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Giselle Groeninga

 

Psicanalista e professora de Direito fala sobre novos arranjos amorosos e familiares e as suas implicações na sociedade atual

Diretora Nacional de Relações Interdisciplinares do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família (ISFL) e doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), a psicanalista Giselle Groeninga também atua como mediadora, parecerista e professora na Escola Paulista de Direito (EPD). Nesta entrevista, a pesquisadora reflete sobre as relações em tempos de “amor líquido” – termo cunhado pelo filósofo Zygmunt Bauman para designar relacionamentos cada vez mais flexíveis. Groeninga também fala sobre novos arranjos familiares e a necessidade de as instituições refletirem a respeito desse contexto. “A partir dessa multiplicidade, a tendência é pensar muito mais em soma e multiplicação do que em divisão e subtração. Multiparentalidade é uma realidade no Direito e é uma realidade que já existia nas famílias, mas que só agora é contemplada”, diz.

 


Foto: Leila Fugii

 

No cenário contemporâneo de diferentes relacionamentos amorosos, as expectativas em relação ao outro diminuíram?
Não dá para ter um relacionamento sem criar expectativas. Não existe o sexo apenas pelo sexo como se isso não agregasse nada mentalmente, espiritualmente, emocionalmente. Então, acho essa ideia um tanto quanto ilusória. Ou seja, somos seres que têm expectativas, queremos sempre mais e precisamos de certa segurança em nossos relacionamentos. Às vezes, a segurança pode vir na confirmação: “Isso é só sexo”; “Essa é só uma saída”; ou “São apenas negócios”. Mas vemos que essas respostas não se sustentam mais. Nós precisamos sair dessa ilusão do consumismo, como se nós também pudéssemos “consumir” os relacionamentos como bens descartáveis. Nesse aspecto, a gente está se desconsiderando.

Que outras consequências esperar desse novo cotidiano amoroso?
Acho interessante como hoje nós nos damos o direito de querer mais. Então, tempos atrás, nós nos conformávamos com uma vida nada prazerosa no trabalho e buscávamos o prazer em outro lugar. Nós nos conformávamos com um determinado relacionamento porque tínhamos que manter uma família. Atualmente, a gente quer mais. Uma característica é que os limites antes impostos estão cada vez mais elásticos: prazer no trabalho, qualidade de vida e qualidade nos relacionamentos. Tudo isso trouxe uma explosão de outros relacionamentos mais satisfatórios, que às vezes se confundem com relacionamentos transitórios, como se buscássemos apenas o prazer sem compromisso.

Como você analisa essa ebulição de sites de relacionamentos?
Muitos buscam esses mecanismos como uma forma de encontro porque, com a vida que levam nas grandes cidades, os encontros casuais são muito mais difíceis. Fala-se que, depois da internet, as pessoas não se comunicam mais. Não acredito nisso. As pessoas se comunicam, sim, só que de outra forma. Então, como vamos nos encontrar? Também de outra forma. Utilizando as ferramentas de que dispomos. Assim, esses sites cumprem essa função e tentam fazer um par: quem combina com quem. O que eles não mostram é se aquela pessoa está preparada ou se ela, de fato, quer um relacionamento. Ou seja, a continuidade [desses relacionamentos] nem sempre acontece.

E o que acontece quando a pessoa se conforma em ter, como única fonte de felicidade, o relacionamento amoroso?
A expectativa gerada ao depositar todo esse amor sobre outra pessoa resulta numa grande frustração. O príncipe encantado, obviamente, vira sapo. Sem dúvida, vivemos um tempo de liberdade maravilhoso, mas também angustiante. Temos que ter consciência dessa angústia, não negá-la e ver como conseguimos lidar com ela. Hoje se coloca a realização também no trabalho, nos amigos... Há uma gama maior de realizações. Essa ideia de complementaridade, de alma gêmea, metade da laranja... Tudo isso não se sustenta mais. Da mesma forma, a nossa expectativa de que o casamento será para sempre. Felizmente, temos hoje outras possibilidades, e eu insisto nelas. Então, não é um relacionamento que vai me satisfazer. Você vê os jovens hoje, por exemplo: alguns se casam, mas ele tem a noite com os amigos, ela tem a noite com as amigas; eles não precisam viajar sempre juntos. Essa atual liberdade é muito saudável.

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A expectativa gerada ao depositar todo esse amor sobre outra pessoa resulta numa grande frustração. O príncipe encantado, obviamente, vira sapo. Sem dúvida, vivemos um tempo de liberdade maravilhoso, mas também angustiante.

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A questão da monogamia e da fidelidade passou a ser eclipsada por essas novas relações amorosas. Que reflexos esperar disso?
Há dois valores aí que confundimos sobre os quais precisamos pensar: fidelidade e lealdade. A fidelidade é um valor de construção de casamento, modelo de família, casamento sacralizado etc. Muito embora saibamos que este seja um valor ideal, ele é, muitas vezes, considerado de uma maneira hipócrita. Então, essa hipocrisia acabou declinando e hoje em dia se fala muito mais em lealdade. Não que fidelidade seja necessariamente menos importante. Antes falávamos de relacionamentos abertos, e acho questionável, pensando do ponto de vista da psicanálise, o quanto a gente aguenta psiquicamente num contexto de relacionamento aberto. Estamos sempre nesse fio da navalha. A questão da fidelidade tem sido questionada, inclusive no Direito, porque é algo que fica quase impossível de ser cobrado. Você jura fidelidade, mas como vai cobrá-la? Ela tem a ver com um arranjo entre as pessoas.

Estaríamos, então, caminhando para o fim da monogamia?
A monogamia é um pilar da civilização, mas a vontade de ter outros relacionamentos, e não ser monogâmico, é inerente ao ser humano. Ou pensamos ou sonhamos que não estamos sendo fiéis. Agora, o que tem sido questionada é essa imposição de monogamia – não estou defendendo a poligamia. Tem muita gente questionando a monogamia, tanto é que começam a ser reconhecidas as famílias ditas “paralelas”, ou famílias simultâneas. Não é que aquela pessoa estava enganando e constituiu outra família, mas há situações de pessoas que têm duas famílias e uma sabe da outra. Não podemos fechar os olhos para esse tipo de arranjo. Essa é uma mudança e precisamos pensar sobre isso.

Outra característica que acompanha esse novo cenário de relacionamentos amorosos é a família mosaico –  aquela formada por pessoas que já foram casadas e que trazem filhos de relações anteriores.  O que muda com esse arranjo familiar?
Na família mosaico o que diminuiu é essa relação de posse. A posse um do outro, a posse dos filhos, a posse da família. Aprendemos a lidar melhor com essa questão dos ciúmes e possessividade. Algo que está também acontecendo é a questão da multiparentalidade. Por exemplo, passa-se a ter dois pais ou duas mães na certidão de nascimento. Quebrou-se a ideia de que mãe só tem uma, pai só tem um, com a questão da paternidade socioafetiva. Então, não é só o pai biológico, o pai do DNA, mas o padrasto, o pai biológico e o pai que criou. A partir dessa multiplicidade, a tendência é pensar muito mais em soma e multiplicação do que em divisão e subtração. Multiparentalidade é uma realidade no Direito e é uma realidade que já existia nas famílias, mas que só agora é contemplada.  Então, há um benefício cultural: os filhos não são posse dos pais e os pais não têm direito sobre a pessoa dos filhos, mas sim o dever de criá-los e de educá-los.

 


Foto: Leila Fugii
 

Estatisticamente, nunca houve tantos casais homossexuais com filhos. Qual o reflexo disso?
O fato de haver casais homossexuais com filhos joga luz para outras questões e não mais sobre gênero ou sexo. O que está em ênfase: está sendo exercida uma função paterna? Está sendo exercida uma função materna? É disso que as crianças precisam, em primeiro lugar. E não se os pais são heterossexuais, homossexuais, transexuais... A revolução feminista quebrou essa ideia de que só a mãe faz isso e que só o pai faz aquilo. Hoje passamos por uma revolução que denomino de “revolução da metassexualidade”. O importante é o exercício da função mais do que o gênero ou o sexo. Não que isso não tenha influência. É mais econômico, psiquicamente, para a criança, que o casal conjugal (papai e mamãe) estejam casados. A mesma coisa para filhos de casais homossexuais. Eles terão um pouco mais de trabalho mental para repensar porque os pais são diferentes do sexo biológico atrelado ao gênero de homem e mulher. Por isso, a escola precisa trabalhar essa questão. Essas crianças não precisam lutar o tempo todo contra um preconceito instituído socialmente. Temos de lidar com o preconceito. Lidar com o diferente é sempre um desafio. E o trabalho das instituições é não deixar que existam excluídos.

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O fato de haver casais homossexuais que têm filhos joga luz para outras questões e não mais sobre gênero ou sexo. O que está em ênfase é: está sendo exercida uma função paterna? Está sendo exercida uma função materna? É disso que as crianças precisam, em primeiro lugar.

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De que forma as escolas podem trabalhar esse preconceito? A empatia seria uma ferramenta?
A empatia é uma qualidade psíquica. Espera-se que a gente consiga desenvolvê-la com o amadurecimento. O que é diferente da simpatia (sentir com) e da antipatia (em oposição a). Ou seja, às vezes, simpatizamos com uma pessoa porque ela se parece mais com a gente. Outras vezes, podemos antipatizar com alguém quase gratuitamente, sem motivos aparentes. O fato é que precisamos nos colocar no lugar do outro a fim de estabelecer uma verdadeira comunicação. Porque a comunicação só se dá quando você consegue estabelecer uma troca a partir da diversidade. Quando você passa a entender o lado do outro e ele, o seu lado, mesmo que ambos sejam diferentes. Temos hoje, por exemplo, nas escolas, a consciência dos malefícios do bullying e a necessidade de lidar com isso, bem como a responsabilidade de encontrar mecanismos que não o fomentem. Tudo isso desenvolve a empatia nas escolas. Dessa forma, temos como resultado a possibilidade da cooperação em vez da competição.

Quando você diz que os filhos de casais homoafetivos terão maior trabalho mental, o que isso quer dizer? Que cuidados é preciso ter?
Um cuidado que deve haver, sejam os pais heterossexuais ou homossexuais, é que os filhos não sirvam de bandeira para uma causa. Há uma dificuldade de aceitação e, em alguns casos, é como se o filho fosse um “troféu”, o aval de aceitação. Os pais também devem respeitar a liberdade de escolha dos filhos. Ou seja, se o casal homossexual teve grande dificuldade para ser aceito e passou por batalhas, e ainda passa por essa batalha quanto à aceitação, o casal também deve ter o mesmo respeito em relação à orientação sexual dos filhos. Sobretudo na adolescência, quando os filhos – tanto de casais homossexuais quanto de heterossexuais – questionarão os pais. Aí podemos incluir uma situação que acho bastante preocupante: a construção da nossa orientação e identidade de gênero ou identidade sexual. Passamos por oscilações e, muitas vezes, o menino quer ser menina, a menina quer ser menino. Isso é um movimento natural, mas o problema é se apegar a uma fase do desenvolvimento dessas crianças e transformá-la ou transformá-lo: “Então, ele é transgênero” ou “ele é homossexual”. Há pessoas que estão reivindicando operações e hormônios ainda na puberdade, ou mesmo antes disso. Por isso, é preciso não confundir uma fase do desenvolvimento como se fosse uma definição de identidade. Aliás, nossa identidade sexual é um problema para toda a vida. Por exemplo, o que é ser mulher aos 10, 20, 30, 40, 50, 60...100? O mesmo para o homem. Estamos, em algum grau, questionando nossa identidade.

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Nossa identidade sexual é um problema para toda a vida. Por exemplo, o que é ser mulher aos 10, 20, 30, 40, 50, 60... 100? O mesmo para o homem. A gente sempre está questionando nossa identidade.

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Todas essas questões formam uma nova imagem de mundo. Qual seria esse novo desenho?
Essa nova imagem de mundo, nem nós sabemos exatamente qual é. Tempos atrás havia determinados modelos. Exemplo: a educação era voltada para atingir um determinado modelo. Hoje esses modelos estão em construção. Não é à toa que se fala tanto do construtivismo na educação. O modelo extremamente hierarquizado, por exemplo, não funciona mais. Nada mais é como era há 100 anos. Então, estamos vendo essa revolução na educação. A forma de ensino tem que ser repensada. Essa história de tentar formatar as pessoas não é mais assim, pelo contrário. Hoje os valores em questão são muito mais os da criatividade, do desenvolvimento, da inteligência, das relações, da empatia. Fala-se até em quociente emocional. Ou seja, todo esse cenário [da sexualidade, das novas relações familiares] está sendo levado em conta no ambiente da educação e da escola. Essa é uma revolução que acontece muito rápido porque a escola não atende mais ao mundo de hoje e, muito menos, ao de amanhã. Atualmente a tendência é pensar um problema e aprender com as disciplinas escolares como pensar esse problema, e não aprender uma disciplina por vez. Quer dizer, há uma finalidade e uma integração. Temos que ver um sentido naquilo, qual a razão de estarmos vendo esse conteúdo. A questão humana é, desde sempre, buscar um sentido.

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A forma de ensino tem que ser repensada. Essa história de tentar formatar as pessoas não é mais assim, pelo contrário. Hoje os valores em questão são muito mais os da criatividade, do desenvolvimento, da inteligência, das relações, da empatia.

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