Sesc SP

postado em 27/06/2016

Ascensão - Serena Assumpção

capa materia serena

O Selo Sesc traz o último trabalho de Serena Assumpção para o seu deleite. Ascensão homenageia cada um dos orixás do panteão do candomblé em obra delicada e arrebatadora. Você pode ouvir Do Tata Nzambi enquanto lê a matéria, e pode adquirir o disco aqui.

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré. Iansã, Iemanjá, Xangô. Todos orixás, todos moram noutro plano mais elevado, distante dessa terra de expiações e provações. É comum, na tradição sincrética de algumas religiões, arranjar-se equivalências entre as figuras de um lugar e de outro: o candomblé e o cristianismo são bons exemplos disso - você já deve ter ouvido que Iemanjá é Nossa Senhora Aparecida, não é? Tal acomodação traduz, em parte, a capacidade de ressignificação dos símbolos, especialmente pelo brasileiro, povo mestiço por definição; mas também acena para a violência com que a matriz africana da nossa cultura é usualmente representada: parece que para ser legítimo, é necessário uma benção daqueles que devassaram culturas mundo à fora.

Prestar reverência à tradição torna-se então, mais que um ato de resgate e persistência, uma forma de resistir. As nações trazidas à força para este continente, resistem na prática do candomblé: ketus, efons, ijexás, bantus, xambás, dentre outros povos, continuam a celebrar seus deuses e seus mitos, passando adiante conhecimentos milenares de civilizações e tribos distintas: se atentarmos para o fato da África ser um continente que tem quase o dobro de tamanho da América do Sul, há ali mais história do que o branco pode apagar.


Tudo é, portanto, muito mais complexo do que este texto seria capaz de dar conta. Todavia, há um aspecto central no candomblé que, talvez, seja mais próximo da gente, uma vez que está infiltrado, misturado, amalgamado, inscrito nos corpos de quem dança como dança o brasileiro: a música é o coração do candomblé.

A frase dá título ao artigo da etnomusicóloga Angela Lühning e pode ser posta a prova quando nos aproximamos dos ritos da prática: a música está em tudo! Sua função primordial é fazer os orixás se apresentarem aos seus descendentes, manifestando-se em seus corpos. A dança se torna o meio para a representação do orixá, a ilustração viva das palavras e lendas que, por sua vez, são audíveis na música cujo ritmo coordena o movimento. No entanto, a música não está apenas relacionada à festa: desde os ritos que antecedem o festejo, até o cotidiano das filhas de santo, as cantigas se fazem presentes - rezas, no caso das músicas sem acompanhamento de instrumentos e que podem ser cantadas fora do contexto ritual. O ato de cantá-las tem a função de uma catarse, de consolo.

 

É justamente a reza que chama a atenção à primeira escuta de Ascensão, de Serena Assumpção. Do Tata Nzambi, encerra o disco com uma interpretação sem instrumentos, e parece quase deslocada num arranjo interpretado à capella pelo grupo Source de Vie, da República Democrática do Congo. Em tradução livre, a reza pede que deus escute o canto que é posto de coração, depois da longa jornada, concedendo a benção para se chegar à salvação. É impossível ouvir/ler isto e não pensar na história da própria Serena, que partiu abençoada por este canto, antes do lançamento do disco - a música acaba ganhando um novo enunciado, amarrando o álbum todo. Você pode dar o play ali em cima e acompanhar a letra aqui embaixo.

 



A pesquisa de Serena se desenvolveu a partir das vivências no Santuário da Irmandade do Ilê de Pai Dessemi de Odé, em São Paulo. Culminou em 13 canções que cantam os orixás, abrindo os trabalhos na ordem do xirê, com cantos a Exu, seguido de Ogum, percorrendo cada um dos orixás até encerrar com o canto à Oxalá - a última canção é a reza citada anteriormente: você pode escutar amostras do disco ao final da matéria. No projeto, Serena conseguiu arregimentar uma legião de músicos que, de alguma forma, orbitavam a sua figura enquanto produtora cultural, cantora e amiga e é interessante atentar para este último fato: o álbum nasceu debaixo da direção artística de Serena, emanando generosidade com seus pares, numa relação que antecedia o momento de entrar em estúdio e colocar a música no suporte.

Participam do disco, seja interpretando, arranjando ou produzindo, o seguinte escrete: Karina Buhr, Céu, Luê, Mãeana, Pipo Pergoraro, Dipa, Domenico Lancelotti, Zé Celso, Tatá Aeroplano, Tulipa Ruiz, Tetê Espíndola, Curumin, Anelis Assumpção, Bem Gil, Moreno Veloso, Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Simone Sou, Thiago França, Luz Marina, Xênia França, Letieres Leite, Mariana Aydar, Paula Pretta, Marcelo Pretto, Filipe Catto, Adriano Grineberg, Juliana Kehl, Carlos Navas e mais uma porção de gente talentosa.

 

 

Se haverá quem escute estas canções dizendo serem exemplos do êxito da urbanização e industrialização que encaminha o Brasil no sentido de romper seus laços com a África, as palavras do pesquisador Alan Lomax podem servir de contra-argumento. "Cada execução musical é uma recriação simbólica de moldes de comportamento fundamental sobre os quais subsiste a continuidade de uma cultura... Muitos aspectos deste comportamento simbólico se tornam coerentes com algum tema fundamental, de modo que um estilo acaba condensando algum aspecto singular e notável de uma cultura, através do qual seus membros se identificam e com o qual dotam muitas de suas atividades e muitos de seus sentimentos".

A música é o coração do candomblé e o fato de servir de ponto de partida para Ascensão é indício do quanto estamos próximos de culturas não hegemônicas, ainda que não atentemos para isso. Seja nas festas públicas do candomblé, chamando os orixás, seja no cotidiano de quem está próximo, expressando e aliviando emoções catárticas, a musicalidade que veio da África está em nossos ouvidos e entranhas.

Ascensão é sobre tudo isso e realiza muito bem este projeto: um disco que envolve, aproxima e, no limite, legitima. É Serena mandando o recado: axé, com todo amor, axé!

1. Exu

2. Ogum

3. Pavão

4. Oxumaré

5. Xangô

6. Iansã

7. Oxum

8. Iemanjá

9. Iroko

10. Nanã

11. Obaluaiê

12. Oxalá

13. Do Tata Nzambi

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