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Caixeiro viajante de histórias
O araraquarense Ignácio de Loyola Brandão é um autor incansável. Aos 81 anos, contabiliza nada menos que 44 livros publicados. Depois de uma pausa de mais de uma década, esse contador de causos está prestes a lançar um novo romance – Enlouquecendo Calmamente (Ed. Global), sobre o atual momento do Brasil. Tamanha produção e criatividade poderiam ser explicadas pelo flanar de Ignácio. É que o escritor vê poesia ao caminhar pelas ruas de São Paulo e de outros estados brasileiros para onde viaja para dar palestras ou compartilhar memórias, como no show musical Solidão no Fundo da Agulha, acompanhado pela filha e cantora Rita Gullo. Colunista do jornal O Estado de S. Paulo há mais de duas décadas, Ignácio guarda boas lembranças do tempo em que trabalhou em revistas como Planeta, Claudia e Vogue, entre outros veículos. Resistente às redes sociais, opta por um café e dois dedos de prosa tête-à-tête. Nessa conversa, ele fala de cinema, causos do jornalismo e processo criativo.
Cinéfilo de carteirinha
Eu era pobre. Meu pai era ferroviário. Portanto, eu não podia ir ao cinema todo dia como gostava. Mas eu lia, desesperadamente, todos os jornais – e, curiosamente, chegavam vários em Araraquara. Era um milagre. Lia Muniz Viana, um grande crítico, Paulo Emílio Sales Gomes e o mestre de todos os críticos: Francisco Luis de Almeida Salles. Um dia, soube que o crítico de cinema não pagava por ingressos. Fui ao jornal Folha Ferroviária – eu era um cara magrinho e esquisito, com essa cara braba, feia – e perguntei ao diretor do jornal, Lázaro Rocha Camargo, se era verdade que crítico de cinema ganhava ingresso. Ele afirmou que sim, mas me disse que não havia críticos em Araraquara. Logo respondi: “Pois vai ter”. Tentei fazer uma crítica, copiando e reeditando, porque o jornalismo é um “ajeitamento das coisas”. Meu professor de português, Jurandir Ferreira, corrigia. Aliás, devo muito aos meus professores. Devolvi a crítica e ela foi publicada. Depois uma segunda, uma terceira... E, quando chegou a quarta, perguntei ao diretor do jornal: “Sou o crítico [de cinema] do jornal?”. Ele respondeu que sim e ganhei o [ingresso] permanente. Passei a ir todos os dias ao cinema, que era a coisa que eu mais queria.
Jornalista e cronista
Um jornal diário, O Imparcial, me chamou sete meses depois [do trabalho na Folha Ferroviária]: foi minha primeira promoção. Não ganhava nada, mas eu tinha [ingresso para o cinema] “permanente”. Fiquei cinco anos nesse jornal. Lá me ensinaram a escrever reportagens, entrevistas. Aprendi a fazer clichê. Vivi todos os momentos do jornalismo – desde o linotipo até hoje. Vim para São Paulo para procurar emprego. Já ia embora porque o dinheiro estava acabando. Até que encontrei um amigo, Amauri Medeiros, que trabalhou comigo no Imparcial. Ele me disse que tinha uma vaga no Última Hora. Quando fui para a entrevista, também tinha uns sete jovens, como eu, para a vaga. Mas consegui. Fiquei nove anos no jornal. Eu me diverti e sofri, porque o Samuel Wainer era um mito, mas pagava mal. Mesmo assim, a gente adorava, porque ele tinha feito um jornal completamente diferente, novo. Ele falava assim: “Ignácio, você sabe que você é o melhor repórter da casa?”. Tempos depois, descobri que ele tinha dito isso para todos. Eu me diverti muito sendo jornalista. Fui muito feliz apesar de ganhar mal. Até porque dinheiro não é meu objetivo. Meu objetivo é escrever e tenho essa felicidade. Hoje sou um cronista. Outro dia, um amigo de Araraquara me perguntou: “Você não trabalha mais? Só escreve?”. Pois é, só escrevo.
Processo Criativo
Meu processo é andar e anotar. Não dirijo, nem sei dirigir. Caminho por esta cidade. Agora menos, com o pé quebrado. Ando de ônibus, metrô, táxi e olho tudo em volta. Minha professora falava: “Essa história de inspiração não existe. Não surge algo do nada e você escreve um poema. Trata-se de observar as coisas em volta, perguntar e conversar”. Acordo às 6h. Mas, quando estava escrevendo o livro [Enlouquecendo Calmamente], levantava às 5h e escrevia até as 11h no meu escritório, fechado. A única companhia, nessa hora, é do meu gato, que fica em cima da impressora, quieto, me olhando. Essa hora não tem telefone, e-mail, não tem barulho. Não abro e-mail nem a pau. Só depois desse horário é que começo a ler o jornal, depois almoço. Quando vou abrir os e-mails, leio: “Já te mandei seis e-mails hoje e você não me respondeu”. Na hora deleto. Que pressa é essa? E se fosse uma carta pelo correio? Demoraria mais! Também não tenho celular, e o que eu uso é o da minha filha, quando viajo. Encontro quem eu quero e não quero ser encontrado. Daí essa minha paz de espírito. Não quer dizer que eu também não tenha ansiedade... Mas uma coisa é tão boa: não tem nenhum zap zap [mensagem de WhatsApp]. E para que Instagram? Para ver o prato que o cara está comendo? Eu não, eu quero comer aquele prato. Também não quero ficar com inveja.
Gêneros literários
Sem disciplina não dá para escrever. Tenho o projeto, o planejamento: sei o começo e o fim, que posso mudar, mas você tem que saber para onde vai. Não se pode chegar à estação rodoviária sem saber para onde você quer ir. No romance, você também tem que saber. Duas ou três vezes, mudei o objetivo [do último livro]. Portanto, faço um esquema do que quero: tem este e aquele personagem e eu quero que eles cheguem aqui ou ali. Já o conto, faz muito tempo que não escrevo. No fundo, Enlouquecendo Calmamente é uma série de contos sobre o Brasil de hoje. A crônica, ela é outra coisa: a crônica é um Instagram. Um dia, estava no ônibus e duas mulheres conversavam à minha frente. Uma falou para a outra: “Me diga você, que é a inteligente do bairro: o que é poblema e pobrema?”. A outra respondeu: “Como você é burra. Poblema você tem com seu marido, seu vizinho, com a polícia. Agora, pobrema são as contas da escola”.
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Meu objetivo é escrever e tenho essa felicidade.
Hoje sou um cronista. Outro dia, um amigo de Araraquara me perguntou: “Você não trabalha mais? Só escreve?”. Pois é, só escrevo.
Foto: Leila Fugii