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postado em 02/03/2020

Tio Gê - O samba paulista de Geraldo Filme

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Geraldo Filme (1927–1995) já foi Negrinho das Marmitas, Geraldão da Barra Funda e Tio Gê, entre tantas outras alcunhas que marcaram o percurso desse sambista excepcional. Foi, antes de tudo, símbolo de resistência. Combateu obstinadamente três duros processos de apagamento: o do samba, perseguido pela polícia; o da negritude, desvalorizada em seu protagonismo; e o da memória da cidade de São Paulo, esquecida na acelerada urbanização.

A vocação para resistir aparece cedo, aos 10 anos, quando o menino Geraldo decide provar ao pai que existe samba de verdade na capital da garoa. E produz a prova da maneira mais prática e poética possível: compõe o samba “Eu vou mostrar”. A partir de então, o samba negro paulista se faria presente e persistente em suas composições.

Ouvir Geraldo Filme é transportar-se para o tempo do samba batido com latão de lixo e caixa de engraxate no extinto Largo da Banana, na Barra Funda. São cenários vivamente construídos onde enxerga-se o drama dos negros, diplomados apenas na escola de samba, eternamente oprimidos em suas manifestações culturais, como o jogo de tiririca e o batuque de Pirapora do Bom Jesus. E Tio Gê não ficava só na superfície do que via ou do que já tinha vivenciado. Como um verdadeiro pesquisador, vasculhou os arquivos da cidade para resgatar Tebas, negro escravizado e ás da alvenaria, responsável pela construção das torres da Catedral da Sé.

O novo lançamento do Selo, Tio Gê – O samba paulista de Geraldo Filme, traz toda a genialidade e a coerência da obra do artista, com um repertório organizado de maneira a mostrar ao público o desenvolvimento da carreira do sambista. O projeto, idealizado por Fernando Cardoso, traz 20 composições de Geraldo Filme, interpretadas por cantoras negras de diferentes gerações. Somam-se a elas textos do escritor Léo Lama sobre a vida de Tio Gê, interpretados pelos atores Aílton Graça, Sidney Santiago Kuanza e João Acaiabe, que podem ser conferidos na íntegra (abaixo) acompanhados das 20 faixas do álbum (já disponível nas plataformas digitais) na sequência.

 

Barra Funda
Mapa do Bairro da Barra Funda na Década de 1960 | Acervo Ralph Giesbrecht

O SAMBA DA LATA DE LIXO, de Léo Lama

Interpretado por Sidney Santiago Kuanza

A mulher negra sempre sustentou a família. De linhagem guerreira, engajada nos caminhos de libertação, Dona Augusta Geralda, mãe de Geraldo, Geraldinho, antes de ser dona de pensão, foi empregada doméstica e assim, acompanhou a senhora para quem trabalhava em uma viagem a Londres. Lá, para além de Rainhas e Big Bens, viu os movimentos sindicais. O destino está nos olhos de quem o enxerga. Voltou e fundou o sindicato das empregadas domésticas, que cheias de raça e fé formaram o cordão. Nascia assim o embrião da Escola de Samba Paulistano da Glória. Desse jeito Geraldinho foi sendo curtido, ali, onde tudo virava som, as palmas das mãos, as latas de lixo, as caixas de engraxar sapato, a pele do gato. Tudo acabava e começava em samba. Por isso mesmo, na Barra Funda, Geraldinho e seu melhor amigo, Zeca da Casa Verde, jogavam bola e enganavam o relógio no meio das rodas de batuque e capoeira. Sambista era aquele que perdia tempo. Era lá, no Largo da Banana, que os carregadores e os engraxates improvisavam batendo no Tambu. Porém, o que vinha dos negros era proibido e a polícia vira e mexe vinha querendo encarcerar aquelas almas jogadoras de tiririca. Mas o samba se guarda. A pensão da Dona Augusta Geralda ficava na Avenida Rio Branco e o garoto levou marmita até pro Governador Ademar de Barros. Mas ia sempre escoltado por dois soldados, que, sem molejo, desconfiavam que a gororoba pudesse estar envenenada. Malandro, logo Geraldinho sacou as diferenças: “Enquanto eles tocavam valsa vienense do lado de dentro, do lado de fora a gente tocava samba nas latas de lixo”, dizia.

 

 

Grupo
Toniquinho Batuqueiro, Plínio Marcos, Geraldo Filme e Zeca da Casa Verde | Acervo Digital

A ELEGÂNCIA DO CORVO, de Léo Lama

Interpretado por João Acaiabe

De samba não se podia viver, queriam que ele tirasse o diploma, que nada, o samba era sua vida. A lida era ganhar o pão do dia, depois de dar um beijo nos negrinhos, quem sabe carregar algumas malas lá na porta da estação, engraxar sapato, bota, carregar cesto na feira, alugar uma casaca, e se Deus quiser, ser garçom de gafieira. Vida de negro no Brasil. Teve um tempo em que Geraldo Filme, naquela época mais conhecido como “Corvão”, tinha uma lavanderia. E era ali que os sambistas como Toniquinho Batuqueiro iam se vestir para o fim de semana. Pegavam roupas emprestadas, iam pro samba e no domingo à noite levavam de volta. O Geraldão lavava e na segunda-feira devolvia limpinha pro dono. Sambista que se preza tem que estar elegante na malandragem.

 

Tio
Plínio Marcos Em Prosa & Samba, Nas Quebradas Do Mundaréu (1974) | Reprodução Jornal da USP

O CHORO DO TAMBU, de Léo Lama 

Interpretado por Sidney Santiago Kuanza

O samba em Pirapora, nos bons tempos, durava sete dias sem parar. E era ali que o menino devia ser batizado, se quisesse ser bamba. Naquela época o bumbo era protagonista, os instrumentos graves apareciam mais que os agudos, como na África, esse era o jeito do samba paulista. Era um tempo em que do espirro à catapora o diagnóstico era sempre o mesmo: “é banzo que negro tem”. A batida do samba de São Paulo vem do Tambu, instrumento que é um tronco de árvore oco que se bate com duas baquetas. O Tambu não tem tarraxas, se afina com o fogo, é a quentura que dá a afinação. O samba paulista tem outro andamento, tem cheiro de festa do café, de reunião de escravos. Vem do interior. Vem de dentro dessa gente que tem o coração sofrido, mas largo como eram os horizontes das cidades musicais. O samba que batia no peito de Geraldo Filme vinha de São João da Boa Vista e de Pirapora, passava pela Barra Funda e aportava no Bixiga. E ainda Vai-Vai...

 

Bloco
Bloco de carnaval na Barra Funda (1937) | Jornal GGN

O SILÊNCIO DO APITO, de Léo Lama 

Interpretado por Aílton Graça

Um dia, o chefe da torcida organizada do Corinthians, o Pato N’ Água foi assassinado, na cidade de Suzano, pelo Esquadrão da Morte. Corpo jogado na lagoa. O Geraldão ficou profundamente comovido com o extermínio do amigo. E a passagem de um virou canto de luto para todos. A vida, lá pelas tantas, entrega o sambista para Aquela que o vai guardar, a Senhora de todos os ritmos. Ela, a Última Alegoria, o espera no fim da avenida de asas abertas. Ele fez escola, deixou seus passos, sambou até partir. Tirou a fantasia. Mas seu samba não morre. É nosso. Sua voz fica gravada nos corações, esperando o despertar dos que tem ouvido de ouvir. Bate no peito. Ele, que viu tantos parceiros partirem, sabia, como todos sabem, que um dia chegaria sua hora. E tal momento deveria ser embalado em luto pulsante, no bumbo, na caixa, no chocalho, no couro do gato. Que se fizesse o Silêncio, em todos os cantos, mas principalmente no Bixiga, ali onde fica a Vai-Vai, que é maior do que o mundo, que ali se velasse o falecido, cantando, chorando no gogó, no apito que anuncia a passagem. Abram alas, é Geraldo Filme quem se despede. Mas o gênio da raça não vai,  fica, volta, é pra sempre. E agora? Agora é hora de escutar.

 

Bambas
Imagem do disco "Plínio Marcos em Prosa e Samba". De pé, ao fundo, Geraldo Filme. Acompanhado de Toninho Batuqueiro, à esquerda, Plínio Marcos e Zeca da Casa Verde | Observatório Cultural - Itaú Cultural

NEGRO NÃO É ANJO, de Léo Lama 

Interpretado por João Acaiabe, Aílton Graça e Sidney Santiago Kuanza

Tio Gê, como Geraldão gostava de ser chamado pelos sobrinhos, pelos jovens que surgiam no mundo do samba e pediam sua benção, sabia que boi em terra estranha é vaca. O sambista de verdade, ele dizia, reencarna nele mesmo e nasce negro novamente. O racismo no Brasil veio pelo mar, trazido pelos portugueses. E continuou. Na época da Coroa, os serviços públicos só podiam ser ocupados por quem provasse que era branco. Negros e mulatos jamais. Os brancos eram livres, os negros eram escravos, os poucos negros livres não eram considerados cidadãos. Até mais ou menos 1930, os jogadores de futebol negros não podiam jogar pelos clubes brasileiros. Muitos negros tinham que esticar o cabelo e passar pó de arroz no rosto, na pele, e assim, jogavam “disfarçados” de brancos. De proibição em proibição, para o povo negro, tudo sempre foi luta e, muitas vezes, o combate é com música, festa e alegria. No espelho quebrado da infância do compositor estávam as asas partidas de um anjo proibido. Isso ele nunca esqueceu. Era festa de Bom Jesus de Pirapora. Era a festa dos negros, mas não era. A festa do samba de bumbo e das danças de origem africana, mas não era. Anjinho negro não pode. Não pode, não. Anjo não é negro. Negro é escravo, negro é engraxate, negro é tudo, menos anjo. Mas o samba não tem cor e o céu é um grande barracão.

01. Que gente é essa (Graça Braga)

01. Baiano Capoeira (Maria Alcina)

02. O Negrinho das Marmitas interpretado por Aílton Graça

02. História de Capoeira (Graça Cunha)

03. Eu Vou Mostrar (Leci Brandão)

03. Tradições e Festas de Pirapora com Clarianas (Naruna Costa, Martinha Soares e Naloana Lima)

04. Tebas (Cleide Queiroz)

04. O Choro do Tambu interpretado por Sidney Santiago Kuanza

05. São Paulo Menino Grande (Amanda Maria)

05. Tradição (Vai no Bexiga Pra Ver) (Sandra de Sá)

06. O Samba da Lata de Lixo interpretado por Sidney Santiago Kuanza

06. Vá Cuidar da Sua Vida (Paula Lima - Versão: Dexter)

07. Samba da Barra Funda/Último Sambista/Lava-Pés (Eliana Pittman)

07. Vamos Balançar (Lady Zu)

08. Garoto de Pobre (Teresa Cristina)

08. O Silêncio do Apito interpretado por Aílton Graça

09. A Elegância do Corvo interpretado por João Acaibe

09. Silêncio no Bexiga (Alaíde Costa)

10. Cravo Vermelho (Áurea Martins)

10. A Morte de Chico Preto (Fabiana Cozza)

11. Amigo (Rosa Marya Colin)

11. Batuque de Pirapora (Virgínia Rosa)

12. O Luxo da Cidade (Ellen Oléria)

12. Negro Não é Anjo interpretado por João Acaiabe, Aílton Graça e Sidney Santiago Kuanza

13. Anúncio (Xênia França)

13. Reencarnação (Luciah Helena)

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