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Frederico Azevedo da Costa Pinto

Professor da USP especialista em patologia experimental fala sobre as consequências de uma sociedade que não se permite adoecer

Graduado em Medicina Veterinária pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado e doutorado em Patologia Experimental pela mesma instituição, Frederico Azevedo da Costa Pinto investiga como a sociedade enxerga indivíduos doentes e lida com eles. Atualmente, o especialista reúne dados para a pesquisa Homem Moderno: Um Animal Privado Socialmente do Direito de Adoecer, que está desenvolvendo no Instituto de Estudos Avançados da USP.  Nesta entrevista, ele fala sobre como mudanças sociais e padrões ditados pela mídia forjaram expectativas de produtividade do trabalhador moderno. O pesquisador acredita que a necessidade, e o direito individual, de se dar o tempo de adoecimento e recuperação, como acontece com outros animais, não deve ser um luxo destinado a poucos na sociedade.


Foto: Leila Fugii


Como surgiu a pesquisa Homem Moderno: Um Animal Privado Socialmente do Direito de Adoecer?
Sou veterinário, mas nunca cliniquei de fato. Na verdade, minha primeira formação foi Engenharia. Meu interesse sempre foi por pesquisas e depois foi trabalhar com experimentação. Sempre usei roedores para fazer perguntas biomédicas e, a partir dessas questões, passei a estudar o comportamento animal a fim de entender como as doenças modificam o comportamento dos animais de modo geral, inclusive dos seres humanos, que se comportam, na maior parte das vezes, como qualquer outro animal.  Meu interesse é pesquisar como o cérebro pode controlar nossa reação às doenças; como favorecer ou atrapalhar nossa capacidade de responder a uma infecção, por exemplo. No caso, essa área de pesquisa denominada comportamento doentio busca entender como a doença acontece no nosso corpo.

E como seria esse comportamento?
Uma gripe, por exemplo, faz com que a gente desenvolva perda de apetite, perda de interesse em contatos sociais, perda de libido... E esse comportamento tende a ser igual em qualquer animal – cachorro, camundongo, vaca e até em insetos. Daí, a gente percebe que, em animais de experimentação, a forma como eles expressam a doença depende de uma série de fatores e de um contexto social. Por exemplo: se você observar um cachorro numa matilha, sempre haverá um dominante e outro subordinado dentro do grupo. E a forma como eles expressam a mudança de comportamento durante a doença varia de acordo com a hierarquia. Os animais expressam a doença dependendo se têm ou não têm a possibilidade de adoecer.

Nesse caso, os animais mais fracos apresentariam a doença, em detrimento do mais forte no coletivo?
Isso acontece para ambos. Se o animal precisa expressar um comportamento subordinado a outro bicho dominante, ele não pode deixar de fazer suas tarefas. Ele cumpre esse papel social de prestar atenção no outro. Dessa forma, o subordinado pode rechaçar a necessidade de ficar doente em prol de seguir dando atenção ao animal dominante. No entanto, também o dominante se fragiliza com a doença: se nesse grupo o dominante estiver doente e o subordinado perceber isso, o segundo pode tentar atacar o primeiro para ocupar a posição de dominante. Então, o comportamento diante da doença desestabiliza as relações sociais, mas varia muito de acordo com a estrutura social do grupo.

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O comportamento diante da doença desestabiliza as relações sociais, mas varia muito de acordo com a estrutura social do grupo


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Como age o ser humano quando adoece?
A sociedade cria uma forma de encarar os doentes. E esse é um assunto novo, levantado há aproximadamente cinco anos. Lembro-me da capa de uma revista que questionava por que um CEO estava muito mal de saúde com apenas 40 anos. Ele tinha rechaçado, durante muito tempo, a “permissão” para adoecer na preocupação por se manter ativo e dominante. Trabalhava horas e horas por dia para se manter numa posição de destaque. Só que uma hora, ele não aguentou mais. A forma como as pessoas ficam ou não doentes socialmente depende muito da permissão que essa pessoa se dá, ou tem, de adoecer. Se analisarmos a biologia do comportamento dos animais, denominada etologia, há várias classes de comportamento: o reprodutivo, que envolve o comportamento sexual e a gravidez, por exemplo, o comportamento alimentar, e o adoecer, que também é um comportamento como todos os outros. Enquanto os bichos têm que se reproduzir, comer e dormir, eles também precisam adoecer: isso faz parte da resposta biológica natural do organismo animal.

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Enquanto os bichos têm que se reproduzir, comer e dormir, eles também precisam adoecer: isso faz parte da resposta biológica natural do organismo animal


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Assumir uma posição de destaque na empresa custe o que custar, pagando o preço com a saúde, nos remete aos yuppies dos anos 1980, época em que se criou o termo workaholic. Foi aí que essa proibição para adoecer começou?
Estou começando a levantar dados preliminares que serão compilados para a pesquisa. Na década de 1980, teve início essa ambição pelo sucesso rápido e essa geração yuppie foi a que provou isso ao máximo. O que pretendo entender é: o que fez com que algumas sociedades de determinados países tivessem percebido mais cedo, ou melhor, tivessem desenvolvido essa consciência social mais cedo? Ao mesmo tempo, temos países que seguem até hoje esse padrão de comportamento workaholic e seguem estimulando a competitividade nos jovens. No entanto, vemos vários exemplos de países que há no mínimo uma década seguem na contramão desse pensamento e já reduziram a jornada de trabalho e a velocidade da rotina. São países que falam de sucesso de um ponto de vista holístico.

A consciência social é resultado dessa ambição por um cenário socioeconômico positivo diretamente ligado à produtividade 24 horas por dia?
Mesmo em termos de desenvolvimento econômico de um país, o Estado paga a conta, mais cedo ou mais tarde, da quantidade de pessoas que adoecem para manter um superávit. Inclusive, o aspecto radical desse sintoma é o suicídio. Sem dúvida, o melhor exemplo de país que ainda responde dessa maneira competitiva são os Estados Unidos, que impulsionaram esse comportamento ao máximo. No entanto, se formos analisar, os Estados Unidos têm uma história recente de desenvolvimento, enquanto países do velho continente têm uma tradição antiga. Talvez o norte da Europa, por exemplo, já tenha passado por esse problema, mas hoje vive uma pós-era que aposta na redução de jornada de trabalho, numa maior licença à maternidade e à paternidade e numa renda mínima suficiente para que o trabalhador não tenha o sucesso financeiro como missão. Tudo isso na tentativa de fazer as pessoas assumirem outros objetivos na vida.



 


Foto: Leila Fugii

 

O filósofo Michel Foucault falava do corpo produtivo (“O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”) e já associava a questão das academias de ginástica como parte de uma agenda da produtividade. Podemos fazer uma relação entre esse pensamento e sua pesquisa?
Podemos. Difícil é que, em vários momentos, somos influenciados inconscientemente por essa imersão social e não conseguimos mais separar quais são os nossos reais desejos e qual é o desejo social. Também não conseguimos perceber quais influências nos rondam o tempo inteiro para tomarmos decisões. Gosto de andar de bicicleta, por exemplo, me sinto bem com a atividade, sei que é saudável, porém, indiscutivelmente, isso também é parte de uma agenda social que me influencia. Em termos de mercado de trabalho, as empresas que já perceberam esse poder de influência não forçam o indivíduo a trabalhar, mas investem em uma academia dentro da empresa para que o funcionário pratique exercício físico. O plano é mantê-lo saudável, pensando, obviamente, que ele vai faltar menos ao trabalho e se tornar mais produtivo. Isso é bom ou ruim para a empresa e para o trabalhador? Não dá para considerar um grupo ou uma sociedade como sendo “a boazinha” porque tenta influenciar os indivíduos a se manterem produtivos ao cultivar um corpo saudável. Certamente, não se trata de um benfeitor, mas de uma tentativa de fazer com que o indivíduo fique funcional todo o tempo.

Sendo assim, não se permitir adoecer entrou na lista dessa agenda moderna que enfatiza a importância do corpo magro e dos exercícios físicos diários?
Um dos fatores que mais geram radicais livres no nosso corpo é o excesso de atividade física. Tenta-se combater esse efeito com antioxidantes, mas o fato é que se manter ativo até certo grau é bom, mas exageradamente, não. Esse é o custo. Criar uma resposta imunológica contra uma infecção também gera um custo absurdo do nosso organismo porque produzimos muitas células novas, proteínas, anticorpos... E se o indivíduo dedica muita energia para produzir testosterona e músculo, por exemplo, ele certamente tem uma capacidade imunológica menor nesse momento. Sabemos que, em alguns casos, o animal dominante não necessariamente é o mais resistente a uma doença. 

Ainda sobre essa obrigação de ser magro e praticar exercícios físicos, há uma objeção para a empregabilidade de obesos?
A obesidade é uma doença social importante e, nesse caso, não estou falando de indivíduos que por alguma questão metabólica têm dificuldade em perder peso. Vejo um paradoxo: a mídia cria esse ideal de ser humano magro/saudável, mas a quantidade de marketing gerado para vender uma alimentação não saudável, de produtos industrializados é absurda.  Há uma incongruência. Por isso, outra coisa que observo é o quanto a intolerância social difere em relação a determinadas doenças. Uma das bases da pesquisa é como o doente é visto hoje em dia. Se ele é “responsável” ou não pela sua doença, lida-se de diferentes formas: vítima ou algoz. Se a pessoa é tida como responsável pela própria doença, ela é a causadora do próprio sofrimento: “Quem manda fumar, quem manda comer porcaria, quem manda se drogar etc.” Os obesos estão entrando neste hall de culpados.

Diante desse cenário, como fica a indústria farmacêutica?
Esse é outro ponto. Não quero que isso vire uma briga com a indústria farmacêutica. Não sou contra drogas que são capazes de nos livrar de problemas reais. No entanto, houve um tempo em que se você estava gripado, por exemplo, o recomendável era ficar em casa, repousar, tomar uma canja e esperar a doença passar. Era essa a sabedoria. Mas, como a gente se sente na obrigação de estar produtivo e saudável o tempo inteiro, seja por medo de perder o emprego ou de mostrar aos outros que somos frágeis, tomamos um antigripal que em nada vai curar aquela gripe. É como se ficar doente fosse motivo de vergonha. Mas a grande vantagem – que também pode ser o grande tiro no pé dos seres humanos – é que temos um arsenal farmacológico. Até três anos atrás, as classes de medicamentos mais vendidas pela indústria farmacêutica eram: os antigripais, os analgésicos, os antidepressivos e os medicamentos para disfunção erétil. Não que esses medicamentos não sejam importantes, mas a quantidade do que é vendido mostra essa preocupação com um bem-estar 24 horas por dia. Qualquer infelicidade desloca a pessoa de uma ideia de perfeição. Imagina chegarmos ao ponto de medicar alguém porque ele ou ela sente tédio?

 

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Não sou contra drogas que são capazes de nos livrar de problemas reais. No entanto, houve um tempo em que se você estava gripado, por exemplo, o recomendável era ficar em casa, repousar, tomar uma canja e esperar a doença passar. Era essa a sabedoria
 

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A figura do workaholic seguirá como um modelo para as próximas gerações?
Em grandes centros de trabalho, esse padrão continua e nada mudou do que já vimos nos últimos 30 anos. No entanto, tenho a sensação de que essa figura é mais representativa em metrópoles. Fiz um levantamento na Inglaterra com dados da saúde pública e acho que os resultados podem se repetir na capital do estado de São Paulo. Um mapa mostra que em Londres, por haver grande competição no mercado de trabalho, as pessoas que para lá migram já sabem, antecipadamente, que dedicarão várias horas ao trabalho. E isso reflete em um número muito pequeno de perda de dias de trabalho. Se olharmos para os dados de hospitalização e atendimento em prontos-socorros de Londres, veremos o mesmo número de atendimentos para situações corriqueiras que no interior da Inglaterra. Qual a lógica disso?  Em Londres, as pessoas podem se medicar, mas continuam trabalhando. E os atendimentos na capital londrina são do tipo: lesão por esforço repetitivo, dor na lombar etc. Situações que deveriam levar o trabalhador a descansar.

Esse quadro é o mesmo para trabalhadores autônomos e funcionários contratados de uma empresa?
Nesse mesmo levantamento que fiz na Inglaterra, o número de dias perdidos entre trabalhadores autônomos é menor que o de empregados estáveis. Então, o autônomo falta menos porque a renda dele depende do seu volume de trabalho. Ele pensa várias vezes antes de se ausentar. Por outro lado, nos países onde há funcionalismo público estável, os funcionários públicos faltam mais do que os funcionários privados. É como se a estabilidade no emprego garantisse o direito de expressar uma doença. Todos buscam atendimento médico, só que aqueles que podem expressar a doença ficam em casa, e isso é melhor para todo mundo: ele não vai transmitir uma doença infecciosa para os colegas, nem vai ficar deprimido porque nunca pode faltar ao trabalho. Não tenho dúvidas de que a quantidade de pessoas aposentadas por invalidez, futuramente, será de uma faixa etária menor.

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Qualquer infelicidade desloca a pessoa de uma ideia de perfeição. Imagina chegarmos ao ponto de medicar alguém porque ele ou ela sente tédio?


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Dá para fazer uma diferenciação entre ricos e pobres: quem é mais penalizado no mercado de trabalho por adoecer?
Talvez o problema seja igual para todo mundo. Quem é rico e está em posição de destaque numa empresa que responde por um volume de lucro está na posição de não poder faltar pela necessidade de se mostrar dominante. Ele vai sofrer da mesma forma que outros, porque será penalizado quando estiver doente e ausente. Isso também acontece com alguém de renda inferior que ao adoecer e faltar no trabalho poderá ser demitido e substituído por outra pessoa com mais facilidade. Não tenho dúvida de que com a precarização das leis trabalhistas isso só vai piorar. A terceirização e a flexibilização da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] vão piorar isso: essa pessoa que ficar doente será reposta por outra. Talvez, proporcionalmente, as coisas sejam parecidas, mas em termos absolutos as pessoas de renda mais baixa são mais afetadas.

Quais seriam as doenças resultantes desse ritmo de trabalho extenuante?
Essa é uma questão difícil. O que acontece é que o estresse contínuo se associa a várias doenças, como as cardiovasculares, diabetes e mesmo câncer. Mas todas essas também são provocadas por outros fatores, são doenças multifatoriais. Não temos dados epidemiológicos para apontar a relação entre essas doenças e a questão do trabalho. Como falamos, acredito que esse quadro começou a chamar atenção nas três últimas décadas e, se assumirmos esse período, veremos que essa geração ainda não está sofrendo totalmente as consequências do que estamos falando. Quer dizer, a geração dos anos 1980 e 1990, fortemente impulsionada por um estilo de vida workaholic, provavelmente está começando a desenvolver os problemas decorrentes disso agora. Se, por um lado, essa análise é mais fácil de ser feita hoje em dia, pela informatização de dados de, praticamente, todos os sistemas de saúde em metade dos países do mundo, por outro lado, teremos que realizar uma metanálise de tudo que foi publicado nas últimas décadas na área de saúde para podermos, então, identificar essas doenças.

 

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