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Obra de rigor e imaginação

Em Os Sertões, Euclides da Cunha alia reportagem e análise crítica ao propor um retrato literário da Guerra de Canudos

Matéria Gráfica - Revista E Janeiro 2017

Pouco mais de 1.400 quilômetros separam as cidades do Rio de Janeiro e Salvador. Um trajeto que, se feito hoje de avião, leva duas horas e que foi percorrido por Euclides da Cunha ao aceitar a proposta para ser correspondente do jornal O Estado de S. Paulo para a cobertura da Guerra de Canudos, ocorrida no sertão baiano entre 1896 e 1897.

O convite aconteceu depois da publicação do artigo A Nossa Vendeia, para o mesmo diário. O título foi o modo como Euclides chamou o movimento liderado por Antônio Conselheiro, em referência ao episódio da Guerre de Vendée. Esse movimento político antirrepublicano ocorrido no período da Revolução Francesa foi citado pelo escritor francês Victor Hugo – influência notória na obra do autor brasileiro – no romance Quatre-Vingt-Treize (Noventa e Três). 


Caderno de viagem

Em agosto de 1897 Euclides começa seu percurso, tendo como origem o porto do Rio de Janeiro, seguindo para Salvador, a bordo do navio Espírito Santo, numa viagem descrita pelo jornalista como “torturante”, com duração de quatro dias. Na época predominava a imprensa escrita, representada pelos jornais, que atingiam apenas uma pequena parcela dos brasileiros, já que a maioria da população era analfabeta (85%).

Foi na capital baiana que escreveu o primeiro dos dez artigos que ganhariam corpo em Os Sertões, publicado originalmente em 1902, cinco anos após o fim trágico de Canudos e de seus moradores.

Composto de 637 páginas, o livro é um esforço de reportagem que se tornou um compêndio literário, histórico e sociológico. A obra celebrizou o autor logo no lançamento, originando opiniões sobre conteúdo e contexto de criação. Entre as mais contundentes das que foram feitas na época está a do jornalista Silvio Romero, para quem Euclides da Cunha havia se deitado obscuro e acordado célebre, “feito mais do que merecido”.

“Em Os Sertões, Euclides realizara um mapeamento de temas que se tornarão centrais na produção intelectual e artística do século 20, ao debruçar-se sobre o negro, o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a dependência”, explica Walnice Nogueira Galvão, organizadora da edição comemorativa lançada pelas Edições Sesc São Paulo e Ubu Editora (veja boxe História Repaginada, na página 36). “Aí fincam suas raízes não só o modernismo, mas também o romance regionalista de 1930 e o nascimento das ciências sociais no país na década de 1940.”


Arquitetura da guerra

O território da Guerra de Canudos foi o sertão baiano, no arraial que lhe deu nome. Cenário inóspito, servia de casa para cerca de 15 mil sertanejos que compartilhavam as dificuldades cotidianas e se organizavam em comunidade. O conflito marcou o governo do primeiro presidente civil da República Velha (que durou até 1930), Prudente de Morais – caracterizado pelo domínio da oligarquia cafeeira.

Envolto nos acontecimentos, o escritor conversou com moradores e acompanhou o martírio dos feridos, serviu-se da geografia local ao se posicionar analiticamente sobre o conflito e escrever seu clássico, o qual é dividido em três partes: A Terra, o Homem e a Luta.

A primeira parte aborda a constituição geológica do continente americano, até chegar a Canudos, retratando aspectos naturais e morfológicos, entre solo, fauna, flora, clima e a seca.

A segunda parte trata do povoamento e do processo de miscigenação, e a terceira subdivide-se em seis capítulos, sendo a mais extensa de todas, apresentando-se como uma crônica da guerra.

“Os Sertões parece agir contra nossas certezas e expectativas, contra nossos olhares condescendentes e bem-intencionados sobre a história do Brasil”, comenta José Leonardo do Nascimento, organizador de Os Sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos (Editora Unesp, 2002). Segundo o historiador, o livro originou manifestações artísticas diversas, não somente literárias: “pinturas, gravuras, espetáculos teatrais – as últimas adaptações feitas pelo Teatro Oficina –, músicas, filmes. O Cinema Novo dialogou com a visão euclidiana da sociedade sertaneja. Os três filmes, rodados em 1963 no sertão nordestino, Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha), Os Fuzis (Ruy Guerra) e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos), representam os dramas do atraso da sociedade sertaneja, acentuando as dificuldades representadas pelas condições do meio físico local”, exemplifica.

Considerando a dificuldade de realização das reportagens, o trabalho de Euclides da Cunha já seria notável por si só. Os correspondentes de guerra lutavam contra o tempo para terem seus textos publicados. No caso de Canudos, poderia demorar até um mês para que os artigos fossem a público, já que antes tinham que passar pelo crivo da censura e da verificação de conteúdo, depois eram transportados em tração animal até Salvador, onde podiam ser transmitidos por telégrafo ou conduzidos de trem ao destino.

Walnice Galvão observa que Os Sertões se tornaria o maior mea culpa da literatura brasileira. “Essa é a nada desprezível razão para seu êxito imediato e fulminante, concretizado em edições sucessivas, juntamente com a eleição do autor para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico”, declara. “E, pelo menos em certo nível – pois há outros –, razão também de sua permanência na estima geral até hoje.”


História repaginada


Edição comemorativa renova olhar em obra seminal nos estudos da formação do Brasil


As Edições Sesc São Paulo e Ubu Editora lançaram em parceria uma edição comemorativa de Os Sertões, obra fundamental de Euclides da Cunha. O livro traz conteúdo extra: quadro com atualização ortográfica, textos analíticos escritos por Antonio Candido, Antônio Houaiss e Gilberto Freyre, entre outros, reprodução da caderneta de campo do autor e fotos realizadas na época por Flávio de Barros, único registro visual conhecido do conflito.

A nova edição foi organizada por Walnice Nogueira Galvão, que dedicou parte de sua vida acadêmica – hoje é professora emérita aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – aos estudos sobre Euclides da Cunha e Guimarães Rosa.

A editora e gerente adjunta das Edições Sesc São Paulo, Isabel Alexandre, ressalta o valor literário da publicação. “Não podendo fugir à minha formação em história, um dos pontos que sempre me chamaram a atenção em Os Sertões é que, embora Euclides da Cunha tenha sido preciso ao relatar os fatos que testemunhou, com uma visão rigorosa dos documentos que colheu, tanto os orais quanto os escritos, ele não deixou de lado a imaginação e o estilo literário, uma combinação ousada para a época”, comenta. “Isso, por si só, já justificaria todas as reedições que o livro teve, mas a nossa edição, organizada por Walnice Galvão, conseguiu reunir a mais completa fortuna crítica possível.”

Em dezembro de 2016, o livro foi um dos vencedores do Prêmio Brasileiro de Excelência Gráfica Fernando Pini, dedicado aos destaques da produção gráfica nacional.

 

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