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postado em 27/05/2022

As afinidades de Mauricio Einhorn e Thiago Espirito Santo

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A gaita de Mauricio Einhorn e o baixo de Thiago Espirito Santo se encontram no novo lançamento do Selo Sesc. Unidos por uma mútua admiração, os dois músicos apresentam o álbum digital Afinidades. A obra reúne doze composições inéditas: dez de Mauricio (oito em parceria com Alberto Araújo, uma com Arnaldo Costa e outra com Alberto Chimelli e Claudete Santos) e duas de Thiago.

As gravações do álbum aconteceram em setembro de 2021 e, além dos dois músicos principais, contou com participações de Bruno Cardozo (no piano acústico com delicado acréscimo de Fender Rhodes em três faixas), Cuca Teixeira (na bateria) e Jota P. (revezando entre sax tenor e flauta em três faixas).

Por trás do álbum, a história de uma longa amizade entre o gaitista de 89 anos e o baixista de 42. Os pais de Thiago, os músicos e compositores Arismar do Espirito Santo e Silvia Goes, conviveram de perto com Einhorn – inclusive nos palcos – e apresentaram sua obra ao filho quando pequeno. Afinidades está disponível para audição nas principais plataformas de streaming e também gratuitamente no Sesc Digital.

 


 

Afinidades

Por Arnaldo DeSouteiro

Dois dos maiores músicos do mundo em seus instrumentos, o jovem baixista Thiago Espirito Santo (42) e o veterano gaitista Mauricio Einhorn (89) são artistas fenomenais que colocam suas condições de virtuoses a serviço da mais elevada musicalidade. A técnica assombrosa está sempre acoplada à emoção. Por isso, tudo que executam flui com uma naturalidade que espanta e encanta, assombra e acaricia, impacta e seduz.

Assim, o título do primeiro trabalho que realizam em dupla não poderia ter sido mais bem escolhido: Afinidades.  Gravado em setembro de 2021, em São Paulo, mostra Thiago e Mauricio plenamente integrados, atuando num campo de interseção que se situa além de suas zonas de conforto.  São dez composições de Mauricio – oito delas em parceria com Alberto Araújo, uma com o saudoso Arnaldo Costa e outra com Alberto Chimelli e a esposa de Mauricio, Claudete Santos – e duas de Thiago, formando um painel estético fascinante.

Mauricio Einhorn, artífice da moderna música brasileira que aflorou na segunda metade dos anos 1950, antecipando inovações melódicas e harmônicas incorporadas pela bossa nova, é reconhecido internacionalmente como um gaitista do mesmo nível de seu ídolo e amigo Toots Thielemans, com quem dividiu o palco em concertos antológicos. Como compositor de temas do nível de “Estamos Aí”, “Batida Diferente” e “Sambop”, forneceu a melhor matéria-prima possível para o samba-jazz, dando régua, compasso e balanço para aquela vertente da bossa que hoje desperta no público jovem um interesse ainda maior do que há 60 anos. 

Suas colaborações com Durval Ferreira (o parceiro mais constante), Baden Powell (no clássico disco “Tempo Feliz”), Ugo Marotta (no subestimado “The Oscar Winners”), João Donato & Eumir Deodato (no célebre “Donato/Deodato”) e Sebastião Tapajós, numa série de álbuns notáveis mais (re)conhecidos no exterior do que no Brasil, formam uma discografia de alta classe. 

Aliás, entre os trabalhos de Einhorn com Tapajós, figura um disco de 1984 que revelou um músico de concepção completamente original, diferente de tudo que se ouvira até então em termos de baixo elétrico: Arismar do Espirito Santo. Fui um privilegiado por ter assistido ao show de lançamento do álbum, na Sala Cecília Meireles, e jamais me esquecerei de como a plateia estava perplexa com a performance daquele trio.  

Quase quarenta anos depois, Thiago Espirito Santo, filho de Arismar, conseguiu a proeza de não apenas atingir o mesmo nível de musicalidade do pai, como também de estabelecer um novo patamar em matéria de baixo elétrico, especialmente no baixo fretless. Sua sólida formação, aliada a uma técnica extraordinária e uma capacidade de improvisação estonteante, o tornou capaz de tocar Bach e Jaco Pastorius com a mesma destreza e intimidade.

Mauricio também desde cedo revelou uma aptidão impressionante para improvisar, criando solos repletos de citações. Sempre se divertiu muito encaixando trechos de outras músicas ao desenvolver seus improvisos, deixando o público maravilhado com sua bagagem cultural, com seu "banco de dados". “Einhorn, Raul de Souza e J. T. Meirelles se destacavam no Beco das Garrafas, estavam anos-luz à frente dos outros solistas”, me garantiu certa vez o historiador e radialista Paulo Santos. Agora, no auge da maturidade, permanece insuperável como o maior gaitista em atividade no planeta.

Então, voltando às afinidades, este é um encontro de grandes improvisadores, dotados de um dom sobrenatural para a expansão interpretativa de obras harmonicamente férteis. Ambos, Thiago e Maurício, desenvolveram relações de tal forma especiais com seus instrumentos, que o baixo elétrico e a gaita viraram prolongamento de seus corpos. Como aconteceu com Charlie Parker e Sonny Rollins, por exemplo.

Nas performances de Thiago e Mauricio, até mesmo passagens de grande complexidade soam “fáceis”, naturais. São músicos que tocam com prazer e alegria, como fartamente documentado no decorrer de Afinidades, disco de múltiplas virtudes. 

O projeto começou a nascer em 2019. “Convidei Mauricio Einhorn para ser meu convidado em uma série de shows e, ao final, ele me entregou várias partituras”, conta Thiago. “Logo decidi registrar aquele material precioso. Fui ao Rio para escolher e estudar as músicas com ele. Foram dias muito especiais, porque sempre fui fã do Mauricio, cresci vendo meu pai e minha mãe (a pianista Silvia Goes) tocando com ele. Voltei para São Paulo, fiz os arranjos e finalmente gravamos”.

As sessões contaram com o grupo de Thiago, formado por Bruno Cardozo (basicamente no piano acústico, com delicado acréscimo de Fender Rhodes em três faixas para adicionar uma “cor” extra ao ambiente sonoro), Cuca Teixeira (bateria) e Jota P. (revezando entre sax tenor e flauta em três faixas). Músicos com um entrosamento telepático, desconhecendo limites em seus instrumentos.

Desde criança, aprendi com João Donato e Eloir de Moraes que a “música deve ser agradável ao ouvido”. Antônio Carlos Jobim, Luiz Bonfá e João Gilberto, três gênios com quem trabalhei, também sabiam disso. João Gilberto chegava ao ponto de não cantar músicas ou trechos de letras “não agradáveis ao espírito”. 

Thiago e Mauricio, igualmente sábios, retomam um ponto perdido em algum momento dos anos 1960, quando a improvisação se desenrolava a partir de belas composições e não de esquemáticas e previsíveis convenções. Neste Afinidades, sobressai a espontaneidade e não a fórmula. Privilegia-se o belo, e não o complicado. Tudo soa prazeroso, passando longe da – às vezes excessivamente cerebral – tendência rotulada de “música instrumental”.

Todos os solos se desenvolvem com lógica e encantamento. Thiago, além da categoria habitual no baixo elétrico, complementa o swing da base adicionando violão em várias faixas, e brilha na guitarra de timbre aveludado, com solos perfeitamente articulados, a la Wes Montgomery; aulas em termos de encadeamento de ideias e fraseado, especialmente em “Quinca, Jazz e Mais” e nos contornos sinuosos de “Marburg”.

Seus improvisos, assim como os de Maurício, Bruno e JP, são irretocáveis. Cuca Teixeira pinta e borda sem alarde, principalmente ao usar vassourinhas.  Na balada “Te Olhei”, única faixa com letra, os vocais são divididos entre Bia Goes, irmã de Thiago, e Junior Meirelles. “Contrastando” tem a marca melódica de Einhorn, mas quem “canta” é Thiago, através do baixo.

Thiago e Mauricio flanam pela valsa-jazz “Burlesque”, flertam com o sabor latino – bem ao gosto do homenageado - em um “Retrato em 3x4 de Donato” recheado por mudanças de andamento, arriscam um “Blues Cheio de Truques”, ousam no duo de gaita e baixo fretless na introspectiva “España em Mi Cabeza”, destilam lirismo em “Siesta”, passeiam com malemolência pela Manciniana “No Big Deal” (solo genial de Mauricio!), antecipam sedutoras “Alusões”, e concluem a viagem sonora visitando “Alligator City”, com Mauricio citando “Estamos Aí”.  

“É uma honra trabalhar com o Mauricio, sou muito fã”, arremata Thiago. Quem não é? 

Arnaldo DeSouteiro é diretor musical, jornalista, roteirista e membro votante do Grammy.