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Ao aliar ideologia e técnica, a produção de gravuristas pernambucanos é capítulo marcante da história da arte brasileira


Revista E Sesc São Paulo - Matéria Gráfica novembro/2016

A gravura passou a ter relevância no Brasil, como técnica e linguagem artística voltada à crítica social, na época em que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) chegava ao fim. De acordo com a historiadora Laura de Souza, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, o marco histórico se deu entre os anos 1940 e 1950. “Mais do que falar sobre uma geração, pensando nesse olhar técnico e em nomes como Carlos Scliar, Goeldi, Gilvan Samico, Fayga Ostrower, Marcelo Grassmann, Renina Katz e outros, a gravura passa a ser a principal linguagem para articular interesses entre dois mundos: o do pensamento sobre a sociedade e o do papel da arte”, explica.

Laura, que também é integrante do Coletivo Expográfica, em Pernambuco, ressalta ainda o engajamento da produção de alguns artistas em atividade no período. “Trabalhos como os de Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi elevaram a gravura a um patamar de reflexão sobre a sociedade em um momento histórico de crença no desenvolvimentismo e de busca pela paz e pela justiça social.”
 

Linguagem moderna

É a partir dos anos 1950 que começa a funcionar o Atelier Coletivo, formado pelos artistas pernambucanos José Cláudio, Wilton de Souza, Abelardo da Hora, Wellington Virgolino, Guita Charifker, Gilvan Samico e Corbiniano Lins. O grupo tem seu cerne regional, mas se articulou nacionalmente formando uma rede de gravuristas. Essa realização foi impactante e objeto de estudos acadêmicos e livros, como Memória do Atelier Coletivo (Cepe Editora, 1978) – escrito por José Claudio, um dos fundadores do grupo –, baseado na compilação de entrevistas com os 21 artistas participantes do coletivo.

O pernambucano Gilvan Samico é lembrado por mudar a noção até então predominante sobre a gravura. “Particularmente a xilo, em madeira, de origem extremamente popular, atinge um patamar de excelência técnica e de criação de uma poética que revela a complexidade dessa técnica artística”, menciona a curadora da exposição Linhas, Trançados e Cores – no Reino de Gilvan Samico, Renata Pimentel (veja detalhes no texto Revolucionário da xilogravura abaixo).

Já a historiadora Laura de Souza atribui à geração de Samico a transformação da gravura numa linguagem moderna, sem minimizar a atuação política dessa manifestação. “Havia diálogos com o ideal artístico da esquerda, sim, mas de forma múltipla. A prática de compartilhamento diferenciava o grupo de uma geração mais antiga de artistas da cidade formada na Escola de Belas Artes e em processos mais individualizados”, opina. “Pensar em ideais de esquerda na arte brasileira dos anos 1950 e 1960 conduz a um grande leque de expressões ora alinhadas com práticas partidárias, ora ligadas a livres questionamentos diante das desigualdades sociais e do sentimento de construção de um país mais justo que fazia parte de muitas instâncias políticas e culturais.”

Em perspectiva, a ação coletiva prossegue influenciando gravuristas, reconfigurando a sua atuação em Recife e Olinda, numa onda diversificada de pensamento e produção estética. Assim, “vemos uma continuidade que, histórica e socialmente, reinventa a presença dos grupos artísticos nas duas cidades”, completa Laura.


Revolucionário da xilogravura

Gilvan Samico dominava a técnica e esbanjava criatividade, desde a construção dos seus instrumentos de trabalho até o resultado da obra

Um dos mais importantes gravuristas do Brasil, Gilvan Samico (1928-2013) tem sua obra em destaque no Sesc Registro até 8 de janeiro. Linhas, Trançados e Cores – no Reino de Gilvan Samico reúne 41 obras do artista pernambucano que iniciou a carreira como pintor autodidata e passou períodos de estudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em 1957, estudou gravura e desenho com Lívio Abramo, na Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e, em 1958, no Rio de Janeiro, frequentou a Escola Nacional de Belas Artes. O artista também teve experiências artísticas na Europa.

A curadora da mostra, Renata Pimentel, é doutora e pesquisadora do Departamento de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco e explica como os três elementos que dão nome à exposição – linhas, trançados e cores – podem ser entendidos na produção do artista. “No conceito curatorial há duas concepções básicas a nortear o entendimento da obra do artista Gilvan Samico. A ideia de manter o olhar lúdico e curioso da infância como um espião errante penetrando o Reino de Samico, um espaço que era sua residência e seu lugar de criação/ateliê, o qual em grande parte foi até, pode-se dizer, construído pelo artista”, detalha. “O outro eixo aponta para os três elementos que se destacam no modo de composição de Samico, que criava suas goivas (usando até hastes de guarda-chuva) para perfurar a madeira e nela desenhar elementos que, recorrentes e usados de forma particular pelo artista, compõem suas gravuras.”

A curadora ressalta ainda que Samico foi responsável por inserir a gravura em um patamar de excelência técnica e de criação de uma poética “que revela quão densa e complexa é essa técnica artística”. Produzia seus próprios instrumentos, chegando ao preciosismo de fazer, por vezes, dezenas de estudos em várias técnicas: lápis, óleo, gravura, até chegar à concepção final da obra. Tudo isso o faz redimensionar a xilogravura não só em Pernambuco, mas no país e mesmo fora dele”. Em 1968 recebeu um prêmio oferecido pela Bienal de Veneza, o que demonstra repercussão internacional de suas criações. “Samico deixa um legado que certamente revoluciona o modo de fazer e pensar a (xilo)gravura em qualquer parte”, diz Renata. Para mais informações sobre a exposição, confira no portal SescSP.
 

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