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Um cronista necessário


Inventivo e popular, Belmonte foi a voz do humor crítico da imprensa brasileira nas primeiras décadas do século 20


Foto: Domínio Público


No início dos anos 1920, os bondes em trânsito estavam no centro das reclamações da população, que não economizava nas queixas para a Light de São Paulo, a companhia então responsável por esse tipo de transporte. O tema foi abordado na primeira charge exclusiva de Belmonte para a Folha da Noite, em outubro de 1921. Na charge, diante do questionamento do cidadão dizendo que os bondes não eram de primeira, a resposta do artista, por meio dos personagens, veio jocosa: São de primeiríssima. Os bondes rendem o dobro dos outros e suportam todas as reclamações.

No traço de Belmonte, nascido Benedito Bastos Barreto em 1896, na capital paulista, as contradições da sua cidade estavam sempre presentes e tinham revistas e jornais como plataformas. Depois de publicadas, as obras eram assuntos em rodas de conversa, o que transformou seu autor e os personagens por ele criados em celebridades. Belmonte permaneceu na ativa durante 26 anos, colecionando 10 mil produções, que abrangiam ilustrações, charges, caricaturas, cartuns e textos no gênero crônica.

Na infância
A seu modo, Belmonte atingiu a inspiração divina. Morador do Brás, quando criança acompanhava a mãe à igreja durante as missas. Chamava sua atenção o que vinha do alto. Admirava-se com as pinturas, esculturas e toda forma de arte do local.

Uma lousa que ganhara de presente servia como quadro para seus primeiros desenhos. Quando voltava da escola esse era seu refúgio. Estudou em escolas do bairro da Liberdade e formou-se em Medicina, profissão exercida pelo pai, sem deixar de se dedicar ao desenho e ao olhar crítico sobre a cidade.

Influências e estilo próprio
De acordo com Gonçalo Junior, autor de Belmonte – Vida e Obra de um dos Maiores Cartunistas Brasileiros de Todos os Tempos (Três Estrelas, 2017), a primeira influência do desenhista foi Chéri Hérouard: “Estrela da revista La Vie Parisienne (A Vida Parisiense), cujas ilustrações eram reproduzidas em publicações brasileiras”. Ele também era fã de J. Carlos, cartunista carioca considerado por muitos “o maior artista gráfico do país do século 20”, completa Gonçalo.

Belmonte costumava enviar seus trabalhos a revistas ilustradas. Numa dessas oportunidades, enviou uma caricatura de Altino Arantes, governador do Estado de São Paulo entre 1916 e 1920, ao chefe de redação da revista O Queixoso. Esse episódio o levou a estender sua colaboração para mais duas revistas, Novíssima e O Pirralho, esta última fundada por Oswald de Andrade. “O primeiro emprego de verdade foi na Kosmos, editada por um empresário mineiro chamado Zacarias. Culto e apaixonado por literatura, foi incentivado por Belmonte a criar a própria revista”, acrescenta Gonçalo.

Belmonte colaborou com outras revistas, como Vida Moderna, D. Quixote, e, em 1921, passou a substituir o cartunista carioca J. Carlos na revista Careta, relevante publicação de humor político do Brasil. A consolidação de seu trabalho se deu na Folha da Noite, de 1921 a 1947.

Nunca antes na história desse país
Se hoje as nuances em jogo no humor são alvo de discussões e justificativas ventiladas pelas redes sociais, Belmonte viveu e se expressou num contexto político-social muito diferente, ficando no radar dos censores do governo de Getúlio Vargas, nas décadas de 1930 e 1940.

Belmonte era um cronista da cidade, atento aos problemas cotidianos enfrentados pela população, embora, por vezes, reservasse espaço para charges já na época do governo do último presidente da República Velha, Washington Luís, deposto pela revolução liderada por Vargas.

A Revolução de 1930 foi o ponto de partida para a virada política na obra do artista, indica Gonçalo, “em particular depois da violência usada pelos partidários de Getúlio na destruição, em outubro de 1930, da redação das Folhas (jornais), que apoiavam Júlio Prestes nas eleições daquele ano”. O cenário internacional também estava em seus trabalhos. Belmonte publicou caricaturas de Hitler e Mussolini na Folha da Manhã em 1934 e 1935.

Revistas estrangeiras também veicularam seu trabalho. A francesa Rire, ABC, em Portugal, Caras y Caretas, na Argentina, e a norte-americana Saturday Evening Post. O modo como a Segunda Guerra Mundial aparecia nas ilustrações de Belmonte atraíram especial atenção dos leitores desses países. Hitler, por exemplo, contracenou com a criação mais querida do chargista, o Juca Pato.

Ele, o Juca Pato
Considerado um dos primeiros personagens gráficos brasileiros, Juca Pato surgiu em 1925, numa discordante combinação entre o nacional e o pato e atingiu enorme identificação com o público. Para Andréa Nogueira, gerente do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (CPF) e autora da dissertação Um Juca na Cidade (Belmonte nas Folhas, 1925 a 1927) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA-Unesp), o personagem evidenciava a posição de estratos médios da população, conectados com a moda e os modos internacionais, inspirado na irônica figura do ator Harold Lloyd ou no Carlitos, de Charles Chaplin, “ante o acelerado ritmo de transformação urbana da São Paulo na década de 20”.

Além da certeira identificação com o público, ela enumera os recursos responsáveis por tornar Juca Pato pop. “Entre eles, a utilização da paródia, como a do filme O Barqueiro do Volga (Cecil B. De Mille, 1925). Belmonte cria O Barqueiro... do Tietê, com Juca carregando um ‘barco no seco’. Sobre ele, os males urbanos, como a Light, a Prefeitura, a Telephônica, o Senado, as taxas e os impostos”, explica Andréa. “Juca Pato é o expropriado, mas ao mesmo tempo é o condutor que leva e mantém essa situação política, por meio de um elemento que se tornou popular na época, o cinema.”

Um bom exemplo de multitarefa das artes e da imprensa brasileira, Belmonte ilustrou livros infantis, colaborando no desenho de personagens de Monteiro Lobato. O cronista urbano só abandonou o papel e o lápis em 1947, quando morreu em decorrência de tuberculose.

 

De tudo um pouco

Olhar aguçado de Belmonte tratava de temas sociais e políticos

Não adiantava proibir, pois ele continuaria a atacar. O chargista Belmonte não entregava a pena facilmente, quanto mais espinhoso o tema, mais seu trabalho reverberava. A seguir, alguns exemplos.

 

Política nacional
Depois da Revolução Constitucionalista de 1932, Belmonte foi proibido, por certo tempo, de retratar Getúlio Vargas em suas charges, que cada vez se tornaram mais políticas.

 

Cidade de São Paulo
A partir de 1930, tornou-se onipresente na vida cultural paulistana. A Revolução Constitucionalista de 32 despertou nele outra faceta, a de historiador, de pesquisador obcecado por São Paulo, no encalço de personagens e fatos que confirmassem o pioneirismo e a importância dos paulistas na história brasileira. Em 1939, lançou o livro No Tempo dos Bandeirantes.

 

Política internacional
A Segunda Guerra Mundial fez com que a fama do ilustrador ultrapassasse as fronteiras brasileiras. Diariamente, na Folha da Manhã marcava a diferença em relação aos outros diários paulistanos com sua cobertura do conflito, em charge de meia página que frequentemente saía na capa do jornal.

 

Facetas do artista

Palestra abordou panorama sobre a carreira e a produção do chargista brasileiro


O Centro de Pesquisa e Formação do Sesc (CPF) recebeu durante o mês de julho o organizador de Belmonte – Vida e Obra de um dos Maiores Cartunistas Brasileiros de Todos os Tempos (Três Estrelas, 2017), Gonçalo Junior. O foco da palestra foi esmiuçar por meio da produção do cartunista o enfrentamento entre ele e as autoridades do período, visto que seu trabalho foi motivo de dor de cabeça para censores e demais autoridades contrariadas com os temas e a abordagem de seus cartuns publicados em jornais e revistas brasileiros.

Na visão do jornalista, a lembrança sobre Belmonte é mais do que necessária, pois “nossos cartunistas e caricaturistas sucumbiram ao politicamente correto e à censura empresarial intensa que sobrevive nas redações. Com isso, nossos cartuns se tornaram insossos, perderam a contundência. Pelo menos assim eu vejo”, diz, observando a atual “adesão à noção de celebridade, de virar um cartunista-celebridade por meio do humor politicamente correto, que tenta mais comover do que causar impacto, indignação”. Conhecer a trajetória de Belmonte é trazer à tona um importante período histórico e profissional da imprensa brasileira.

 

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