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Experiências quilombolas
Quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais ao longo dos séculos. Neste ano, 103 comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao Ministério da Cultura. Número que se soma a um total de 2.962 comunidades quilombolas espalhadas pelo território nacional. Tendo em vista esse cenário, será que basta o reconhecimento do território para que haja a garantia dos direitos dos quilombolas? Discutem o tema a pesquisadora Rute Costa, membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que atua na comunidade quilombola Machadinha, em Quissamã, no norte fluminense, e a jornalista Maitê Freitas, idealizadora e realizadora do projeto multimídia Samba Sampa e da web-série Quando Zumbi Chegar.
Ilustração: Marcos Garuti
Uma nova abolição
por Rute Costa
A escravidão de milhões de africanos e afrodescendentes foi um crime coletivo e hediondo praticado pela colonização portuguesa no Brasil, por quatro séculos. Milhões de homens, mulheres e crianças eram transportados nos porões insalubres de navios negreiros, onde o pé-direito era de um metro e meio de altura. Ouviam-se uivos de cólera e desespero, gemidos da dor do sequestro, da saudade da terra, da incerteza do futuro. Ao chegarem aos portos, essas “peças” eram batizadas e recebiam o símbolo de seus respectivos proprietários, com ferro em brasa. E, para conter as insurreições, os grupos eram estrategicamente organizados com indivíduos de etnias diferentes, que falavam línguas incompreensíveis entre si.
Diante do trauma irreversível da desculturação, eram levados às fazendas, onde trabalhavam por 16 horas diárias sob o chicote de seus feitores. A lida exaustiva no eito, a má nutrição, os estupros, os castigos legitimados pelo Código Criminal do Império e as condições deletérias das senzalas faziam com que o tempo de vida de um escravizado, no Brasil, não passasse de 12 anos. A mortalidade superava a natalidade e demandava o constante tráfico de escravos.
Apesar de tudo, onde houve escravidão, houve resistência à violência senhorial institucionalizada. Os quilombos traduzem a tentativa de implantação de outra forma de vida e de uma estrutura política na qual todos os oprimidos eram acolhidos em um organismo social e econômico singular, oponente às instituições escravocratas. Mesmo perseguidos e ameaçados, os heróis e heroínas negros marcaram a história do país. A abolição da escravatura, por sua vez, desacompanhada de medidas que sinalizassem a responsabilidade social dos brancos e de uma estrutura socioeconômica reparadora das desigualdades, não implicou a democratização da ordem social. A elite tinha prosperado, enquanto os negros passaram de cativos a excluídos.
Cem anos após a pseudoabolição, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, previu a concretização do direito de terra aos coletivos quilombolas, que por centenas de anos aguardam o direito íntegro à liberdade e a possibilidade de viver de modo digno. O artigo 68, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, afirma “aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras [...] o reconhecimento à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
A titulação da terra de comunidades remanescentes de quilombo vincula-se a uma identidade coletiva, pois a terra representa o elo entre os indivíduos que compartilham da cultura, da identidade e do passado de resistência à opressão. Garante a reprodução étnica, cultural e social dessas comunidades; proteção e valorização do patrimônio cultural, dos bens de natureza material e imaterial, das criações científicas, artísticas e tecnológicas; das obras, objetos, sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico e científico de matriz africana, conforme estabelecem os artigos 215 e 216 da Carta Mãe. Diferentemente do direito de propriedade do código civil, cujo caráter particular aponta para uma perspectiva eminentemente econômica, o direito à terra quilombola é o direito de existir.
Existem cerca de três mil comunidades de quilombo reconhecidas em todo o território nacional, porém o cenário em que vivem permanece fatídico, marcado pela negação de direitos transindividuais. Apenas 10% das comunidades remanescentes de quilombo possuem o título da terra, e consequentemente, sem a sua posse, está negada a superação da pobreza e melhoria da qualidade de vida. As desigualdades ultrapassam a distribuição territorial e se refletem nas condições de vida iníquas, um cenário que esboçaremos a seguir.
O Programa Brasil Quilombola (2012) mostrou que 75,6% das famílias quilombolas estão em situação de extrema pobreza (com renda per capita inferior a 70 reais mensais), 63% das casas quilombolas possuem piso de terra batida, 62% não possuem água canalizada, 36% não possuem banheiro ou sanitário, 76% não possuem saneamento adequado, 58% queimam ou enterram o lixo no território e 78,4% possuem energia elétrica. Quanto à saúde, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (2012) apontou para a persistência de altas prevalências de desnutrição crônica entre quilombolas menores de cinco anos de idade (16%), enquanto a média nacional para o mesmo indicador é de 1,7%. A Pesquisa de Avaliação da Situação de Segurança Alimentar e Nutricional de Comunidades Quilombolas Tituladas (PASCQ), por sua vez, mostrou que 20% das crianças quilombolas avaliadas encontram-se com sobrepeso, a mais nova e comum expressão de insegurança alimentar e nutricional. No quesito educação, 23,8% dos chefes dos domicílios quilombolas nunca estudaram e 64,5% cursaram até o ensino fundamental. O grau superior completo e a pós-graduação foram cursados por 1,5% e 0,3% dos entrevistados, respectivamente.
Ante o cenário de grande vulnerabilidade social, ressaltamos o contexto educacional, que aponta para possibilidades e desafios. Os desafios se concentram especialmente na superação da função da escola, historicamente associada à manutenção de um projeto de sociedade que sustenta o poder da elite, por meio da dominação ideológica. A transformação do currículo da escola brasileira, que compreende um conjunto de práticas e saberes hegemônicos, autoritários, eurocêntricos e excludentes aos elementos da cultura e filosofia africana. E o desenvolvimento de estratégias de mudanças do imaginário social dos brasileiros, no qual está a inferioridade dos africanos e seus descendentes, e um conceito de quilombo que figura um grupo de escravos fugitivos, perigosos para a sociedade, dificultando a ascensão social, econômica, educacional e política dos negros.
Por outro lado, vislumbramos poucas iniciativas de construção de caminhos baseados na alteridade e na inclusão. Novas práticas educativas demandam um aprendizado crítico de uma nova postura, mediada por ferramentas provocadoras de reflexões sobre a situação social, fundamentada em textos acunhados dessa mesma perspectiva e estimulantes aos educadores e educandos sobre a percepção de uma história de luta e resistência de um povo aguerrido. Exige formação continuada, condições materiais concretas para a transformação e a disputa do espaço dos saberes legítimos. É necessária uma ação política criadora e transformadora.
As comunidades remanescentes de quilombo não são uma vitrine do exótico ou do folclórico, tampouco são resquícios arqueológicos, porém são lugares de construção de saberes, de sujeitos políticos e cognoscentes que lutam há centenas de anos pela realização plena dos seus direitos fundamentais. Em tempos de turbulência política, em dias de fragilidade econômica e rupturas sociais, os que mais sofrem são os grupos vulneráveis, os marginalizados e as minorias. É necessária uma nova abolição, para trazer o direito de existir ao quilombola!
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As comunidades remanescentes de quilombo não são uma vitrine do exótico ou do folclórico, tampouco são resquícios arqueológicos, porém são lugares de construção de saberes, de sujeitos políticos.
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Rute Ramos da Silva Costa é graduada em Nutrição pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), doutoranda do programa de pós-graduação em Educação em Ciência e Saúde, membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e atua na comunidade quilombola Machadinha, em Quissamã (RJ).
Ilustração: Marcos Garuti
Já fui Zumbi, hoje sou Dandara
por Maitê Freitas
Por saber que o conhecimento da história é um privilégio no qual nós, mulheres e homens negros, temos que lutar cotidianamente, a escrita em primeira pessoa é um ato político. Por isso, escrevo incluindo o meu sujeito histórico, imprimindo a possibilidade de existir e deixar que as vozes afetivas dos encontros com as terras ancestrais ecoem e rompam com as formalidades.
Peço licença aos meus mais velhos. Peço licença aos mais jovens.
Era 2014, uma terça-feira ensolarada, eu caminhava pela Esplanada dos Ministérios. As linhas retas que o planalto traçava no horizonte, as encruzilhadas, mobilizavam em mim o desejo de entender os caminhos que poderiam me levar aos espaços legislativos, nos quais os rumos desse país são pensados.
Paro diante da estátua da Justiça e observo o monumento: grades a protegem. Alguns segundos diante daquele totem de olhos vendados. Ao meu lado, uma senhora vende água, pergunto qual o caminho para chegar ao Senado e ela me responde: “Para chegar ao Senado, precisa passar por Palmares”.
Aquela senhora não fazia ideia do significado e do sentido histórico que aquela informação continha. É preciso passar por Palmares... Quantas vezes a história do Brasil deixou de passar por Palmares?
Quando Zumbi Chegar foi gestado naquele dia. As passagens e os caminhos para chegar ao território histórico se confirmaram meses depois. No mesmo ano, a ida para o município de União dos Palmares me colocou diante de realidades históricas que só demonstraram o tamanho do desconhecimento que tenho da história, da minha história de mulher negra nascida na periferia de São Paulo.
A travessia indica que é preciso subir a serra para encontrar o espaço, a geografia das narrativas que não me foram contadas. O caminho indica que é tempo de gestar uma nova história, de confrontar a hegemonia que insiste em tratar 53,6% da população como minoria, de enfrentar a arma que abrevia e dispara, a cada 23 minutos, contra a vida do jovem negro.
É tempo de romper com os emudecimentos das mulheres negras que a cada cinco minutos são agredidas. Palmares traz a lembrança de que não sou filha desse esquecimento imposto. Quando Zumbi chegar, o que vai acontecer? A pergunta evocada por Jorge Ben Jor se repetia como mantra. O refrão abria e fechava as portas dessa busca por um conhecimento e um entendimento histórico do lugar que havia sido a primeira experiência de república em terras brasileiras.
A primeira experiência republicana no Brasil foi um quilombo. Parte dessa história a escola me contou, a outra, os livros editados e distribuídos nas escolas públicas do país suprimiram: a primeira liderança palmarina foi de uma mulher. A primeira república brasileira teve como chefe uma mulher, uma mulher negra que em terras nordestinas criou, no alto da Serra da Barriga, um país possível.
Diante dessa verdade, sou lançada para o presente: 2017. Golpes diários são dados, me vejo sobrevivente numa cidade na qual o medo e o genocídio da população negra são legitimados nas instituições públicas. Na semana em que essas palavras são redigidas, um prédio é demolido com pessoas pobres dentro. “(...) E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”, me ensinam Gil e Caetano.
Aos olhos hegemônicos, os entulhos daquele prédio caíram nos “zumbis” que peregrinam pelas ruas da cidade. Ainda sigo em busca de saber: quem foi Zumbi? A voz se cala. A pele e os olhares falam da resistência, sem se saber. Zumbi, o herói, tornou-se sinônimo daquele que mesmo morto insiste em viver.
Aqui, todo mundo tem um pouco de Zumbi. Retorno à União dos Palmares, Quilombo do Muquém. O cheiro do café torrado no fogão a lenha me envolve, me acolhe. Ao som do pilão, o coração afina um novo compasso diante da história que se vai revelando a cada encontro.
“Quilombo é a busca humana por um lugar”, aprendo com o geógrafo Alex Ratts. O reconhecimento dessa travessia só é possível encontrar nas histórias de Carmen, Edinho, Marinalva e Dona Mocinha, moradores da comunidade que fica aos pés da serra.
Sou um corpo em travessia, “sou atlântica”, me lembrou Beatriz Nascimento, ainda aos pés daquela terra-mãe observo: as palmeiras. É preciso que a história de meus passos suba em direção ao seu ponto mais alto para encontrar com Pai Célio e Cícero, griots, contadores de histórias palmarinas que mais tarde transformaram, ao lado dos moradores do Muquém, Quando Zumbi Chegar em um documentário dividido em seis episódios.
E mais uma vez, peço licença. Agora peço aos meus ancestrais: Acotirene, Zumbi, Dandara e Abdias. Diante da imensidão daquele espaço transformado em parque, a reconstituição dos espaços que ilustram o cotidiano em Palmares, me pergunto: “Palmares, que espaço você habita na minha construção humana?” Adentro o santuário. Meus olhos passeiam por sua paisagem verde, organizada, seu silêncio me conta o que as aulas de História não me contaram.
Desço por sua estrada e aos pés da gameleira o tempo me retorna. Penso nas centenas de povos negros e indígenas que habitaram aquele território; e mais uma vez o presente me convoca ao Art. 68: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A imagem da justiça monumental e de olhos vendados me vem à cabeça acompanhada por uma voz que destoa, tal como um ruído que insiste em dizer: “os povos quilombolas não valem nada”.
Embora a Constituição brasileira garanta o direito das populações quilombolas de ter suas terras certificadas e tituladas, a realidade difere do que seria justo, revelando que a legislação e a conduta política não passam por Palmares, como alertou a vendedora d’água. Quando Zumbi chegar, as histórias de violência contra os povos quilombolas em todo território lhe serão relatadas. Ele verá a especulação imobiliária, o agronegócio e estradas partindo as terras e demolindo casas nas quais habitam famílias negras herdeiras de sua história.
Mais uma vez, a pergunta ecoava e dos ecos das histórias palmarinas desembocou em novos encontros. Agora, já em 2017, ao lado do Centro de Pesquisa e Formação, entre os meses de abril e maio, as vozes que pesquisam, atuam e mobilizam as sociedades em prol do direito à terra e à memória puderam ser ouvidas. Salloma Salomão, Rute Costa, Pai Célio, Joice Berth, Djamila Ribeiro, Lourdinha da Silva, Carmen Silva, Alex Ratt e Jerá Poty Miri participaram do ciclo que buscou compreender os cruzamentos entre o direito à terra e a existência nos contextos dos movimentos sociais indígenas, quilombolas e sem-terra.
Quando Zumbi chegar, ele verá quilombos, aldeias e terras ocupadas sendo devastados por ações militares que utilizam armas químicas para matar, pouco a pouco, a população local, envenenando rios, violentando crianças e mulheres, assassinando as lideranças. O sangue derramado em Palmares ainda escorre nas terras brasileiras e tinge os asfaltos.
Ainda em travessia, à minha frente, o espaço vazio que aos poucos se preenche ao som das vozes femininas, das crianças que brincam na terra. Numa terra compartilhada, sem muro, onde tudo é quintal, tudo é terreiro, tudo é sagrado sem se saber. O direito e a luta por terra, longe de ser posse, para os povos tradicionais quilombolas, o território representa a possibilidade de existir no cultivo dos alimentos, das tradições, das danças, dos bordados e das relações familiares como legado afetivo.
Em meu retorno, converto-me em mulher fiandeira que, na busca por costurar um novo caminho de signos e símbolos, reescreve esse caminho por territórios da memória para ocupar um novo lugar de entendimento e força. Valeu, Zumbi! Dai-me força, Dandara.
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Embora a Constituição brasileira garanta o direito das populações quilombolas de ter suas terras certificadas e tituladas, a realidade difere do que seria justo, revelando que a legislação e a conduta política não passam por Palmares.
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Maitê Freitas é mestranda em Estudos Culturais na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), jornalista, idealizadora e realizadora do projeto multimídia Samba Sampa e da web-série Quando Zumbi Chegar, e colabora como produtora executiva do projeto Empoderadas.