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Rei da noite

Foto: Divulgação
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Rei da noite


Autor de sambas memoráveis, Nelson Cavaquinho se diferenciava pelo jeito de tocar e pelas letras melancólicas


Boêmio e talentoso, Nelson Cavaquinho era conhecido como “São Francisco do Samba”, por não se importar em gastar o cachê recebido com qualquer um que pedisse uma bebida ou apelasse para uma refeição. Nascido em 1911, Nelson Antônio da Silva incorporou no nome o primeiro instrumento aprendido. E foi de ver e ouvir, com cavaquinho emprestado. De família sem posses, deixou os estudos para trabalhar e não concluiu o ensino fundamental. Mas o aprendizado informal não impediu que o talento aflorasse e o fizesse criar composições “impecáveis, sem um erro de português”, como diz Afonso Machado, autor da biografia Nelson Cavaquinho – Violão Carioca (2010). Machado teve a oportunidade de conhecer o compositor no final da década de 1970, em uma noitada de samba que acontecia às segundas-feiras no teatro carioca Opinião.

As dificuldades financeiras e o gosto pela bebida acompanharam Nelson durante a vida. Morou no bairro da Tijuca, na Lapa e no bairro de Fátima. Antes de ser reconhecido pela qualidade de suas composições, fazia música para pagar a estadia nos hotéis onde dormia. Guardava algumas músicas na cabeça, outras vendia aos compositores menos inspirados. As de que não se lembrava ou que não eram gravadas caíam no esquecimento. Estima-se que tenha composto mais de 400 canções, mas apenas metade delas estão registradas.

Antes de se firmar no samba e por insistência do pai, trabalhou na Polícia Militar do Rio de Janeiro fazendo ronda noturna a cavalo. Durante a noite, muitas vezes o animal era amarrado a um poste para que Nelson desse uma paradinha no botequim para beber, tocar e jogar conversa fora. Jovem, aos 20 anos se casou pela primeira vez e sustentava a casa de forma errante, sem muita vontade de se amarrar nos compromissos comuns a um homem sério da época. Controverso, chegou a ser detido algumas vezes por faltar ao trabalho. Sobre a polêmica, dizia que já estava se acostumando ao xadrez. Aproveitava as horas na detenção para compor. Um dos resultados mais conhecidos dessas transgressões é “Entre a Cruz e a Espada”, melancólica e direta na mensagem de um coração partido.
 

Entre os bambas

Nelson Cavaquinho era presença frequente no Morro da Mangueira, onde também fazia suas rondas a cavalo. Lá conheceu Cartola e Carlos Cachaça, que se tornaram amigos e parceiros. Chegou a desfilar pela Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e recebeu homenagem póstuma da agremiação em 2011, sendo inspiração para o enredo daquele ano. A Mangueira também frequentou muitas de suas composições, como “Rio, Não És Mais Criança” e “Sempre Mangueira”.

Afonso Machado afirma que nos anos de 1960 os desejos musicais de Nelson passaram a se concretizar. “A partir da década de 1960, ele foi descoberto, começou a ser chamado para shows e Elizeth Cardoso gravou três sambas dele que se tornaram hinos: ‘A Flor e o Espinho’, ‘Luz Negra’ e ‘Vou Partir’”, elenca. Bem-sucedido em agradar quem se aproximasse, Nelson Cavaquinho era agregador por excelência. Quando começava a tocar, ninguém resistia a se aproximar. “O público dele eram os jornalistas, músicos, intelectuais que descobriram o Nelson, mas também se juntavam moradores de rua, todo tipo de gente, ele gostava de estar cercado de gente”, completa.


Jeito diferente

Para executar suas canções, tinha o violão como instrumento, tocando-o de forma diferente, utilizando o polegar e o indicador direitos. A voz é outro ponto que se destacava. Romulo Fróes, músico que lançou neste ano o disco Rei Vadio – As Canções de Nelson Cavaquinho (Selo Sesc), comenta a estranheza que ecoa no universo de Nelson Cavaquinho. “Era estranho o modo como tocava e a sua voz, enfatizando suas cordas vocais estragadas assim como a vida. Acho meio louco as pessoas quererem tratá-lo como algo lírico! Ele era um vadio, mas era rei, era nobre, tinha uma postura de rei”, enfatiza.

Autor de composições que tematizavam a morte, mulheres e as flores como metáfora, Nelson teve uma série de parceiros ao longo da vida. “A Flor e o Espinho”, por exemplo, é o resultado da parceria de sucesso com Guilherme de Brito, iniciada em 1951. Na época, o companheiro de canções fez com que Nelson deixasse de comercializar suas composições – procedimento usual nas décadas de 1930 e 1940, quando era comum que os letristas vendessem suas músicas a outros, perdendo a autoria.

Nelson é admirado por músicos brasileiros de estilos diversos, como Chico Buarque e Paulinho da Viola – portelense de coração que gravou “Meu Pecado”; além de Elis Regina e Beth Carvalho, a cantora que mais gravou suas canções.

No cinema, está em registro já clássico no curta-metragem feito pelo cineasta Leon Hirszman, em 1969. A preciosidade em preto e branco não dura nem 15 minutos, mas é consistente em mostrar o cotidiano de Nelson com os amigos de bar e de samba. Poeta original, juntou músicas e histórias que o colocam num patamar de prestígio na história da música brasileira. Sem fazer nenhuma concessão ao seu gênio ou suas predileções, levou a vida despreocupado com o dinheiro e se perguntando quando a morte viria, como retrata em alguns de seus sambas.

Chamado por Baden Powell de “uma cachoeira de música”, teve a boemia como parceira. Morreu em casa enquanto dormia, aos 74 anos, em 1986. “Continuou até o final da vida boêmio, incorrigível. Do que ele gostava mesmo era isso, fazia shows no teatro João Caetano e, ao terminar, ia para a birosca em frente e muita gente ia atrás porque sabia que o show iria continuar madrugada a dentro”, relata Machado.


Homenagem em disco

Guiado pela sensibilidade de Romulo Fróes, álbum celebra a memória musical brasileira


Lançado pelo Selo Sesc com o objetivo de apresentar a obra de Nelson Cavaquinho ao público, o disco Rei Vadio – As Canções de Nelson Cavaquinho celebra a memória da música brasileira.

“É nessa linha que enxergamos a importância do disco. O projeto nos foi proposto pelo próprio Romulo Fróes, que se sentia atraído pelo universo musical criado pelo mestre Nelson Cavaquinho. Um universo áspero, carregado de tristeza e desilusões”, comenta Wagner Palazzi, do Centro de Produção Audiovisual do Selo Sesc.

A homenagem de Fróes a Nelson Cavaquinho conta com a participação de Kiko Dinucci, Ná Ozzetti, Criolo, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral e Thiago França. O músico também esteve no projeto Discografias, no Centro de Pesquisa e Formação, para uma conversa sobre o processo de produção de cada um de seus discos, entre eles, o feito em homenagem a Nelson Cavaquinho.

Palazzi nota que a trajetória discográfica de Fróes – que se iniciou em Calado, de 2004 – guarda semelhança com o universo de Cavaquinho. As canções de Fróes “parecem caminhar, assim como a obra de Nelson, entre a ‘flor e o espinho’. Assim, nos pareceu natural apresentar ao público a obra de Nelson Cavaquinho, filtrada, é claro, pela sonoridade de Romulo Fróes”, sintetiza.

O CD acompanha um encarte caprichado, agradando não só aos ouvidos, mas aos olhos dos fãs de música popular brasileira (mais informações em sescsp.org.br/selosesc).

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