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postado em 01/04/2021

Francisco Mignone: Manuscritos de Buenos Aires e Canções para Voz e Violão

Ilustração da capa do álbum Manuscritos de Buenos Aires | Crédito: Rodrigo Sommer
Ilustração da capa do álbum Manuscritos de Buenos Aires | Crédito: Rodrigo Sommer

DOIS CICLOS INÉDITOS DE FRANCISCO MIGNONE PARA VIOLÃO SÃO LANÇADOS EM ÁLBUM DIGITAL PELO SELO SESC

 

Autor de uma extensa e abrangente obra, que inclui desde peças para os mais diversos instrumentos até óperas e grandes obras orquestrais, Francisco Mignone (1897-1986) foi um pianista, regente, compositor e professor, respeitado e atuante. Talento nato da composição e de facilidade espontânea, foi uma das figuras centrais do meio artístico brasileiro do século 20 ao lado de nomes importantes como do escritor Mário de Andrade (1893-1945) e de tantos outros. Escreveu suas primeiras peças com apenas dez anos de idade e a última, poucos meses antes de morrer, aos 88 anos.

Formado em piano, flauta e composição, o violão foi um instrumento praticamente ignorado por Mignone durante a maior parte de sua carreira de compositor. Eventualmente era tocado por ele em serestas da juventude. Agora, pouco mais de 35 anos após sua morte, uma gravação inédita de suas composições para violão são reveladas através do disco Francisco Mignone: Manuscritos de Buenos Aires e canções para voz e violão, com os toques dos violonistas Fernando Araújo e Celso Faria, além da soprano Mônica Pedrosa, em composições para violão e voz.

O trio de intérpretes mineiros esteve junto por três meses, entre novembro de 2018 e janeiro de 2019, para as gravações no Estúdio Engenho, em Belo Horizonte. O álbum que sai agora pelo Selo Sesc e estará disponível, com exclusividade e de graça, na plataforma do Sesc Digital no dia 14 de abril, é mais um desdobramento do trabalho de pesquisa que Fernando Araújo vem desenvolvendo em cima dos Manuscritos de Buenos Aires, de Francisco Mignone, e que há quatro anos resultou em sua tese de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), à época, servindo também para revelar ao meio musical brasileiro as partituras que haviam sido encontradas na Argentina e até então não registradas no catálogo do compositor.

No repertório do álbum que Fernando Araújo assina a direção musical, arranjos e edição das partituras, destaque para as “Quatro peças brasileiras”, que compreende às partes Maroca, Maxaxixando, Nazareth e Toada; mais duas "Valsas Brasileiras"; e ainda “Canção para dois violões”, todas essas não catalogadas até serem descobertas, em 2009. Completa o conjunto de oito peças instrumentais intitulado “Manuscritos de Buenos Aires” a obra “Lundu para dois violões”, única que já estava documentada em publicação nos Estados Unidos, datada de 1974.

Escritas para o Duo Pomponio-Zárate – formado pelo casal de violonistas argentinos Graciela Pomponio (1926-2007) e Jorge Martínez Zárate (1923-1993) –, as peças que compõem os Manuscritos de Buenos Aires são datadas de 1970. Nelas, Mignone revisita algumas de suas composições mais antigas para piano de forma extensamente retrabalhadas, com novas seções e técnicas de variação. Este material foi reunido em 2018 em uma edição Urtex das partituras lançada pela Editora Tipografia Musical.

O disco é complementado por cinco canções para voz e violão inspiradas pelo extraordinário duo de Maria Lúcia Godoy e Sérgio Abreu e escritas em meados dos anos 1970. Aqui, novamente o compositor revisita obras que havia escrito nas primeiras décadas do século, recriando-as para a nova formação instrumental, caso das canções de folclore espanhol “Nana” e “Las mujeres son las moscas”.

Em “O impossível carinho”, Mignone reapropria-se da sétima valsa de esquina para piano de forma surpreendentemente transformada em uma canção de um lirismo desesperançado e pungente. E duas peças do álbum são as únicas concebidas originalmente para voz e violão: “Choro” e “Dialogando” mostram a inquietação do velho compositor, experimentando as possibilidades de diálogo entre voz e violão e o uso pouco convencional da voz, tratada, em alguns momentos, como um instrumento de sopro ou de cordas. 

Além do álbum Francisco Mignone: Manuscritos de Buenos Aires – canções para voz e violão, o público também terá contato com um texto de apresentação do projeto sob as palavras de Fernando Araújo (leia abaixo), além de textos assinados por Turíbio Santos, violonista, compositor e musicólogo brasileiro, e do violonista Sérgio Abreu que junto ao irmão Eduardo formou o Duo Abreu – um dos mais importantes da história do violão brasileiro e que apesar da curta trajetória marcou época nos anos 1960 e 1970 com discos lançados pela gravadoras CBS e Decca –, mas logo largou a carreira para se tornar um dos grandes luthiers do país. E por fim, o processo de criação artística do disco será apresentado num minidocumentário com depoimentos dos músicos, produtores e técnicos de gravação envolvidos, e previsão de lançamento no dia 28 de abril no canal do Selo Sesc no YouTube. 

 

A história dos Manuscritos de Buenos Aires

Com a morte da violonista Graciela Pomponio em 2007 — Jorge Martínez Zárate tinha falecido em 1993 —, a filha do casal distribuiu o acervo entre alunos dos dois músicos que também tiveram carreira docente. E a parte dedicada aos duos de violão teria ficado com um rapaz que, ao que parece, enfrentava uma fase conturbada da vida e acabou acondicionando as partituras em um saco de lixo e deixando o material em uma rua de Buenos Aires, próximo a entrada do prédio que abriga o Instituto Nacional de Musicologia “Carlos Vega”.

Resgatado e levado para a Biblioteca do Instituto, onde ficou por quase dois anos guardado, o material foi restaurado e catalogado pela musicóloga argentina Silvina Mancilla. E foram casualmente descobertas por um amigo de Fernando Araújo, o professor Fausto Borém, contrabaixista e professor da UFMG, que estava em visita de pesquisa no Instituto. O achado despertou o interesse de Araújo, que prontamente iniciou o trabalho de pesquisa das obras e em 2017, quando celebrava-se os 120 anos de nascimento do compositor, Fernando Araújo as revelou para o meio musical brasileiro em sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais.

 

Confira abaixo uma série de textos dedicados a este lançamento, além dos vídeos produzidos especialmente para este registro.

"Mignone: velho mestre, novos caminhos", de Fernando Araújo

"Uma obra para a eternidade", de Turíbio Santos

"Mignone deixou para o violão um vasto e imponente legado", de Sérgio Abreu

 

Mignone
Francisco Mignone | Foto: Reprodução/G1

 

 

      


 

Mignone: velho mestre, novos caminhos

por Fernando Araújo

 

Inteiramente desconhecidos da comunidade musical até 2017, quando foram revelados pela tese de doutorado que defendi na Universidade Federal de Minas Gerais, os Manuscritos de Buenos Aires lançam novas luzes e nuances sobre um importante momento da história do violão brasileiro: a gênese da obra violonística do grande compositor paulistano Francisco Mignone (1897-1986).

Uma das figuras centrais do meio artístico brasileiro do século XX, compositor, pianista, regente e professor respeitado e atuante, Mignone escreveu suas primeiras peças por volta dos dez anos e a última, poucos meses antes de morrer, em fevereiro de 1986.  Sua habilidade musical, aliada ao que Mário de Andrade considerava o “conhecimento mais íntimo, mais profundo e vasto da música” entre os compositores brasileiros, lhe permitia compor com extrema fluência e segurança. Deixou, assim, uma obra bastante vasta e abrangente, que inclui desde peças solo para os mais diversos instrumentos até óperas e grandes obras orquestrais.

O violão, no entanto, apesar de eventualmente tocado por ele em serestas da juventude, foi praticamente ignorado por Mignone durante a maior parte de sua carreira de compositor. Na verdade, quem ouvisse o depoimento prestado por ele ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em outubro de 1968, dificilmente acreditaria que algum dia ele pudesse ser convencido a escrever para o instrumento. Ao ser perguntado se havia escrito música para o legendário violonista espanhol Andrés Segovia, ele inicia sua resposta confessando não ser “muito admirador do violão”, que considerava “um instrumento muito simpático, durante vinte minutos”, depois do que se torna “cansativo”. Após vários outros comentários negativos, termina afirmando: “Não tenho muito interesse no violão. É realmente um instrumento que não tem grandes possiblidades.”

Em uma reviravolta surpreendente, pouco menos de dois anos após esse depoimento e já às vésperas de completar 73 anos de idade, Mignone lança-se à composição de uma série de obras que viria a situá-lo no rol dos grandes compositores mundiais para violão. Na realidade, sua obra violonística é a mais extensa e numerosa entre as dos grandes compositores brasileiros, incluindo a de Heitor Villa-Lobos. Essa feliz guinada se deveu à presença de Mignone em um evento que pode ser considerado um divisor de águas na história do violão no Brasil: o Seminário Internacional de Violão de Porto Alegre. Convidado de honra da segunda edição (julho de 1970), o compositor passou quase todo o mês ouvindo e interagindo com alguns dos melhores violonistas sul-americanos da época, como o uruguaio Abel Carlevaro, os irmãos Abreu, o duo argentino Pomponio-Zárate e o brasileiro Carlos Barbosa-Lima, principal catalisador do processo de descoberta do violão por Mignone. Segundo Barbosa-Lima, em uma confraternização na casa de Antonio Crivellaro, coordenador do seminário, ele tocou longamente para o compositor, mostrando as possiblidades técnicas, expressivas e musicais do violão. Mignone saiu de lá entusiasmado e prometendo escrever para o instrumento, o que começou a fazer imediatamente na volta ao Rio de Janeiro.

Até recentemente acreditava-se que o compositor teria iniciado a escrita de sua obra violonística pela ambiciosa série de 12 Estudos para violão. Embora não haja ainda comprovação factual, o exame das características técnicas e musicais dos Manuscritos sugere fortemente que eles tenham servido como um “laboratório” para que Mignone exercitasse e experimentasse a escrita para violão, instrumento que representa um grande desafio para compositores não violonistas.

Dedicadas ao Duo Pomponio-Zárate, formado pelo casal Graciela Pomponio e Jorge Martínez Zárate, que Mignone conheceu e ouviu com admiração em Porto Alegre, as peças contidas nos Manuscritos de Buenos Aires são versões, no geral, extensamente retrabalhadas, de peças mais antigas do compositor, quase todas escritas originalmente para piano. Os manuscritos originais foram enviados aos violonistas argentinos e, com exceção do Lundu, que chegou a ser publicado nos Estados Unidos em 1974, nenhuma das peças circulou no meio violonístico. No acervo pessoal de Mignone, atualmente abrigado na Biblioteca Nacional, também não há cópias dessas obras. Elas permaneceram, portanto, desconhecidas pela comunidade musical em geral, primeiro em posse do duo argentino e, após a morte de Graciela Pomponio, na Biblioteca do Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega", em Buenos Aires. Ali foram casualmente descobertas, em uma visita de pesquisa, por um amigo que gentilmente as trouxe ao meu conhecimento, o professor Fausto Borém, contrabaixista e professor da UFMG.

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Fac-símiles das partituras encontradas em Buenos Aires | Foto: Fernando Araújo

 

A história desses manuscritos, esteve perto de ter um desfecho desastroso. A família do duo incumbiu um amigo e ex-aluno dos violonistas de encaminhar o Acervo Martínez Zárate – composto de aproximadamente 370 manuscritos, muitos deles de grande valor artístico e histórico – ao Instituto Nacional de Musicología. Talvez devido ao momento conturbado que vivia, essa pessoa só se desincumbiu da tarefa quase dois anos após a morte de Graciela Pomponio e, quando o fez, simplesmente deixou o acervo, acondicionado em um saco de lixo, na portaria do prédio que abriga o INM. Ali ele permaneceu esquecido em um canto do Setor de Música Acadêmica por mais de um ano, correndo risco real de extravio e deterioração. Felizmente o acervo se encontra hoje completamente tratado, catalogado e em perfeitas condições de armazenamento e segurança.

Mignone foi um compositor extremamente generoso, sempre pronto a presentear com novas composições intérpretes que admirava. Assim nasceram não só os Manuscritos de Buenos Aires como também as canções para voz e violão, inspiradas pelo extraordinário duo de Maria Lúcia Godoy e Sérgio Abreu e escritas em meados dos anos 1970. Mais uma vez o compositor revisita obras que havia escrito nas primeiras décadas do século, recriando-as para a nova formação instrumental, caso das canções em francês e espanhol. Em O impossível carinho há uma reapropriação da 7ª Valsa de esquina para piano, surpreendentemente transformada em uma canção de um lirismo desesperançado e pungente. Choro e Dialogando, as únicas peças concebidas originalmente para voz e violão, mostram a inquietação do velho compositor, experimentando as possibilidades de diálogo entre voz e violão e o uso pouco convencional da voz, tratada, em alguns momentos, como um instrumento de sopro ou de cordas.

Assim como seria, por exemplo, o aparecimento de um mural esquecido de Portinari ou de um poema perdido de Drummond, acredito que a descoberta de novas obras de um compositor da estatura de Francisco Mignone representa, mais do que apenas um ganho para a música brasileira, um fator de enriquecimento do nosso patrimônio cultural, a ser comemorado por todos que creem na cultura como agente a um só tempo identitário e transformador de um povo.

 

 

 

      


 

Uma obra para a eternidade

por Turíbio Santos

 

Mignone era uma pessoa surpreendente e adorável. Quando eu estava estreando o curso superior de violão na UFRJ (1980) e na UNI-RIO (1981), havia uma turma de alunos muito forte e percebi que precisava de um repertório para a orquestra de violões. Perguntei a Mignone se ele toparia fazê-lo e pedi sugestões. Ele sugeriu a Dança da Rainha N’Ginga, da sua obra Maracatu do Chico Rei. Eu disse: ótimo, você pode fazer a transcrição? Logo ele a fez e também compôs uma Lenda Sertaneja para violão solo que me dedicou e eu fiz a estreia. Esta obra faz parte da minha coleção editada pela casa francesa Max Eschig.

No final da sua vida, Mignone foi presidente da Academia Brasileira de Música, criada por Villa-Lobos em 1945. Eles eram muito amigos e de forma semelhante, bebeu profundamente do Brasil. Como compositor, ele pressentia que não fazia só a música de Mignone, mas a música brasileira de Mignone - não dissociando uma coisa da outra. Eu acho isso lindíssimo. Ele tinha um espírito poético e era um manancial de música, uma enciclopédia musical espetacular. Compôs inclusive para o gênero popular, utilizando-se do pseudônimo Chico Bororó. Eu me lembro do Mignone com muita saudade, também porque ele era uma pessoa muito divertida.

Mesmo conhecendo bem o seu trabalho, eu tive uma grande surpresa com esses duos de violão de Francisco Mignone “Manuscritos de Buenos Aires”, título que eu gosto muito. Os violonistas Fernando Araújo e Celso Faria se apresentaram em 2017 no “Festival Vale do Café” (que eu dirijo a parte artística) com esse repertório. O resultado foi lindíssimo, impactante. As peças que Mignone compôs para violão solo são lindas, mas eu sempre procurava aquele compositor do piano, que brincava com o instrumento. Aí, quando ele dividiu a escrita para dois violões, aquele Mignone veio com a força total. Para mim, estas peças, escritas com tal liberdade, são a “cereja do bolo” que o violão merecia. Todo compositor é uma pessoa extremamente generosa e quando está criando uma música, ele se utiliza de um dos vários dons que possui. Quem cria alguma coisa de bom, como foi o caso do Mignone, o faz para a eternidade.

 

 

      


 

Mignone deixou para o violão um vasto e imponente legado

por Sérgio Abreu

 

Fui vizinho de Francisco Mignone durante a infância e adolescência. Ele tinha uma boa relação com meu avô que, aliás, me levou para tocar piano para ele quando eu tinha 5 anos de idade, mas não segui adiante no instrumento. Quando começamos nossa carreira (do Duo Abreu, eu e meu irmão Eduardo) dona Monina Távora, nossa professora e amiga pessoal do Mignone, a quem ele dedicou suas quatro primeiras composições para violão em meados da década de 1950, sugeriu que fizéssemos um arranjo para dois violões, de dois de seus 6 Prelúdios para piano. Dona Monina nos levou para tocá-los para ele, que convidou Manuel Bandeira para nos ouvir. Acabamos tocando todo o repertório que estávamos preparando na época e foi para nós uma noite memorável. Ele aprovou imediatamente nossos arranjos dos Prelúdios e passamos a incluí-los com frequência em nossos recitais. Alguns anos depois, ele me convidou para ouvir 12 estudos para violão que tinha acabado de escrever. Na ocasião, ele os tocou do início ao fim - mas ao piano - e foi uma experiência maravilhosa. Fiquei muito empolgado e disse que não havia o que criticar. No ano seguinte, Barbosa Lima os editou e gravou. Ao longo do tempo ele eventualmente me mostrava algum trecho musical e perguntava: isso dá para tocar no violão? Eu invariavelmente dizia: sim maestro, sem nenhum problema!  Em 1978, ele compôs 3 Canções para canto e violão que Maria Lucia Godoy e eu estreamos durante um recital que fizemos na Sala Cecília Meireles naquele ano, às quais acrescentei dois arranjos que eu havia feito de canções originalmente escritas para canto e piano. Na mesma época, ele me deu os manuscritos originais de uma coleção de peças para 2 violões, datados de 1974. Não sei se ele as escreveu pensando no Duo Abreu, mas quando as recebi, meu irmão já havia encerrado sua carreira de concertista. Mesmo depois que me retirei dos palcos nos encontrávamos com frequência. Além de termos muitos amigos em comum, fomos também colegas de júri em várias competições como em um dos Concursos Jovens Concertistas Brasileiros, organizados pela empresária Sula Jaffé. e em alguns dos Concursos de violão Villa-Lobos, organizados por Dona Arminda Villa-Lobos. Reconhecidamente Mignone deixou para violão e para duo de violões um vasto e imponente legado.