Sesc SP

postado em 07/03/2022

A flor sonora de um senhor trio

Ilustração: Luiz Zerbini
Ilustração: Luiz Zerbini

O Selo Sesc celebra o lançamento de Flor do Milênio, o segundo álbum do Jaques Morelenbaum CelloSam3aTrio, formado há 18 anos pelo violoncelista, maestro, arranjador, compositor e produtor musical Jaques Morelenbaum, pelo violonista Lula Galvão e pelo percussionista Rafael Barata.  O álbum inaugura uma nova fase do grupo, marcada pelos momentos de isolamento social e pelo reencontro dos músicos no estúdio de gravação. Esse processo todo levou à renovação do vínculo entre eles, à criação de novas percepções e a fidelidade à matriz formal e estilística do trio, influenciada principalmente por João Gilberto.

Sobre o processo de criação em tempos de distanciamento social, Jaques explica: "É um disco diferente, um disco muito do momento que estamos vivendo, em que a gente aceitou essas limitações que a vida nos impôs para fazer a nossa música juntos, para melhorar o mundo em que estamos". Flor do Milênio foi gravado em setembro de 2021 no estúdio Gargolândia, e conta com as participações do pianista Cristóvão Bastos, do contrabaixista Zeca Assumpção e do multinstrumentista Carlos Malta. O álbum conta com criações inéditas, faixas autorais, parcerias e composições consagradas de Chico Buarque e Dorival Caymmi. A direção artística é do próprio Morelenbaum.

 


A flor sonora de um senhor trio

Por Carlos Rennó

Assim como há músicas que personificam a Música, também há músicos que a representam e simbolizam de modo modelar. Um músico brasileiro exemplar nesse sentido é Jaques Morelenbaum. Este senhor músico é pra mim o próprio Senhor Música. Como vivamente impressiona, pelo quilate, pelo brilho e pela quantidade, a constelação de nomes de cujos trabalhos esse grande arranjador, violoncelista, maestro e produtor musical já participou, ou que dirigiu, ou com os quais colaborou! Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Egberto Gismonti, Gal Costa, João Bosco, Ryuichi Sakamoto, Leonard Bernstein, Sting, Mstislav Rostropovich, David Byrne, Cesária Évora...(*)

Pois bem. Jaquinho, como costumamos chamá-lo, também desenvolve um projeto solo instrumental interessantíssimo com o violonista Lula Galvão e o baterista Rafael Barata, com quem forma o CelloSam3aTrio, no centro do qual se situa, definindo-se como "um cara que toca violoncelo querendo tocar samba, e como João Gilberto". Oito anos depois do álbum de estreia, o presente Flor do Milênio vem a ser o segundo do terceto, e é o mais autoral do nosso internacional Mister Music: das dez composições que o integram, metade são próprias, uma em parceria com Lula. Completam o repertório: uma do próprio Lula e outra de Cristóvão Bastos, feitas de encomenda para o trabalho; uma canção de Dora Morelenbaum com Tom Veloso; e duas outras que são grandes clássicos – um caymmiano, outro buarqueano – da nossa música popular.

Duas das músicas de JM estavam engavetadas há muito tempo. "CasaBrancaBrincadeira" – assim intitulada, num composto, pra explicitar que não se refere à residência do governo dos EUA – data dos anos 1980. Uma casa – branca – onde ele morou no bairro de Santa Teresa, no Rio, alugada pela Barca do Sol, inspirou a criação. Já "Nesse trem que eu vou" remete à década anterior, época em que estudou música em Boston. Numa das viagens que fazia nos fins de semana pra Nova York, "viajou" nos ruídos ritmados e randômicos das rodas do trem, começando a ouvir ali a melodia do que iria virar um samba com compassos quebrados, rápido, alegre, animado, exigindo virtuosismo na execução. Na qual ele exibe uma vez mais sua admirável capacidade como solista no seu instrumento.

O movimento cinético sempre inspirou esse músico que sempre gostou de caminhar, correr, andar de bicicleta. E que um dia, pedalando na margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, ouviu um pássaro cantar duas notas duas vezes uma vez e, em seguida, uma segunda, descendo um semitom ("por conta do 'efeito Doppler', o mesmo que faz parecer modular o som das sirenes das ambulâncias"). Na sequência, um cheiro de terra molhada, após a chuva, fez vir "um mote" para a criação de "Firu-Haikai". "Firu" é a onomatopeia do som que ele escutou. Haikai decorreu do fato de fazer uma música com duas notas.

"Canção pra Caetano" (parceria com Lula Galvão) chegou de forma mais inusitada ainda, no banheiro. "Na ducha me veio uma célula na cabeça e comecei a gravar – e gravei – ali mesmo a melodia de cabo a rabo, sem titubear, já certo de que seria pro Caetano", conta ele, que já assinou três temas instrumentais (da trilha do filme "O Quatrilho") com o baiano. "Liguei imediatamente pro Lula, com quem nunca havia feito uma parceria formalmente oficial, e pedi que ele a harmonizasse, uma de suas inúmeras e brilhantes especialidades!"

Com relação às extensas frases sinuosas e insinuantes que fazem a graça da melodia, Jaquinho revela que "ficou flagrante um parentesco com o segundo movimento do concerto de Ravel pra piano e orquestra, que é uma valsa que segue uma certa lógica melódica similar, mas não se repete nunca; vai evoluindo e se desenvolvendo, quase como uma prosa".

E mostrando sua verve para a criação de melodias funda e belamente melancólicas, Jaquinho nos brinda com essa peça de tocante dolência que é "Flor do Milênio", compreensivelmente a que dá título à obra. Originalmente a canção foi feita em 1988 para uma peça-poema homônima da poeta, compositora e violoncelista Denise Emmer, dirigida por Rubens Corrêa. O Senhor Música assinala sua semelhança com música coral.

A melancolia é também um dos aspectos a marcar uma das composições alheias do disco, "Piatã", de Lula Galvão – ligada a um amigo baiano do autor, que faleceu. Cultor da Música e, correlatamente, dos músicos que fazem a sua "musa única", JM se refere com admiração e gratidão ao parceiro: "Um grande, indescritível privilégio poder contar com a genialidade do Lula Galvão desde o começo do CelloSam3aTrio". Que foi, aliás, quem trouxe Rafael Barata para o grupo, em substituição a Marcelo Costa ("disputado a tapa por Marisa Monte e Lulu Santos" na época). E ao qual Jaquinho pediu uma música para o presente trabalho, recebendo essa que nomeia uma região da Bahia.

Ele também enche a boca pra falar das "luxuosíssimas" participações especiais do disco: "Três ícones da Música Instrumental Brasileira Contemporânea (a MIBC), a saber: o maestro Cristóvão Bastos, que chegou com seu super piano, sua soberana maestria em tudo o que faz em música; Zeca Assumpção, um dos maiores contrabaixistas da história da MIBC, meu ídolo nos tempos em que tocava com Elis Regina e depois meu companheiro de banda e viagens por quatro anos, junto a Egberto Gismonti (**); e Carlos Malta, também ex-integrante da banda do Campeão Hermeto, e que está sempre presente, com sua flauta cintilante e seus saxes insinuantes, em todas as minhas produções onde há instrumentos de sopro".

Ao parceiro de Chico Buarque e Aldir Blanc, Jaquinho também solicitou uma música. "E Cristóvão me mandou a canção, linda e triste, num dia de chuva, me dizendo que era um choro. Eu imediatamente olhei pela janela e comentei: 'Choro e chuva'. Ele prontamente pescou a mensagem e disse: 'Taí, já temos um título pra canção!', a princípio nomeada 'Choro Chuva' título ao qual ele adicionou o 'Cello', que eu substituí por 'Chelo', do espanhol" – assim, com um "l" apenas, para que a pronúncia dos três termos começasse com "ch", nenhuma com "tch", que é como se pronuncia o "c" de "cello", o termo italiano.

Igualmente linda, além de, também, de certa forma, triste, doce e suavemente triste, denotando algum natural vinculação compositória, vem a ser "Dó a Dó" – uma pérola da filha Dora, um dos nomes da novíssima geração decompositores do Rio, com letra de outro nome de ilustre ancestralidade, Tom, filho de Caetano.

E é com dois autores e obras clássicas da MPB que o repertório da obra fecha: "Você Não Sabe Amar", de Dorival Caymmi, e, "pra fechar o assunto", de Chico Buarque, "Apesar de Você" (como é sabido, dirigida e "dedicada" ao presidente Médici, há exato meio século atrás). O "assunto", no caso, constitui "o período de trevas que vivemos no momento em que esse disco nasce, e esse nosso 'presidoente'. Quis terminar com esse recado, com essas menções ou 'homenagens' à atual situação política de nosso país e a certos personagens de nossa história não tão dignos dela...".

"'Apesar de você' destaca o samba executado pela bateria do Barata", comenta ele, emendando que "a proposta característica do tipo de música feita por nós sugere que, a partir da escrita, cada músico toque o que dá na veneta, em cima da cifra que apenas se refere ao universo harmônico, e dependendo do humor em que estiver no dia – num modo jônico ou dórico, ou ainda frígio". Nosso Senhor Música, na verdade, também é bom de palavras. Pelo menos, sabe o que diz sobre aquilo que sabe fazer.

* Eu já tive também a honra e o prazer de, como letrista-versionista, conviver poética e musicalmente com ele na produção de uma obra em parceria. Juntos – ele, como produtor musical, eu, como artístico – fizemos um para mim memorável álbum "Nego", subintitulado "Canções americanas em versões brasileiras de Carlos Rennó e Jaques Morelenbaum”" de 2009.

** Jaques já o havia convidado, nos anos 1990, a gravar praticamente todo o disco Fina Estampa, de Caetano, e a integrar a banda do artista durante os anos em que promovia este álbum ("histórico", diz ele, rindo...).

 

O QUE O SENHOR MÚSICA TEM A DIZER SOBRE...

MÚSICA

Música é discurso, poesia, comunicação abstrata. Você tem sensações e sentimentos que são difíceis de descrever com palavras, mas a música é capaz disso, usando timbres, a velocidade das vibrações que vão determinar a altura das notas, as tensões e distensões que ela nos permite. A música exprime e transmite o que se passa dentro de você para outras pessoas, pra eternidade. Para pessoas como eu, que não têm tanta facilidade com as palavras, a música nos realiza quando percebemos que a nossa tem a capacidade de exprimir coisas.

SOLO

Solar é improvisar, construir um discurso próprio que comente o tema em questão; prática milenar, acredito, de apresentar o tema e desenvolver comentário. Acrescentar informações inspirado nesse tema é o objetivo central do músico que se dedica à improvisação. Contrariamente a quem não considera a improvisação coisa séria, a preparação acadêmica de treinamento, adestramento e adequação do corpo humano às condições mecânicas pra você cumprir um alto compromisso com a improvisação não é brincadeira; tem de ser enorme. O músico que vai improvisar tem de ter um domínio do instrumento e dos reflexos que manda da cabeça pros dedos pra executarem o que está imaginando. Tem de estar com a técnica dele muito em dia, pra se satisfazer com aquilo que faz. Improvisar é compor no momento. O mesmo que os repentistas fazem quando trazem um repertório de rimas e ideias e chavões que são estudados ao se confrontarem com um tema, em cima do qual constroem uma narrativa. De modo geral música é um discurso em que os músicos expõem seus pontos de vista, seus ângulos estéticos, e são seguidos – e compreendidos – de forma abstrata, ou não tanto, por amantes da arte, aficionados.

ARRANJO

Às vezes me perguntam sobre ser arranjador. Eu penso em como o Bach, sim, esse mesmo "João Tião", era organizado; em como ele sabia arrumar tudo tão direitinho, mas tão direitinho, que você sempre acha, ao ouvir ou ao tocar o que ele "arruma" ou "arranja", que aquilo já existia antes de o tal João Tião de Leipzig escrevê-lo. O "Jotão" sabia é escutar aquilo tudo e pôr no papel. Eu confiaria ao Jota minha casa pra ele desenhar, construir e arrumar, e ele teria carta branca pra dar aquela geral, pondo cada coisa no seu lugar certo. Se você estiver procurando um serviço dessa estatura e eficiência, pode ir no Database do século XVIII que você encontra lá a startup "J.S.Bach – Arruma-se Tudo e Pomos Todosos Pingos nos Is".

COMPOR

Com-pôr, pôr junto, arrumar, organizar a situação afetiva entre duas notas, entre o tempo e o espaço. Idealizar um discurso e tentar, com esse discurso, assim como na poesia, ser o mais instigante ou mais surpreendente. Uma das coisas que mais me interessa na composição é a surpresa, porque ela é que acende a faísca da emoção; e a música pra mim é basicamente a busca da emoção mais afiada, refinada, profunda, contundente etc...

A PRIMEIRA VEZ COM TOM

O primeiro sonzinho que levei com o Tom foi lá em Poço Fundo. Poço Fundo antigamente fazia parte de Petrópolis, uma garganta entre montanhas e onde passa o Rio Preto. Sobre o piano de armário repousavam solenemente as 25 ou 27 páginas de "Meu Amigo Radamés" com todos os seus cachos de seis ou sete bemóis e alguns sustenidos. Radamés, um dos músicos que Jobim mais respeitou e venerou. Mas fui lá, corri atrás de cada uma das notas, e cheguei junto no final. Tanto que o próximo som que ouvi foi: "Aninha, o que você acha de ter um cello na nossa banda?" Ela [a esposa de Jobim] é que ia pagar os cachês...

 


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