Boca do Amazonas
Obra retrata o cotidiano periférico da sociedade amazônica, a defesa pela educação, a oralidade dos habitantes e a dimensão cultural relacionada à preservação da floresta e à pluralidade étnica
Por Francisco Foot Hardman*
Este é um livro predestinado. Willi Bolle, antigo corredor da São Silvestre, professor calejado que trocou desde sua primeira juventude a Alemanha pelo Brasil (e não se arrependeu!), volta a nos surpreender com este ensaio emocionado-emocionante sobre a Amazônia vivida e representada por um escritor inigualável, que a ela dedicou obra e existência inteiras, por quase meio século e dez romances, desde o início dos anos 1940 ao final dos 1970: Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909 – Rio de Janeiro, 1979).
Bolle informa-nos, em sua apresentação, que este Boca do Amazonas: sociedade e cultura em Dalcídio Jurandir encerra a trilogia iniciada com os ensaios Fisiognomia da metrópole moderna (1994), em que desponta São Paulo como protagonista, e grandesertão.br: o romance de formação do Brasil (2004), sobre a obra-prima de Guimarães Rosa. Ambos inspirados de modo inventivo e nada burocrático nas reflexões de Walter Benjamin sobre o narrador moderno. Boca do Amazonas segue essa mesma trilha, mas eu diria que, invertendo a ordem cronológica e espacial da viagem que levou seu autor da megacidade ao sertão e à infinita Amazônia, é agora a Amazônia que volta com sua fúria e beleza, com suas palavras a decifrar, com sua natureza, cultura e povos ameaçados a nos invadir, a nos questionar, a nos sorver em seu turbilhão de águas colossal. Água que é também fogo destruidor, entre tanta poesia e quase total incompreensão – do lado de cá dito civilizado.
Willi Bolle. Divulgação Sesc
Se Dalcídio permaneceu “regional”, é porque as elites do Centro-Sul-Sudeste do Brasil, ao contrário do que apregoam agora algumas de suas vozes oficiais, nunca incorporaram a Amazônia à sociedade e cultura nacionais. Nunca a consideraram como patrimônio socioambiental e fonte de conhecimento científico e humanístico inesgotáveis. A ser, sim, protegida dos ávidos predadores de sempre, única forma de garantir a soberania da nação sobre o seu próprio destino. Mas, não: deixaram-na ao sortilégio de entradas, bandeiras e monções, aos barões da cobiça extrativista e predatória de ontem e hoje, aos escravistas, genocidas e etnocidas de sempre. Aos aventureiros da desgraça que aí estão. E tal processo, permanente na Colônia, no Império e na República, só se fez acelerar desde os anos 1970, e mais ainda no século atual.
Pois com este “Ciclo do Extremo Norte” magistral que nos legou Dalcídio, aqui revisitado com amor e argúcia admiráveis por Willi Bolle, a leitura da Amazônia, especialmente dessa Boca do Amazonas que constitui a brilhante civilização marajoara-paraense, ganha novos ângulos, cores e sobretudo vidas, passadas e presentes.
Dalcídio Jurandir. Reprodução: Portal Amazonas
Ao ficar mais de uma década debruçado sobre seu objeto de estudo, Bolle não deixou por menos. Quem o conhece não se admira, de fato, pois reúne como poucos o dom do mestre à paixão sem cura do pesquisador-viajante. Viajou por toda a Amazônia e fixou residência numa das metrópoles mais belas do Brasil: Belém do Pará.
E, para atestar a vitalidade da literatura de Dalcídio Jurandir, trabalhou coletivamente na escola estadual de ensino fundamental e médio (EEEFM) Dr. Celso Malcher, em Belém, levando ao palco, com professores e alunos de lá, montagens teatrais de vários romances do autor em pauta. A escola está localizada no bairro pobre e periférico de Terra Firme, vizinho do rio Guamá e do campus da Universidade Federal do Pará. Esse mergulho numa das realidades mais pungentes do universo de Dalcídio contou ainda com a valiosa colaboração do NAEA, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Toda essa riquíssima experiência dramatúrgica foi incorporada ao presente volume, com fotos e textos que trazem o tema das periferias urbanas para o centro da cena e da leitura. E para o centro da educação: não poderia haver melhor homenagem a Dalcídio, que tinha a escola como bandeira – atualmente rasgada pelas autoridades que deveriam zelar por ela.
Cena da peça Entre o ginásio e a escola da rua, adaptação dos romances
Primeira manhã (1967) e Ponte do Galo (1971). Reprodução do livro
Comecei dizendo que este é um livro predestinado. Sim, porque traz ao cerne de nossos estudos literários, culturais, históricos e sociais – Bolle, sabiamente, e ao contrário de certos modismos pedantes, nunca os separou – a Amazônia que nos falta redescobrir: a do arquipélago de Marajó, a da metrópole belenense, a de suas periferias urbanas-regionais-planetárias, a dessa cidade mágica que é Gurupá, na confluência do rio Xingu com o delta do Amazonas. Delta que equivale a boca e que são na verdade muitas bocas: as dos “romances-rios” de Dalcídio e as dos que têm fome.
Com clareza de mestre que ama seu ofício e exatidão meridiana de viajante que não quer se perder, Willi Bolle é o dono da bola e da voz, e nos dá uma goleada de Brasil. Devemos – urgentemente – resgatar a Amazônia sequestrada e trazê-la para o âmago da história brasileira e do mundo contemporâneo, aqui e agora, antes que as visões dessa utopia comunitária entre ilhas, cidades, rios e florestas não sejam apenas clareiras desmatadas e a memória do nunca mais.
Trecho do livro
*Francisco Foot Hardman é professor livre-docente na área de Literatura e Outras Produções Culturais do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL, Unicamp). Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.