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Roberto Pompeu de Toledo

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

Roberto Pompeu de Toledo

Jornalista e escritor fala sobre a história de São Paulo, da origem até sua transformação em centro comercial e financeiro no século 20

Jornalista e escritor, Roberto Pompeu de Toledo é também pesquisador da história da capital paulista e autor de dois livros sobre o tema. Em A Capital da Solidão (Objetiva, 2003), conta a história de São Paulo desde a origem até se tornar uma metrópole, em 1900. Em A Capital da Vertigem, lançado no ano passado pela mesma editora, narra a arrancada da cidade rumo à modernidade, do início do século 20 até 1954, ano em que a metrópole completou 400 anos. Nesta entrevista, Roberto fala sobre as pesquisas relacionadas aos livros e sobre a formação da megalópole paulistana como conhecemos hoje.


Devido às imigrações, São Paulo agregava diversas nacionalidades. Podemos dizer que a cidade, em determinado momento, era uma síntese de diferentes ideias provenientes de todo o mundo?
Sim, no Brasil São Paulo era a melhor síntese. No livro, A Capital da Solidão, que conta a história dos primeiros séculos de São Paulo, chamei a atenção para o fato de São Paulo ser a mais brasileira das cidades. Isso porque, diferentemente das cidades do litoral, ela fugiu à lógica da colonização portuguesa. As povoações fundadas ao longo do litoral que se mostravam mais promissoras, como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, eram meras transposições do padrão português. São Paulo escapou a essa lógica. Uma pequena população de portugueses se mescla com uma população muito mais significativa de índios. É uma sociedade muito original, e a mais brasileira das cidades vai virar, na passagem do século 19 para o 20, a mais estrangeira das cidades brasileiras. O Censo de 1872, o primeiro feito no Brasil, mostrou que São Paulo tinha 30 mil habitantes. Era a décima cidade brasileira, mas ainda não era a maior do estado, que era Campinas. Em 1890, no segundo Censo, já estava entre as cinco maiores, e a maior parte da população então era estrangeira. Era a época em que começa a maior leva da imigração. Nesse momento, São Paulo passa a ter uma população de origem europeia maior que a de origem nacional. Essa São Paulo desse período tem a característica de ser muito cosmopolita, era uma cidade onde se ouvia mais italiano do que português, por exemplo.

Essa transformação de São Paulo em um centro comercial e financeiro está ligada ao plantio do café?
A grande produção de café começa no Vale do Paraíba no século 19, mas não beneficiava a cidade de São Paulo, porque as cidades paulistas do Vale do Paraíba tinham o porto do Rio de Janeiro como lugar para desaguar. O Rio de Janeiro era, naquele período, a capital financeira e o centro exportador. Apenas após o esgotamento do Vale do Paraíba, quando o café se transpõe para a região de Campinas, na época chamada Oeste Paulista, é que o porto de Santos se transforma em escoador da produção. A estrada de ferro em 1867 é construída entre Jundiaí e Santos passando por São Paulo. Isso beneficiou São Paulo, que se torna o centro comercial e financeiro, e começa a haver uma acumulação de capital que vai propiciar um salto para a indústria. Esse triângulo Campinas-São Paulo-Santos é o que explica a grande explosão do estado de São Paulo, já que as três cidades passaram a representar o centro produtor, administrativo, financeiro, comercial e exportador.
 

No começo do século 19,  havia uma tensão entre as diversas nacionalidades que viviam na capital?
Na relação entre brasileiros e italianos, na década de 1890, houve a chamada “questão dos protocolos”, que envolve um incidente com um navio italiano e mexe com os brios nacionalistas. Em São Paulo, isso explode em uma manifestação nacionalista que provoca a reação da grande colônia italiana com conflitos de rua pela cidade. Há uma situação de tensão mais notável de italianos e paulistas que se mostra um pouco no livro do Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda. Esse livro reflete a tensão e a convivência, o italiano se abrasileirando e o brasileiro cedendo à presença estrangeira. Essas coisas estavam na literatura da época e prevaleceram durante um tempo. Eu diria que prevaleceu e só vai se dissolver a partir da explosão urbana nos anos 1960 e 1970. Evidentemente, entre as diversas colônias você pode sentir um certo fechamento. Os sírio-libaneses, por exemplo, formavam fortes grupos industriais, com percursos muito característicos, de mascate para comerciante e industrial, e durante muito tempo costumavam casar apenas entre si.

 

Existe um episódio em 1917 da famosa greve geral na cidade. Qual a influência das ideias europeias e dos imigrantes nesse acontecimento?
Dentro das colônias formavam-se organizações sindicais, muitas vezes por gente que em seus países de origem já tinham uma atuação na agitação operária. São eles os responsáveis pela organização nas fábricas e pelo movimento que veio desde o começo do século 20 até culminar nessa greve de 1917, que realmente parou a cidade. Além disso, havia o exemplo da Europa, onde naquele momento havia uma luta de classes acirrada. Esse ano de 1917 é o mesmo da revolução bolchevique. A greve brasileira não chegou a ser influenciada, mas em 1919, em uma outra greve grande que ocorreu na cidade, já havia influência da revolução bolchevique. Em 1917, quando ocorre essa grande greve em São Paulo, havia um movimento sindical anarquista muito forte e um socialista de menor expressão.


Qual é o reflexo da Segunda Guerra Mundial na cidade?
Trato disso em um capítulo de A Capital da Vertigem. São Paulo tinha importantes grupos que faziam parte da cidade, como africanos e japoneses. A Roma fascista e a Berlim nazista exerciam influência sobre as instituições existentes nas colônias paulistas, inclusive nas escolas. Era uma ação política. Eu compreendi, ao pesquisar esse livro, que a Segunda Guerra foi algo com mais consequências possíveis para o Brasil do que a gente imagina. Se o destino da guerra tivesse sido outro, o Brasil poderia ter sido usado para a expansão da Alemanha e da Itália. Há documentação na Alemanha sobre a importância de manter boas relações com o sul do Brasil, por exemplo. Havia um programa idealizado nas capitais europeias do Eixo [bloco formado por Alemanha, Itália e Japão, entre outros] e colocado em ação no Brasil, em São Paulo especialmente, e isso gerou uma reação, em um momento em que o Brasil tomou partido no lado dos Aliados [bloco formado por Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, entre outros], uma repressão forte contra essas instituições. Mesmo os times de futebol sofreram consequência. No campeonato paulista de 1942, um jogo do São Paulo com o Palestra, hoje Palmeiras, vira uma espécie de guerra em campo, e o Palmeiras consegue superar a hostilidade despejada em cima da colônia italiana, vence o campeonato e esse episódio fica conhecido como “arrancada heroica”.

 

Em relação aos negros na cidade de São Paulo, o que houve com os espaços da negritude no momento de expansão da capital?
Quando se substituiu a mão de obra negra pela dos imigrantes europeus, os negros mais uma vez saíram perdendo, marginalizados, já que os empregos que poderiam ser deles, como profissionais assalariados, foram redirecionados para os imigrantes. Quando se fala em abolição, é bom ter isso em conta. São Paulo não tinha uma população negra muito expressiva, se comparada a outras cidades brasileiras. O período em que o escravismo foi forte na lavoura paulista foi o período do Vale do Paraíba. Quando a produção passa para o oeste paulista, já é uma mão de obra estrangeira. Em São Paulo, na capital, havia uma Igreja do Rosário para negros no Centro, que foi demolida na reforma feita pelo prefeito Antonio Prado, de 1899 a 1911. Essa igreja era um ponto de reunião, onde ocorriam também ritos de religiões africanas, executados paralelamente à igreja. Hoje, a Igreja do Rosário dos Pretos fica no Paissandu. Porém, durante todo o tempo os negros ocupavam um espaço muito marginalizado na cidade, como em quase todo o país.

 

Quais foram alguns dos personagens mais marcantes na história da cidade?
Cronologicamente, um dos primeiros personagens foi João Ramalho, um náufrago de origem não sabida que formou em torno dele um bando de índios que foram se multiplicando por laços familiares, em um fenômeno que o Darcy Ribeiro chamou de cunhadismo, quando você começa a trazer os irmãos da mulher com quem casou para o seu lado. Assim, Ramalho foi formando exércitos de luta, um bando capaz de enfrentar outros bandos, e um exército de mão de obra também. Essa figura está na origem do bandeirantismo, apesar de ele não se aventurar além do planalto paulista. É uma figura da mistura do português com o índio. Isso está na origem de São Paulo. Outra figura que me causa assombro é o Padre Manuel da Nóbrega, o jesuíta. O Manuel da Nóbrega tinha a maior das ambições que podem assaltar a mente de uma pessoa, fundar uma sociedade nova. Ele veio de Portugal como chefe da comitiva jesuíta, e tinha como projeto criar nas populações americanas, que ele via como almas livres dos vícios e da corrupção, espécies de folhas limpas onde ele escreveria o verdadeiro “ser cristão”. Era um projeto que se conjugava ao projeto português, e Nóbrega se entusiasmava com aquilo. Quem acompanha isso pelas cartas jesuítas dele percebe que é uma alma hamletiana. Esses são só dois, mas há muitos personagens.

 

São Paulo é uma das maiores cidades do mundo. É comum que aconteçam momentos de fadiga em meio a esse crescimento ininterrupto?
Escrevendo meus livros, me dei conta de que a cidade é a maior invenção da humanidade. Uma cidade é um lugar de troca, de convívio. Essa maneira de viver junto foi o que proporcionou o homo sapiens que somos hoje. Se não houvesse a cidade, seríamos diferentes, a meu ver com uma população reduzida e um intelecto menos desenvolvido. Sobre a fadiga, acho que São Paulo ultrapassou os limites de uma cidade que você possa dominar. Você não domina uma cidade desse tamanho, você conhece um terço dela, no máximo.

 

Na Segunda Guerra, por exemplo, houve um momento vertiginoso parecido?
Chamei o meu segundo livro, que abrange o período de 1900 a 1950, de A Capital da Vertigem, porque há uma vertigem em vários sentidos. Há o crescimento vertiginoso da cidade, com o crescimento industrial; uma vertigem artística, com a Semana de Arte Moderna, o Masp [Museu de Arte Moderna], o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia]; e uma vertigem das mentalidades, de as pessoas acharem que estão no lugar certo na hora certa. Digo isso no sentido de que, na primeira metade do século 20, a indústria, a chaminé, a eletricidade, o automóvel, o motor, tudo isso era muito novo e muito fascinante. O mundo se encontrava em uma passagem para um estágio superior de progresso e o melhor lugar que espelhava isso no Brasil era São Paulo.

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