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Negros na mídia

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

por Suzane Jardim


Os livros didáticos acobertaram por muitas décadas a história dos negros no Brasil. E a mídia repetiu o mesmo esquecimento, seguido de estereótipos. Entre retrocessos e avanços, de que forma negros e negras são representados em telenovelas e na imprensa? Quem reflete sobre esse cenário é a historiadora Suzane Jardim, assessora de projetos em relações raciais e educação na Ação Educativa, organização inscrita no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo. Autora do artigo Por Que Racializar o Discurso da Esquerda, publicado em abril pelo periódico Le Monde Diplomatique Brasil, Suzane conta sua trajetória e reflete sobre a forma como a população negra é retratada pela mídia brasileira.

 


Suzane Jardim esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 12 de julho de 2017.


De Diadema para a USP
Cresci em Diadema, estudei em escola pública e fui mãe aos 17 anos. Tive a sorte de conseguir entrar na Universidade de São Paulo (USP) para cursar História. Todo mundo que terminava o ensino médio ia trabalhar em lojas de departamento, lanchonetes, shopping. Gostava muito de História no colegial e achei que, dessa forma, ganharia dinheiro prestando assessoria para telenovelas ou escolas de samba. Quando entrei na USP, havia pouquíssimos negros. Foi um dos primeiros anos de cota para escolas públicas. Havia um estranhamento baseado em estereótipos de ambas as partes. Do tipo: “Me ensina a sambar?”. Essas questões e uma série de outros acontecimentos foram me aproximando da minha área de estudo.

 

Deu no Le Monde
Na capa de outubro passado da revista Le Monde Diplomatique Brasil, o cartum de uma pessoa com traços negros dizia: “Dias melhores virão! Para os patrões”. A figura usava os traços negros típicos do blackface norte-americano para reforçar a imagem de um povo brasileiro ignorante e incapaz de agir politicamente. Essa construção de imagens sempre teve função política – no passado para fixar o negro em um lugar distante da política e da intelectualidade. Todo mundo funciona com base numa preconcepção do outro. E, quando se vive numa sociedade em que o racismo é estrutural, é impossível não conectar as imagens racistas difundidas pela mídia ao nosso cotidiano. Fiz, então, um artigo [sobre a capa do Le Monde] e me chamaram para um debate na revista, que reunia diversos pensadores negros para sugerir modos para a publicação se responsabilizar diante do caso. Vários questionaram quantos negros trabalhavam na redação e escreviam para a revista. Essa exclusão tira o negro como produtor de conhecimento. Não só nas mídias como nas ciências básicas, na política, em todo lugar. Até os anos 1990, se você abrisse um livro didático, os negros apareciam assim: teve a escravidão, acabou a escravidão, pronto. O negro na história era totalmente apagado e aprendíamos isso.

 

Primeira telenovela
Nas novelas brasileiras, você só via o negro no papel de escravo, de empregada. Até que, em 1975, Pecado Capital é a primeira telenovela a colocar um negro de terno e gravata. Só que o personagem interpretado pelo ator Milton Gonçalves não tinha nenhuma ligação com outro negro, nem parentes. Joel Zito Araújo [cineasta e doutor em Ciências da Comunicação e Artes] fala sobre o estereótipo do negro bom: ele é colocado na novela mostrando que o negro até pode ser inserido na sociedade branca, desde que abandone suas origens e costumes e perca a ligação com seu povo. Nas mídias, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, contamos “marcos”: a primeira negra que ganhou o Oscar, o primeiro beijo inter-racial nas telenovelas. Se formos pensar, esses “avanços” trazidos por essas mídias resultaram em alguma mudança estrutural para a população negra?

 

Representação versus realidade
Atualmente, vemos uma mudança nas mídias, que perceberam que a população negra consome. Há mais negros nos comerciais e nas telenovelas. O mercado agora nos mostra a pessoa negra confiante, empoderada e consumidora. Propagandas de xampu e de maquiagem, por exemplo, usam jargões militantes disseminados em redes sociais. Um dos modos de provar a existência do racismo sempre foi apontar a falta de negros na televisão brasileira, e agora começamos a vê-los e a nos levantar diante das ausências. Quer dizer, então, que o racismo acabou? Angela Davis [filósofa norte-americana, ícone de lutas políticas do movimento negro e do feminismo] diz [em Democracia da Abolição] sobre a experiência norte-americana: “E muito mais fácil mudar os discursos do que as instituições”. É relativamente fácil pintar uma empresa de preto e jogar palavras como diversidade e empoderamento como lemas, mas a estrutura da instituição – aqueles que ocupam cargos de poder e as lógicas de desigualdade que ela ajuda a sustentar – se mantém.

 

“Turbante-se” ou não
Hoje, as polêmicas racistas ganham as redes sociais, porém não todas elas. A questão do turbante é um exemplo: mesmo com tantas questões e depoimentos de racismos cotidianos, coloca-se a questão de uma suposta proibição do uso de turbantes como se houvesse reuniões mensais de mulheres negras para arrancar turbantes de pessoas brancas nas ruas. Noticia-se reforçando a concepção de que “o perigo negro ronda a sociedade”. Enquanto isso acontece, Rafael Braga continua preso e dele falamos pouco, sendo esse estereótipo do “perigo negro” parte do que mantém vários como ele nas prisões atualmente.

 

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Todo mundo funciona com base numa preconcepção do outro. E, quando se vive numa sociedade em que o racismo é estrutural, é impossível não conectar as imagens racistas difundidas pela mídia ao nosso cotidiano

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