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Paisagens literárias
Imagine embarcar em uma longa viagem de trem e esquecer-se de levar consigo uma câmera fotográfica? Foi isso que aconteceu em 1968 com o escritor e documentarista Peter K. Wehrli ao viajar a bordo do famoso Expresso do Oriente, partindo para o leste da Europa. Desde então, Peter passou a escrever fotografias... E a filmar poesia. Escritor e redator em canais de televisão da Suíça até 1999, ele produziu diversos programas de literatura, além de documentários sobre escritores como o poeta suíço Blaise Cendrars (1887-1961) em O Mundo Chama-se Brasil. Contador de histórias, vestiu-se do espírito on the road da geração beatnik e até hoje, aos 77 anos, segue novas aventuras na estrada e na escrita. No mês passado, Pedro – como prefere ser chamado no Brasil – ministrou a oficina Literatura e Cinema e estreou o documentário Entre as Culturas: Julia Mann (2016), no Centro Histórico de Paraty, pelo Sesc Paraty e Universidade Federal Fluminense. Nesse último filme, ele traduz em imagens e palavras a inusitada história da brasileira, mais especificamente da paratiense Julia Mann, mãe de dois dos mais importantes escritores alemães do século 20: Thomas e Heinrich Mann. Nesta conversa, Peter K. Wehrli fala sobre os bastidores desse documentário e sobre a vocação de fotógrafo de paisagens literárias.
Família Mann
Quando estava no ginásio, Frido Mann [neto de Thomas Mann] entrou na minha classe. Foi quando descobri que o grande escritor Thomas Mann não era filho de uma alemã, mas de uma brasileira. Foi em 1956 que tive a ideia de fazer uma reportagem sobre o assunto. Mas somente em 1994, quando Frido me chamou para viajarmos juntos a Paraty para fazer essa pesquisa sobre Julia Mann, consegui escrever esta história. A matéria foi publicada num jornal com o título Um Brasileiro Chamado Thomas Mann. Foi aí que o produtor de cinema Peter Spoerri [indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1991 por A Viagem da Esperança] me procurou e propôs um filme sobre a pesquisa. Como foi difícil encontrar financiamento, somente em 2012 o projeto começou a virar realidade. A filha de Johann Ludwig Herrman Bruhns, fazendeiro que possuía plantações de açúcar entre Santos e o Rio de Janeiro, e de Maria Luísa da Silva, brasileira com sangue português e indígena, foi a inspiração. Também seguimos as memórias de Julia em Aus Dodos Kinderheit [numa tradução livre seria A infância de Dodô, apelido de Julia quando criança], publicado em 1958 pelo neto Klaus Mann. Vimos, pelos depoimentos no documentário, como ela influenciou a obra dos dois filhos, apoiando-os e incentivando-os na cena literária. Tanto que Thomas Mann disse, em entrevista a Sérgio Buarque de Hollanda [então correspondente de O Jornal, na Alemanha, em 1929], quando ganhou o prêmio Nobel de Literatura, que sua mãe era brasileira e que devia a ela sua vocação artística, apesar de poucos saberem disso antes dessa declaração.
Pé na estrada
Minha vontade de viajar foi despertada por uma viagem com a Elizabeth Mann-Borgese, a filha mais nova de Thomas Mann, que um dia me conduziu da Suíça até Madras, na Índia, em 1964. Assim começou minha curiosidade pelo mundo, por diferentes culturas e minha decisão por me tornar escritor. Essa é uma consequência da presença da família Mann na minha vida. A viagem no Expresso do Oriente, em 1968, deu início à minha obra principal, que se chama Catálogo de Tudo ou Catálogo das 134 Mais Importantes Observações Durante uma Longa Viagem de Trem [sem edição em português]. Essa viagem partiu da minha vontade de sensibilizar minha percepção. Em 1968, fiz parte do movimento hippie e vivi a experiência correspondente ao on the road de Jack Kerouac. Tanto que, mais tarde, quando trabalhei em jornais e na televisão na Suíça, tirava férias em dezembro e viajava para países tropicais. Foi assim que cheguei ao Brasil, pela primeira vez, em 1972.
Catálogo de Tudo
Para mim, a televisão foi uma escola de cinematografia literária. Se você escreve sobre qualquer acontecimento, você já faz na língua, e não no cinema, uma decupagem das sequências da ação. E a verdadeira aventura da cinematografia é criar essa imagem. Por isso, na minha obra Catálogo de Tudo comecei a escrever fotografias. E essa técnica de criar fotografias é por meio da língua e não do aparelho fotográfico. Esse catálogo é um trabalho eterno. Neste ano, completo 50 anos nesse projeto e, a cada dez anos, quero ter uma nova edição – até agora foram sete. Gosto também do catálogo publicado em partes. Como o Catálogo Moçambicano, o Catálogo Macauense, Catálogo Austríaco. Todos são compostos por essas fotografias literárias que podem ter desde quatro linhas a três páginas. Já não levo mais minha câmera, mas o iPad, onde está incluída uma câmera; e às vezes o utilizo para fazer notícias visuais, mas, em casa, transcrevo as notas visuais em poesia. Quanto menos informações tenho de um país, mais me atrai o destino.
Agora, o país que me atrai é a Coreia do Norte. Mas eu, sistematicamente, só conheço o mundo lusófono. Fiz aulas de português em Zurique na década de 1970 e, quando era o período de férias, meu professor sugeriu que fôssemos praticar em Portugal. Mas eu, louco como sou, fui praticar em Macau. Foi quando a Swiss Air me chamou para fazer uma matéria sobre Macau para a revista de bordo. Não gosto de ficar num lugar onde só posso fazer turismo. Preciso trabalhar em algo. Outra coisa: se não ando a pé pela cidade não posso pretender conhecê-la. Sempre que chego a um país novo, vivencio o lugar como uma criança que olha o mundo ao redor pela primeira vez.
Foto: Andréa Dórea
Sempre que chego a
um país novo, vivencio
o lugar como uma criança
que olha o mundo ao
redor pela primeira vez