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postado em 22/01/2021

Tempo Tátil

Fotografia que ilustra a capa de Tempo Tátil | Foto: Ralph Baiker
Fotografia que ilustra a capa de Tempo Tátil | Foto: Ralph Baiker

Vladimir Safatle é conhecido como filósofo constantemente presente na imprensa através de artigos sobre a situação política brasileira, entrevistas sobre questões que vão da psicanálise a teoria estética e professor titular da Universidade de São Paulo, onde leciona filosofia e psicologia. No entanto, desde 2019 é sua face de compositor que parece tomar a frente:

 

“Extremamente conhecido nos meios acadêmicos, cafés filosóficos e circuitos de debates sociais e políticos, pelo discurso de inclusão social através da escrita, Safatle também é pianista e talentoso compositor - seu lado menos popular. A paixão pelo piano, inclusive, é anterior aos textos.” (Adriana Giachini, Correio Popular)

 

Tempo Tátil é o segundo álbum de Vladimir Safatle. Com 13 faixas de músicas instrumentais escritas sob estruturas variadas, o trabalho traz os desafios da composição atual por meio de estratégias para emancipar o tempo, como se fosse capaz de viver em um espaço no qual não se conta nem se mede.

 

“Experimentando a liberação do tempo musical de seus esquemas estruturais, Safatle afirma que o trabalho pode ser visto como uma forma de refletir a experiência brasileira, assombrada por certo fantasma de que aqui seria uma terra sem lei, sem fé, sem sem fibra, amorfa, paralisada, onde nada se sustenta”. (Augusto Diniz, Carta Capital)

 

Com piano, voz, instrumentos de cordas, sopro e percussão, o disco foi composto, em sua maioria, entre 2008 e 2020, e marca o abandono da exploração da forma-canção, como em seu primeiro álbum, “Música de superfície”, lançado em 2019. Isso produz peças que se desdobram entre o desfibramento, com um imobilismo aparente que é, na verdade, forma, de liberar os sons ao desenvolvimento de relações laterais, e a pulsação, como se a repetição pudesse fazer o papel de sustentação de um processo que se recusa conscientemente a andar para frente.

 

“Além de exploração do tempo, pode-se definir a pesquisa musical de Safatle também como investigação de texturas. Como, por exemplo, em Espaço liso, quando a viola de Paco Garces, o violoncelo de Rafael Ramalhoso e o piano do compositor parecem antes se suceder do que se sobrepor...Um aspecto estimulante da escuta desse disco é que, quando você acha que já pode imaginar o que vem em seguida, Safatle sapeca-lhe uma surpresa.” (Irineu Franco Perpétuo, Revista Cult)

 

Essa exploração do tempo musical se inscreve na maneira de Safatle sentir os desafios da produção cultural brasileira hoje. Talvez a arte tenha por destino criar a partir do que a sociedade teme. E fomos criados com o medo de que o Brasil fosse uma terra desfibrada, muito perto do informe, decomposta. Suas músicas fazem desse ponto de afastamento o princípio de sua produção:

 

“Na primeira faixa, 'O solfejo de nossas filhas', ele toca o 'Allegretto' da 'Sinfonia Nº 7' de Beethoven e declama um texto de sua autoria: 'O difícil não é passar 20 dias. O difícil é passar 20 minutos quando o tempo perdeu sua costura.' Nas 12 faixas seguintes, continua sua busca por esse tempo cujos 'instantes se descoseram' juntando piano, voz, cordas, sopro e percussão. Em algumas peças, recupera textos dos escritores Paul Celan, Scott Fitzgerald, Heiner Müller e Paul Éluard". (Ruan de Sousa Gabriel, O Globo)

 

Entre janeiro e abril, sete singles foram lançados paulatinamente, O amor vai desterrar nossos corpos (texto de Paul Celan); Três peças para gestos ao piano II; Três peças para gestos ao piano III; Instância e explosão; O Solfejo de nossas filhas; Espaço Liso e Tijolos em sístoles e diástoles (texto de Heiner Müller). Isto permitiu à imprensa descobrir um compositor consciente:

 

“Em parte instrumentais e em parte cantadas, as 13 faixas do disco são repletas de referências extra-musicais e têm estruturas que fogem ao formato tradicional da canção, de versos e refrões —o álbum se insere na tradição de música de vanguarda dos compositores americanos Morton Feldman, John Cage e Steve Reich. Questionar o formato da canção era mesmo a intenção do pianista.” João Perassolo, Folha de S.Paulo.

 

Completam o álbum as faixas: Três peças para gestos ao piano I; Três peças para piano e literatura; Golpes que não são ouvidos de uma vez (texto de Scott Fitzgerald); Para além da grade baixa (texto de Paul Eluard); Estruturas Paralelas; Metaesquema (piano: Vladimir Safatle) e a faixa de trabalho do CD: Quarteto nº 0.  Ao lado do compositor e pianista, o álbum conta com as vozes das sopranos Caroline De Comi e Fabiana Lian; da mezzo soprano Cristine Guse; e da filha do músico Valentina Ghiorzi Safatle; e dos instrumentistas Evan Rothstein, violino; Renan Vitoriano, violino; Paco Garcez, viola; Rafael Ramalhoso, violoncelo; Igor Willcox, bateria; e Ivan Nascimento, fagote.

Vladimir Safatle toca piano desde criança, chegou a ser aluno do pianista e compositor nova-iorquino Jay Gottlieb. Como reconheceu a revista alemã Cyte Magazine:

 

"Não se pode sentir essa música sem as viagens de Safatle, suas inquietas explorações de convulsões políticas, sem a força e a sensibilidade com a qual ele aproxima temas e pessoas. Sua música é uma extensão ou complemento de sua filosofia." (Revista alemã Cyte Magazine)

 

Mas ainda que resguarde semelhanças com a produção textual, sua criação musical é inevitavelmente mais livre: “Quando escrevo, tenho o pensamento no receptor, no debate que ele pode querer entrar, ou no que estou convidando-o a fazer parte. Mas quando trabalho com música não penso em nada. É incógnita absoluta, e eu sinceramente levo susto quando alguém diz que gostou.” e completa “é um resposta que recebo para a um processo de recepção que não eu consigo imaginar como seria.”

 

Tempo Tátil

Composto, em sua maioria, entre 2008 e 2020,  essas peças marcam o abandono da exploração da forma-canção, como vemos no primeiro trabalho de Safatle, “Música de superfície”. Aqui, as peças giram em torno de um trabalho de liberação do tempo musical de seus esquemas estruturais. Isso produz peças que se desdobram entre o desfibramento, com um imobilismo aparente que é, na verdade, forma, de liberar os sons ao desenvolvimento de relações laterais, e a pulsação, como se a repetição pudesse fazer o papel de sustentação de um processo que se recusa conscientemente a andar para frente.

Desfibramento e pulsação são também formas de confrontar o fantasma originário brasileiro, esse mesmo que nos ensina que aqui é uma terra sem estrutura, sem lei, sem continuidade, sempre assombrada pelo amorfo. Uma música fiel a seu conteúdo de verdade deve então saber não fugir de tal fantasma, produzindo a partir exatamente daquilo que nos ensinaram como sendo improdutivo.

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