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Ana Fani Alessandri Carlos

Professora fala sobre as contradições e possibilidades de exercício de liberdade da vida em uma metrópole


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Leila Fugii

 

Professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Ana Fani Alessandri Carlos coordena o Grupo de Estudos sobre São Paulo, que reúne pesquisas sobre urbanização e o cotidiano da metrópole. Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na Universidade de Paris VII e Paris I, é autora de livros como A Condição Espacial (Contexto, 2011), A (Re)Produção do Espaço Urbano (Edusp, 2008) e Espaço-Tempo na Metrópole (Contexto, 2001). Nesta entrevista, a pesquisadora fala sobre temas de suas pesquisas recentes, como as contradições da vida em uma cidade como São Paulo e a ligação entre o cotidiano urbano e as relações humanas.


Nunca tantas pessoas viveram em um mesmo espaço como acontece hoje, em grandes metrópoles como São Paulo. É possível se sentir bem em meio a esse cotidiano urbano?
A metrópole é fruto de todo um processo civilizatório. A grande produção da civilização é a cidade, mas ao mesmo tempo ela traz tensões. Nós vivemos em uma sociedade que é contraditória, em luta entre o que um quer e o que o outro quer, o que é melhor para um e o que é melhor para o outro. A democracia é o lugar em que se discutiria o bem comum. Os processos de produção da metrópole se refeririam a essa possibilidade de produzir uma cidade para o bem comum. Daí a ideia da luta pelo direito à cidade, algo que está posto hoje em vários coletivos em São Paulo. Do ponto de vista individual, dependendo de onde você mora e da classe à qual você pertence, a metrópole será mais ou menos agradável para a realização da vida, mas isso não é só da metrópole. Toda sociedade de classes tem uma distribuição de renda diferenciada. Dependendo daquilo que é importante para a sociedade, você mede o grau de felicidade. A felicidade hoje está ligada à temática de qualidade de vida, e a qualidade de vida é uma falsa ideia. Qualidade de vida hoje é tida como ter carro, ter serviços, poder viajar. A qualidade de vida substitui o que deveria ser a cidadania.
 

E o que seria esta ideia de cidadania na metrópole?
Cidadania é a cidade construída para o bem comum, não é a qualidade individual, mas é a possibilidade de todos viverem e se encontrarem. Nos espaços públicos, ainda é possível esse encontro dos diferentes, então a cidade que possibilita essas reuniões tem um sentido importante como metrópole. Em São Paulo, existem shows públicos, shows de graça, o próprio Sesc é um exemplo disso. Ou seja, na metrópole nem tudo é bom e nem tudo é ruim, e o que você vai ver em São Paulo é a possibilidade de todo mundo encontrar um lugar onde pode se realizar como cidadão. A metrópole é esse lugar.
 

Quais as particularidades que surgem na relação dos habitantes com uma metrópole do porte de São Paulo?
São Paulo se produz ao longo dos anos como uma cidade que parece estranha ao cidadão. A cidade é estranha porque o modo como é gerida está voltado muito mais para o mercado e para o que se espera da cidade como o lugar de investimentos do que para o que as pessoas querem da cidade. Há, então, uma sensação das pessoas diante da cidade de estranhamento. É como se a cidade não lhes pertencesse. Ocorrem operações urbanas que expulsam as pessoas de determinados lugares, fazem-se políticas públicas que ignoram o que o cidadão metropolitano quer da sua cidade, então cada vez mais essa relação se constrói no estranhamento. São cada vez menores os pontos e os lugares onde o cidadão metropolitano se sente ligado à cidade. A questão dos grafites pode muito bem ser pensada dentro desse conceito geral, de um estranhamento do cidadão diante da cidade, ao se deparar, no trajeto de casa para o trabalho ou para o lazer, com uma cidade que lhe é estranha, que está fora, mas ao mesmo tempo que oferece laços de identidade em alguns pontos.
 

Que pontos seriam esses, em São Paulo?
A Avenida Paulista, por exemplo, é um ponto de identidade. Os parques são também pontos de identidade, porque são os lugares onde as pessoas se reúnem, não são apenas lugares de passagem. O grafite, de certa forma, humaniza a cidade, e aparece como um momento de criatividade. Do mesmo modo que aparece como uma possibilidade de criatividade o flanar pela cidade, como ocorre na Paulista no fim de semana, o grafite revela uma face colorida, revela um espaço de apropriação em uma cidade. De certa forma, o grafite como arte faz com que as pessoas se identifiquem com alguma coisa. Ele aparece como essa possibilidade de apropriação dos espaços.
 

Essa relação da cidade que é voltada para o mercado ocorre, por exemplo, na relação de São Paulo com os carros?
Temos uma tradição de produzir a cidade para o automóvel. A partir do momento em que se produz uma cidade para a indústria automobilística, se produz uma ideologia de que o automóvel é tão importante quanto a roupa que a gente veste, e que o cidadão só é cidadão quando tem acesso a um carro, em detrimento do transporte público. O nosso modelo é um modelo que vem dos Estados Unidos, da cidade que se produz para o automóvel, e que são cidades desumanas. Uma cidade nessas condições é uma cidade onde os espaços públicos não são importantes ou não são bem cuidados. A importância do espaço público é que ele é o lugar de reunião, do lazer, do encontro e das manifestações, onde as pessoas se expressam e mostram o que querem com a cidade. Cuidar dos espaços públicos, permitir que eles sejam bem cuidados e cada vez maiores amplia as possibilidades de uso da cidade – portanto, de exercício da cidadania – e do lugar onde a esfera pública pode acontecer. Além disso, vivemos também uma sociedade individualista, em que há mais dificuldade em enxergar o outro. A urbanidade hoje, na metrópole, trata o outro não como um sujeito da relação, mas ele é quase apagado. Assim, as pessoas não se preocupam com o vizinho, com o pedestre.
 

Essa individualização também seria reflexo da visão da metrópole para o consumo?
A metrópole é rica porque é o lugar da reunião dos diferentes. A grande metrópole reúne todos, várias culturas, etnias, pessoas que pensam de forma diferente umas das outras. É isso que torna a cidade viva, ativa e dinâmica. Porém, ao contrário disso, hoje estamos vivendo um processo que homogeneíza como consumidores. Os nossos desejos não são desejos de uma vida em comum, mas de uma vida individual como consumidor. O exercício de cidadania passa, então, a ser o exercício de cidadania como consumidor. Mas é preciso lembrar que nós não somos consumidores, nós somos seres humanos. A história coletiva se constrói com as histórias individuais. Liberdade na cidade significa usar a cidade. Isso está espalhado hoje por São Paulo, onde qualquer espaço pode se tornar um espaço de uso da população, por exemplo, ao fechar a rua, colocar cadeiras na calçada e transformar aquele espaço em um espaço de encontro. Isso é possível na metrópole. Ela não é só opressão, é também liberdade.
 

Atualmente, muitas pessoas trocam a cidade por lugares mais próximos à natureza. Isso está ligado a um contexto de consumo?
Não existe a cidade em oposição à natureza. A cidade aparece no discurso como a antinatureza, mas a natureza é a matéria-prima a partir da qual se constrói a cidade, não como oposto, mas em comunhão. Quando se pensa em fugir da cidade em direção à natureza, deve-se levar em conta algumas coisas. Primeiramente, que não é possível fugir da cidade. Fugir da cidade com celular e computador não é uma fuga da sociedade urbana, já que a sociedade urbana vai com você. Nós vivemos hoje em um mundo urbano não porque a maior parte da população mora na cidade, mas porque o modo de vida é urbano, então o celular, a televisão, o computador e as tecnologias fazem com que o urbano penetre os espaços mais escondidos e remotos do país, unindo todos ao modo de vida urbano. A natureza foi degradada por um processo de industrialização em busca do lucro rápido, o discurso fez com que quem levasse a culpa pela degradação fosse a sociedade e agora, em um momento em que o processo de industrialização recua e o processo urbano avança, a natureza vira o “outro” da cidade. Como a natureza tornou-se rara por conta da degradação, ela se transforma em uma mercadoria extremamente valiosa. Então essa “busca pela natureza” é uma falsa busca, é criar a perspectiva ou a ilusão de que a cidade e o homem não são parte da natureza, e sim opostos a ela, e que só é possível sermos felizes se fugirmos da cidade. Todo esse discurso é travestido de uma profunda ideologia que leva a ideia de consumidor ao seu limite último.
 

São Paulo passou por uma gentrificação, em que bairros inteiros vêm sendo colocados abaixo para dar lugar a prédios, acabando com as zonas de convivência, o comércio local. Como você vê esse processo?
À medida que a cidade vai se adensando, São Paulo cresce em altura. Esse processo de verticalização vem acompanhado das transformações da metrópole. Cada vez que se alarga uma rua, faz-se uma praça, incorpora-se trabalho na cidade e aumenta-se o preço do metro quadrado dos terrenos que estão nessas áreas de transformação. Isso é produto de um processo de valorização, que vem acompanhado por um processo em que se retiram as casas pequenas e se produzem os grandes edifícios. Isso vem associado a um novo modo de ver a cidade, com altos muros, por causa do discurso da violência, com a gourmetização da alimentação, que é um outro modo de vender produtos, e isso vem arrasando todo o comércio de bairro. O comércio do bairro seria aquele lugar em que as pessoas conheciam o quitandeiro, o açougueiro, a costureira, o tintureiro, e onde as pessoas se encontravam, conversavam, e ao mesmo tempo que falavam sobre a novela diziam o que desejavam para o bairro. Quando esse pequeno comércio é implodido, o cidadão se isola, aumenta o preço do metro quadrado e ocorre uma transformação do bairro. O lugar de reunião que era o pequeno comércio deixa de existir, e isso vem associado a uma extrema individualização. Toda aquela relação do bairro, da quermesse, da festa, da procissão, tudo isso vai se perdendo.
 

São Paulo pode ser considerada um exemplo para outras cidades do país? O que é feito aqui pode ser levado para outros lugares?
A ponta do processo de construção da sociedade brasileira está em São Paulo. Então, é normal que ela determine o processo urbano no resto do Brasil. Uma política pública, uma política cultural que pode dar certo em São Paulo pode ser exemplo para o resto do país. É a cidade onde o processo de constituição da urbanidade do século 21 está mais avançado em relação ao resto do país, apesar de todas as suas contradições. Assim, tanto os avanços quanto os retrocessos acabam repercutindo de São Paulo para o resto do país.
 

Em relação à questão de gênero, por exemplo, em São Paulo, podemos observar que é um tema que está posto e é visível no cotidiano da cidade. No entanto, há exemplos de reações violentas a alguns tipos de demonstração de afeto. Isso é uma espécie de contradição que caracteriza a metrópole?
Faz parte da própria condição metropolitana. A grande cidade é o lugar da extrema liberdade, como a liberdade de uma pessoa se assumir homossexual, que não há em uma cidade pequena. Na metrópole, há mais possibilidade de ser livre, mas essas possibilidades vêm acompanhadas de contradições. São Paulo, por ser uma metrópole dinâmica, traz a possibilidade de estar próxima ao que acontece em grandes metrópoles mundiais, como Londres e Paris, mas também é fato que vivemos em uma sociedade extremamente conservadora. Portanto, há esse choque entre a liberdade e a opressão. O que está posto em questão é como nós vamos legislar ou criar condições para que esse exercício da liberdade aconteça efetivamente. O ideal é que não fosse preciso nem de legislação nem de polícia na rua. O ideal é que a sociedade tivesse uma condição civilizatória, fosse suficientemente educada, que cada cidadão pudesse se localizar de um jeito diferente sem precisar de normas. Ainda aposto no fato de que a cultura e a disseminação do ensino gratuito de boa qualidade seriam um caminho para evitar, se não o conservadorismo, pelo menos a opressão de não aceitar o outro como diferente.
 

Apesar de todas as contradições, você diria que há, hoje, maior interesse das pessoas em brigar pela cidade que desejam?
Essa consciência de levar outra vida está sendo gestada em atitudes como deixar o carro em casa, olhar mais para o próximo, dar mais importância às coisas que não envolvem consumo. A metrópole é dinâmica por causa disso. Ao mesmo tempo que é estranha, ela também é o lugar da construção de identidade e da vontade de mudar. O que temos visto ultimamente, com as reivindicações, com os coletivos espalhados pela cidade inteira, é isso. Sou otimista, não moraria em nenhum outro lugar senão São Paulo, porque é uma cidade muito viva, muito dinâmica, muito colorida. Por mais que se tente acabar com isso, existe todo um povo por trás, uma paixão pela cidade e uma vontade de mudar.