Fora da caixinha
O violão chegou longe com Catulo. Instrumento um tanto marginalizado naqueles tempos, acompanhou o poeta em recitais no Palácio do Governo. Apresentou-se para Hermes da Fonseca, Nilo Peçanha, Epitácio Pessoa, Arthur Bernardes e Getúlio Vargas. Da música à palavra, Catulo apostava na diversidade temática de seus poemas, explica o professor de literatura e membro da Academia Maranhense de Letras José Neres.
O escritor produzia textos leves e lúdicos e outros sobre “amores contrariados”, que, segundo Neres, eram sucesso total nas modinhas da época. O especialista ressalta ainda “o desejo de atingir a alma do homem do campo com suas palavras simples, seu ritmo cadenciado e suas imagens poéticas que reproduzem as cores e as formas do sertão, que tantas vezes é cantado em sua obra”.
Outro episódio simbólico para Catulo foi o recital na Escola Nacional de Música, em 1908. A apresentação foi um racha para a divisão rígida existente entre cultura popular e erudita, a qual não permitia tamanha ousadia. O violão era um instrumento popular, da boemia, e das ruas foi ganhando os palácios. Seguiram-se diversas apresentações do tipo, como a do Palácio do Catete, respondendo a um convite do presidente Hermes da Fonseca. A noite ficou conhecida como “Corta-jaca”, nome do maxixe de Chiquinha Gonzaga, amiga de Catulo. No entanto, os holofotes miraram a primeira-dama, Nair de Teffé. Ousada, a jovem artista pegou o violão e tocou no meio do salão, entre os convidados embasbacados.
Centro das atenções
Dono de inúmeras habilidades, Catulo se via, muitas vezes, no centro das atenções, de acordo com o jornalista Gonçalo Júnior, organizador do livro Música e Boemia – A Autobiografia Perdida de Catulo da Paixão Cearense (Noir, 2018). “Tinha orgulho de se autodenominar o maior de todos os poetas populares vivos, com seu estilo fanfarrão e mal-humorado. Todos o conheciam de vista, saudavam-no nas ruas, o reverenciavam como um grande artista ‘do povo’, de modos simples, porém dono de uma obra que orgulhava a todos”, descreve o jornalista. “No seu cotidiano, era o seresteiro beberrão, que andava como gato vira-lata, sem dono, pela madrugada, a fazer serenatas debaixo das janelas das donzelas, depois de longos porres com a turma da boemia – apaixonados em desespero sempre recorriam a ele e sua trupe de músicos, a implorar ajuda para conquistar a moça virgem desejada”, complementa.
Prosa e verso
Catulo também se consagrou pela autoria de Luar do Sertão, gravado originalmente em 1914 pelo cantor Eduardo Neves. A música, vista por muitos como o segundo hino do país, tamanha sua popularidade, ficou marcada pela interpretação de grandes nomes da Música Popular Brasileira, como Luiz Gonzaga, Maria Bethânia e Milton Nascimento.
Em 2000, Marisa Monte apareceu com a releitura elétrica de Ontem ao Luar, cuja letra é de Catulo e a melodia, do flautista Pedro Alcântara. Desde a primeira gravação, de Vicente Celestino, em 1918, esta música fez parte do repertório de artistas como Paulo Tapajós, Altemar Dutra e Fafá de Belém, percorrendo um arco de interpretações das mais tradicionais ao pop.
O centro da produção de Catulo até sua morte, em 1946, configura-se na palavra. Se é difícil rotular o trabalho segundo correntes estéticas da literatura brasileira, com seus 15 livros publicados, é possível notar que ele bebeu de diversas fontes literárias. “Desde o romantismo (pelo teor de seus temas) até a linguagem modernista, passando pelas imagens de sugestão impressionista, a preocupação formal do parnasianismo, as motivações do bucolismo árcade e as metaforizações de caráter simbolista”, afirma o professor de literatura José Neres. “Catulo, assim como Augusto dos Anjos, Sousândrade e outros autores, é inclassificável dentro da linha temporal de nossa literatura”, arremata.
Cantarole por aí
O jornalista Gonçalo Júnior fez uma seleção das músicas mais conhecidas de Catulo da Paixão Cearense
Flor Amorosa (1880)
Último registro musical de Joaquim Antonio Callado (veio a público um mês após sua morte), a música ganhou letra de Catulo anos depois,
consagrando-se no cancioneiro.
Caboca de Caxangá (1913)
Apontada como a primeira música caipira gravada, ela é exemplo do pioneirismo de Catulo.
Luar do Sertão (1914)
Luiz Gonzaga transformou-a na mais conhecida composição de Catulo. A música já fazia parte, havia bastante tempo, do imaginário popular quando ele a gravou. O primeiro registro de que se tem notícia é de 1914, na voz de Eduardo Neves. Considerada por muito tempo o hino nacional informal brasileiro, soma mais de mil gravações em todo o mundo.
Ontem ao Luar (1914)
Ganhou status por sua beleza melódica e poética, que a tornou bastante popular. Foram feitas dezenas de regravações. Uma das últimas, com Marisa Monte, é acompanhada por um solo de guitarra.
Escuta só
Obra musical de Catulo é revista em coletânea
O Selo Sesc aproxima Catulo da Paixão Cearense de quem já o conhece ou já cantarolou Luar do Sertão. No CD A Paixão Segundo Catulo, as letras ganham roupa de festa com novos arranjos do produtor Mário Sève e consagradas vozes do cancioneiro nacional para fazer jus à poesia de Catulo. Intérpretes como Joyce Moreno, Leila Pinheiro, Alfredo Del-Penho e Claudio Nucci fazem parte dessa homenagem ao compositor. Um livreto de 24 páginas acompanha o CD, cuja arte é assinada pelo veterano Elifas Andreato. Confira o álbum no Spotify.