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Lygia da Veiga Pereira

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

Lygia da Veiga Pereira

Pesquisadora fala sobre os avanços da pesquisa em genética e biociências no Brasil

Professora de Genética Humana e Chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo (USP), Lygia da Veiga Pereira coordenou em 2009 a criação da primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias de multiplicação in vitro. Autora de livros como Sequenciaram o Genoma Humano... E Agora? (Moderna, 2005) e Clonagem: Fatos e Mitos (Moderna, 2008), Lygia trata, nesta entrevista, de suas pesquisas e de questões ligadas a descobertas científicas recentes. “Com o avanço da medicina a tendência é vivermos mais”, afirma. “O curioso é que as pessoas colocam tudo nas mãos da tecnologia, das ciências biomédicas, mas para viver longamente precisamos de um planeta onde isso seja possível, do ponto de vista ambiental e social.”
 

Com os avanços da medicina, é possível que em algumas décadas o ser humano chegue à condição de não morrer mais por causa de doenças?
O saneamento básico e o uso de antibióticos foram os dois grandes aumentos de longevidade da humanidade, e, quanto mais a gente entende da nossa biologia, esses aumentos se incrementam. Não se sabe se existe um limite para a nossa longevidade, mas claro que com o avanço da medicina a tendência é vivermos mais. O que acho curioso é que as pessoas, para viver mais, colocam tudo nas mãos da tecnologia, das ciências biomédicas, mas para viver longamente precisamos de um planeta onde isso seja possível, do ponto de vista ambiental e social. Tenho a impressão de que a gente avançou muito no que se refere as ciências exatas, biomédicas, mas existe um descompasso entre o homem tecnológico e o homem social. 


Como aquela primeira linhagem de células-tronco embrionárias tem se desdobrado nos estudos feitos por você hoje?
Primeiro, cabe explicar que célula-tronco embrionária é aquela que pode virar qualquer tecido do nosso corpo e é derivada de embriões da fertilização in vitro, ou seja, de embriões que sobraram da fertilização in vitro. A gente tira essa célula do embrião, consegue multiplicá-la no laboratório e, a partir daí, é possível que ela se torne músculo, neurônio etc. Quando vimos o genoma dessas células com que estávamos trabalhando, percebemos que mais de 90% tinha genética europeia. Isso nos chamou a atenção, porque os brasileiros, em geral, são uma mistura de populações indígenas, europeias e africanas. Temos como particularidade essa mistura. Então, a nossa hipótese para que esses embriões fossem europeus era que, por esses embriões virem de clínicas de fertilização, talvez eles não fossem representativos. Assim, para capturar essa diversidade genética, foi desenvolvido o Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa), que acompanha 15 mil pessoas em instituições públicas nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste do Brasil, com a ideia de descobrir a incidência de doenças mais comuns, como diabetes e doenças cardiovasculares. Em 2007, um grupo no Japão descobriu uma forma de a gente pegar uma célula qualquer em uma pessoa e reprogramá-la para que vire uma célula embrionária, que pode depois ser transformada no tecido que for necessário, no laboratório. São as chamadas células-tronco induzidas. A gente fez uma parceria com o estudo Elsa e eles passaram também a fazer parte da nossa pesquisa, e começamos, a partir desse processo, a analisar o genoma dessas células-tronco induzidas. Vimos que, assim, a gente teria uma captura da mistura da população brasileira, com europeus, africanos, ameríndios.

 

Quais têm sido os resultados desse estudo para a população de modo geral?
A gente tem agora uma variedade de células da população brasileira em laboratório, de modo que a gente pode testar novos medicamentos, ver como esses medicamentos se comportam na nossa população. Por exemplo, se eu estou testando um novo medicamento para o coração, após testes em modelo animal, eventualmente eu vou precisar testar em uma pessoa. Porém, com essas células-tronco induzidas é possível testar como esse medicamento se comportaria em células do coração de vários brasileiros.

 

Ou seja, seria possível pensar em medicamentos adequados à nossa população?
A gente pode saber e tentar prever como esse medicamento vai funcionar nessa população específica. A ideia é poder estudar a resposta que as pessoas têm a diferentes medicamentos. Outro aspecto é que, como cada célula desse banco está vinculada a dados clínicos de cada indivíduo, é possível saber quantas pessoas têm hipertensão e quantas não respondem a nenhum medicamento, por exemplo. Assim, é possível estudar e descobrir se a biologia de uma pessoa vai responder ou não ao medicamento. É um material para pesquisa muito rico.

 

Em geral, as pesquisas científicas, hoje, são voltadas para a população de origem europeia?
As revistas científicas internacionais têm publicado alguns artigos mostrando uma desigualdade de temas de pesquisa, apontando que o predomínio, mais de 80%, é de pesquisa de indivíduos de origem europeia. A gente tem toda uma população negligenciada, e temos uma genética misturada, coisas que podem trazer respostas muito interessantes sobre a biologia humana. O Brasil não tem o poder financeiro dos Estados Unidos, Europa e Ásia, temos um menor número de cientistas, mas, à medida que células, dados clínicos e eventualmente um genoma brasileiro ficam disponíveis para pesquisadores mundiais, isso vai gerar interesse e atrair pesquisadores para trabalhar com nosso material também.

 

Os avanços atuais em torno das pesquisas com células-tronco são no âmbito da regeneração de órgãos ou já se fala em gerar órgãos em laboratório?
Nós ainda estamos longe de gerar um órgão inteiro no laboratório, mas há avanços nessa questão. Outro dia li um artigo sobre uma pesquisa na qual pegavam um coração de porco, que tem uma fisiologia parecida com a do coração humano, tiravam todas as células daquele coração e começavam a plantar ali células cardíacas humanas. Existe gente tentando adaptar impressoras 3D para elas imprimirem esses órgãos, então eventualmente é possível que a gente chegue lá. Hoje, as terapias trabalham muito mais na regeneração de um órgão. A partir das células-tronco embrionárias a gente é capaz de produzir células do músculo cardíaco, então se eu pegar essas células e injetar no coração de um macaco em uma área de infarto, essas células se integram, regeneram-se e melhoram a condição cardíaca do macaco. Isso já é um fato, e a partir do ano que vem pretende-se começar a experimentar em seres humanos. Uma coisa que já está sendo testada em seres humanos é a produção, a partir de células-tronco embrionárias, de células-tronco de insulina, que podem ajudar na diabetes. O avanço é maior na área em que se produzem células que podem regenerar o órgão da pessoa, mas a gente também está avançando na área de construir órgãos inteiros.

 

A área ligada às células-tronco passou por inúmeras discussões sobre questões éticas até a aprovação da Lei de Biossegurança, em 2008, que regulamentou esse tipo de pesquisa. Como você vê esse debate?
Na discussão da Lei de Biossegurança, a polêmica é que para fazer a célula-tronco embrionária seria preciso utilizar um embrião humano. Eu acho que o papel do cientista é dar a informação absolutamente clara, sem ideologia embutida. Do contrário, é abuso de poder, já que a gente tem um conhecimento sobre o assunto que a população em geral não tem. A gente vive em uma democracia e é a nossa população quem decide o que será ou não permitido. No caso das pesquisas com células-tronco, não se trata de um feto, e sim de um embrião da fertilização in vitro. Esse embrião já é produzido e descartado, ou pelo menos produzido e esquecido nos congeladores. Isso ocorre desde o dia em que foram aceitas as técnicas de fertilização in vitro, e até então ninguém havia polemizado em torno disso. Naquela discussão, de um lado havia um grupo distorcendo a informação, como se o embrião fosse apenas um aglomerado de células. Porém, não é assim. Não é um material biológico trivial. Por outro lado, quem era contra justificava a proibição do uso de embriões com uma ideologia embutida. O ponto da discussão, portanto, era que fossem mostrados os prós e os contras sem ideologia, deixando claro o que nossa população gostaria de fazer em relação a isso. No fim, o que se decidiu foi que somente embriões congelados há mais de três anos e com o consentimento dos pais poderiam ser aprovados para pesquisa, mediante todos os procedimentos legais para isso.

 

Muitas vezes essas questões remetem aos filmes de ficção científica, como a clonagem e o homem-máquina. No estágio atual de avanço das pesquisas, alguns desses cenários seriam possíveis?
Quanto ao homem-máquina, já existe um esforço enorme, com algum sucesso, em traduzir vontades em impulsos elétricos interpretados por um computador, que então traduz isso em um movimento. Uma pessoa com lesão de medula poderia, assim, pensar em querer andar e esse impulso seria transmitido para uma prótese e mexeria a perna, por exemplo. Já em relação à clonagem, atualmente não é possível fazer com que uma célula sozinha vire um ser humano, mas nos Estados Unidos, dois anos atrás, foi publicado um artigo mostrando que era possível produzir embriões clonados para produzir células geneticamente idênticas. A pesquisa era apenas para mostrar essa produção, mas o que me assustou na época foi a eficiência com que eles conseguiram produzir esses embriões clonados. Havia apenas uma barreira ética e legal para colocar esses embriões em um útero. Ou seja, do ponto de vista técnico, já existe capacidade de gerar um clone humano, mas é um consenso internacional que isso não deve ser feito com seres humanos. Primeiramente, devido aos riscos. Mesmo em animais, como a ovelha Dolly, é possível observar que para cada clone são gerados diversos que têm resultados desastrosos. Além disso, há questões sociais, legais, sobre os riscos para a própria sociedade.

 

Em relação à situação da ciência no Brasil, fala-se muito na chamada “evasão de cérebros”, ou seja, nos cientistas que realizam suas pesquisas no exterior. Você vê isso acontecendo?
É muito difícil fazer pesquisa no Brasil. Eu fiz uma opção de querer morar aqui, e me satisfaz fazer uma diferença significativa localmente. Porém, o pesquisador brasileiro, de modo geral, enfrenta muitas dificuldades. Para a gente conseguir fazer uma diferença significativa globalmente é muito mais difícil, as condições de pesquisa são muito ruins. Mesmo tendo verba, existem outras dificuldades, como a burocracia. Muitas vezes importar um reagente leva dois meses. Como ser competitivo e fazer pesquisa de ponta tendo que esperar dois meses por um reagente? Recursos humanos a gente tem, pessoas entusiasmadas, profissionais entusiasmados, mas infelizmente eles muitas vezes têm sido ¿subaproveitados.

 

As descobertas científicas costumam suscitar muita expectativa sobre a cura de algumas doenças. Como você lida com isso?
Isso me chega por inúmeros e-mails, toda semana, de familiares ou pessoas com doenças, querendo saber se a célula-tronco já possibilita cura. Quando a gente vai dar aulas ou palestras alguém sempre pergunta sobre isso, e é uma das questões mais difíceis de responder, porque na verdade a gente ainda pode oferecer muito pouco para essas pessoas. Como cientistas, nosso papel é dizer o que já é possível de fato na ciência. É muito difícil esse balanço entre ser absolutamente transparente e verdadeiro com a população sem tirar a esperança das pessoas na cura de doenças por meio de células-tronco. Há muito investimento, muitos governos colocando dinheiro para transformar isso em uma realidade, mas a gente ainda não chegou lá. É assim que a ciência segue, com ousadia mas responsabilidade. Não se pode cruzar essa linha, pelo bem do paciente.

 

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