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Histórias que as ruas contam

Histórias que as ruas contam

Espaços públicos guardam aspectos da memória paulistana e colaboram para o exercício da cidadania

Matéria Principal - Revista E Janeiro 2017

Em um primeiro olhar, a Igreja Nossa Senhora da Boa Morte, no Centro de São Paulo, não parece muito diferente de outras da região. Sua história, porém, a torna única: foi em seus bancos que, pela primeira vez, negros e brancos sentaram-se lado a lado em uma missa na cidade. Da mesma forma, diversos espaços preservam camadas da memória paulistana. O Museu da Imigração, por exemplo, nos séculos 19 e 20 era uma hospedaria que recebeu imigrantes de mais de 70 nacionalidades. O Memorial da Resistência, durante a ditadura militar, foi sede de uma polícia política poderosa e truculenta. Lugares como esses mostram que as marcas dos 463 anos de São Paulo, completados em 25 de janeiro, estão presentes por toda a cidade – basta interesse e atenção para percebermos os relatos que a cidade encerra.

“Assim como há espaços públicos que guardam a memória de cada indivíduo, como o local onde uma pessoa aprendeu a andar de bicicleta ou onde deu o primeiro beijo, a cidade também possui uma memória coletiva, com locais onde fatos marcantes da história aconteceram”, compara a historiadora Ângela Fileno, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. “Um dos pressupostos do historiador é que o patrimônio preservado e conservado conta uma narrativa construída sobre a história da cidade, ou seja, são espaços de uma memória que a cidade escolheu preservar.” Ângela ressalta ainda que esse processo depende do olhar que as pessoas cultivam para os espaços ao redor. “Nos centros urbanos, se não houver um cuidado, essa identidade com o espaço público se perde. Isso depende de um trabalho contínuo não apenas de conscientização, mas de sensibilização, ou seja, as pessoas precisam estar sensíveis à cidade”, completa.

Entrar em contato com os enredos contidos nos espaços públicos tem uma função de aprendizagem, segundo o pesquisador Danilo da Costa Morcelli, do Grupo de Memória da Zona Leste de São Paulo. “Esses espaços permitem criar narrativas e dialogar com as comunidades. Um morador interessado em conhecer esses locais pode entrar em contato com a história da cidade, a formação da sociedade, a natureza”, explica. “Por meio deles, é possível se situar no presente, pensar o passado e conseguir projetar um futuro, o que é fundamental para a noção de cidadania.”

Com olhos abertos e ouvidos atentos para as narrativas que fazem parte dos territórios urbanos, seria possível enxergar uma outra cidade. “É diferente você olhar simplesmente uma área verde ou olhá-la tendo acesso à informação de que ali era um pedacinho do cerrado localizado em um local estratégico utilizado como ponto de observação de uma antiga aldeia indígena”, observa Danilo. 
 

Lugares de consciência

Muitas vezes, esses territórios retêm feridas presentes na história da cidade. O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Renato Cymbalista explica que a partir da redemocratização, com o fortalecimento de movimentos sociais, surgiram reivindicações de que as violações dos direitos dessas minorias sejam tratadas também nos espaços públicos, e não apenas nos livros de história. “Isso é bastante recente. Hoje, o principal espaço que a gente tem em que o poder público constrói, digamos assim, uma reparação e a transformação de uma história de violação de direitos em uma história de afirmação de direitos é o Memorial da Resistência, um dos três museus mais visitados de São Paulo, que era um lugar de tortura e que até hoje é uma das poucas instituições que lidam com a memória da ditadura”, exemplifica. “Esses espaços têm uma função pedagógica e também uma função ativista muito importante. De alguma forma, esse tipo de reapropriação inverte a ideia do monumento, deixando de ser algo ‘de cima para baixo’, já que passa a usar esses instrumentos para afirmar direitos.”

O professor refere-se a espaços desse tipo como “lugares de consciência”. “O termo foi cunhado na década de 1990, quando uma série de instituições ligadas a lugares onde ocorreram violações graves de direitos começaram a agir em rede para trocar experiências, princípios, processos pedagógicos para criar esses lugares que são apropriados para debater questões de raça, gênero, visibilidade de minorias, tolerância, tortura, escravidão, transformando-os em lugares onde se afirmam direitos”, define. “Isso é fundamental para a transformação social.”
 

Preservação acima de tudo

A compreensão da importância da memória da cidade tem aparecido em iniciativas que partem tanto do poder público como da sociedade civil. É o caso do Memorial da Luta pela Justiça, em construção no local onde foi a antiga auditoria militar, por iniciativa do Núcleo de Preservação da Memória Política, com apoio da Secretaria do Patrimônio de São Paulo. Também há exemplos de ações que buscam sensibilizar a população sobre a relevância dessa preservação, como a Jornada do Patrimônio, promovida desde 2015 pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, e que em setembro do ano passado se tornou parte do calendário oficial da cidade por lei municipal. Há ainda iniciativas de divulgação, como um projeto realizado por estudantes do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero para a inclusão de quase 200 verbetes na categoria de Patrimônios Históricos de São Paulo na Wikipedia.

O conhecimento desses espaços é fundamental para que eles possam ser valorizados. “Nem sempre a preservação de um espaço vem acompanhada de sua conservação”, diz Ângela. Ela aponta que enquanto a preservação geralmente é um ato legislativo, a partir de uma ação de tombamento para um bem patrimonial que se encontra em risco, a conservação implica ações de restauro e mesmo de divulgação para o seu reconhecimento entre a população. Uma maneira de preservar essas memórias, na opinião da historiadora, seria por uma ressignificação da própria ideia de turismo, afirmando-o como atividade que proporciona um contato com as memórias – por vezes, difíceis – da cidade. “É preciso despertar o olhar das pessoas, afinal você só preserva e conserva um bem se conhece o valor e mantém uma relação de identidade com ele.” 


As origens da capital

Entenda a formação de São Paulo por meio de cinco roteiros*
 

A chegada a São Paulo: Caminho de Santos

O caminho de Santos foi por onde os portugueses, aproveitando os caminhos indígenas, chegaram para fundar as povoações que dariam origem à Vila de São Paulo. Desse núcleo inicial, uma das vias que levavam a Santos percorria a rua da Glória, descia à atual Rua do Lavapés, seguia pela Colônia da Glória, Cambuci, Ipiranga e chegava à Estrada das Lágrimas, que demarcava o fim da cidade. A Figueira das Lágrimas, árvore mais antiga de São Paulo existente até hoje, era onde os viajantes se despediam.
Percurso: Figueira das Lágrimas, Rua do Lavapés, Outeiro da Glória, Igreja N. S. da Boa Morte, Igreja dos Aflitos (foto) e Igreja dos Enforcados, Quartel do Parque D. Pedro II, Avenida do Estado e Av. D. Pedro II, Monumento à Independência, Museu Paulista e Casa do Grito.

 

A descoberta do ouro: Caminho do Guaré

O caminho do Guaré nasceu de uma pequena trilha indígena que, na área do atual bairro da Luz, era mais aberta e propícia à pastagem do gado. A maioria dos tropeiros que iam à região das Minas Gerais descia pela atual Rua Florêncio de Abreu, cruzava o campo do Guaré (hoje Avenida Tiradentes), atravessava o Rio Tietê e seguia em direção à Serra da Cantareira. No século 19, o caminho foi engolido pela expansão da cidade, e a chegada das ferrovias conferiu ao bairro da Luz o aspecto de entroncamento de diversos outros caminhos.
Percurso: Largo São Bento, Viaduto Santa Ifigênia, Rua Florêncio de Abreu, Mosteiro da Luz (foto), Jardim da Luz, Ponte das Bandeiras, Parque da Juventude, Sítio Morrinhos.

 

Caminhos dos tropeiros: Caminho de Pinheiros e Sorocaba

O caminho dos tropeiros ligava São Paulo ao sul do país e no século 18 era utilizado por tropas que abasteciam os centros urbanos. A partir do largo de São Francisco, cruzava o Vale do Anhangabaú, o Largo e a Ladeira da Memória (um dos bebedouros das tropas), a atual Avenida da Consolação, o espigão do Caaguaçu (mata grande em Tupi, da qual o Parque Trianon é um remanescente), a atual Rua Teodoro Sampaio, Aldeia de Pinheiros (hoje largo de Pinheiros), e, após cruzar o Rio Pinheiros, seguia até Sorocaba e dali em direção a Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Percurso: Largo e Ladeira de São Francisco, Largo da Memória (foto), Largo de Pinheiros e Igreja de Nossa Senhora de Monte Serrat, Casa do Bandeirante e Casa do Sertanista.

 

A formação de aldeamentos jesuíticos: Caminho do Vale do Paraíba e de São Miguel

No século 16, período do estabelecimento de aldeamentos jesuíticos como os de São Miguel e Guarulhos, esse caminho partia da ladeira do Carmo, no centro da cidade (hoje Av. Rangel Pestana), cruzava o vale do Tamanduateí, acompanhava o vale do Rio Tietê por onde hoje estão os bairros do Brás e Tatuapé, até chegar à Penha, de onde seguia para o aldeamento de São Miguel, passando próximo à área de Biacica (onde existe remanescente de antiga capela) e ao local onde se situam as ruínas do Sítio Mirim.
Percurso: Igreja da Ordem Terceira do Carmo, Outeiro da Penha – Igreja de Nossa Senhora da Penha, Igreja Nossa Senhora do Rosário, Avenida Gabriela Mistral (antiga Estrada da Conceição) e Avenida Doutor Assis Ribeiro, Sítio Mirim e Capela de São Miguel.


A ocupação do interior: Caminho de Campinas

O caminho de Campinas era uma das vias abertas em direção ao interior do país no século 17, principalmente nos períodos da economia do ouro e da expansão da produção de açúcar. Da Ladeira de São João, seguia pelas atuais avenidas São João e Francisco Matarazzo e se bifurcava. Um dos caminhos cruzava o Rio Tietê, subindo em direção ao Outeiro da Freguesia do Ó, Perus, Jaraguá, Jundiaí e Campinas. A outra variante prosseguia pela atual Rua Guaicurus, cruzando o Rio Tietê na altura do bairro da Lapa. Posteriormente essa região se tornou área industrial, com a criação de um eixo ferroviário.
Percurso: Praça Antônio Prado, Casa das Caldeiras (foto), Estação Ciência, Mercado da Lapa, Avenida Santa Marina, Largo Nossa Senhora do Ó, Pico do Jaraguá.

 

Turista na própria cidade

Com o objetivo de aproximar os habitantes de São Paulo de seus patrimônios e memórias, o programa de Turismo Social do Sesc realiza diversos passeios na cidade de São Paulo. O público é formado principalmente pelos próprios moradores, que são incentivados a adotar novos olhares para espaços que muitas vezes fazem parte do cotidiano.

Conheça alguns roteiros oferecidos:
 

22/1 - Paulista: história e arte pública
Saída às 9h, do Sesc Santana
Um passeio para contar a história de São Paulo na Avenida Paulista, onde é possível traçar um panorama da história da arte: painéis de Maria Bonomi na estação Paraíso do metrô; as esculturas Índio Pescador e Aretuza, ambas de Francisco Leopoldo Silva, na Praça Oswaldo Cruz e no Parque Trianon; a escultura O Fauno, de Victor Brecheret, nesse mesmo parque; o Museu de Arte de São Paulo (Masp), de Lina Bo Bardi; mosaicos de Burle Marx na Casa das Rosas; grafite Niemeyer, de Eduardo Kobra, no início da Avenida; painéis de bronze, de Marco Ulgheri, no Hospital Santa Catarina; escultura de Tomie Ohtake, na altura do número 1111, entre outros exemplos percorridos neste roteiro.

Mais informações no portal SescSP.


11/2 - Santana Zona Norte
Saída às 10h do Sesc Santana
Ainda há Santana em Santana. Em documentário, Ugo Giorgetti mostra as marcas da história nas ruas e nas falas dos moradores. Seguindo as pistas do cineasta, o passeio percorre o bairro e visita espaços que falam sobre a memória de São Paulo, como o Parque da Juventude e o Sítio Morrinhos.

Mais informações no portal SescSP.
 

Para mais informações sobre os roteiros do Turismo Social acesse sescsp.org.br/turismo