Sesc SP

postado em 06/03/2014

Para não se esquecer do passado

© H. Schultz
© H. Schultz

      


A história dos caxinauás por eles mesmos pretende colocar o leitor em contato com um rico repertório oral de tradições e mitos

 

Conhecidos, dentre os especialistas, por se dedicarem a impressionantes pinturas corporais e por cultivarem mitos que brincam com fragmentos do imaginário dos incas, os caxinauás ocupam um vasto território na bacia dos rios Juruá e Purus, nas baixas terras, entre o Brasil e o Peru, totalizando uma população de aproximadamente oito mil indivíduos – 75% dos quais se encontram em terras brasileiras. O caxinauá é um dos cerca de trinta grupos que compõem a família linguística “pano”, cujos falantes se localizam, principalmente, no Oeste do Amazonas, no Acre e no Peru.

Se o leitor médio brasileiro já ignora a variedade de línguas indígenas que o Brasil abriga, maior desconhecimento, então, certamente ele tem da riquíssima e complexa expressão cultural que essas línguas veiculam. Daí, a importância de um livro tão especial como Huni kuin hiwepaunibuki, A história dos caxinauás por eles mesmos, que as Edições Sesc São Paulo ora estão lançando.

Organizada pela linguista Eliane Camargo (pesquisadora do Centro de Ensino e de Pesquisa em Etnologia Ameríndia e do Instituto Francês de Estudos Andinos, ambos ligados ao Centro Nacional de Pesquisa Científica da França) e pelo antropólogo Diego Villar (pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina), a obra é o resultado de trabalhos realizados dentro do programa Documentação de Línguas Ameaçadas, financiado pela Fundação Volkswagen da Alemanha.

Huni kuin hiwepaunibuki, A história dos caxinauás por eles mesmos reúne 25 textos referentes à vida dos caxinauás. Cinco deles foram extraídos do livro Rã-txa hu-ni kuin, do historiador brasileiro João Capistrano de Abreu, publicado em 1914. Os demais nasceram de depoimentos registrados em áudio por Eliane Camargo, entre 1994 e 2007, e por Barbara Keifenheim, em 1994, adaptados, posteriormente, à linguagem escrita, que procurou preservar a dinâmica do estilo das narrativas orais caxinauás. A fim de tornar compreensíveis certos episódios históricos vividos pelos indígenas, alguns textos contam com notas complementares redigidas por Texerino Capitán e Alberto Toribio, caxinauás de Cashuera e de Canta Gallo, respectivamente, que desse modo praticam pela primeira vez a escrita literária.

Incorporando de forma criativa um aspecto alheio à cultura caxinauá, caso da escrita alfabética, o livro pretende colocar o leitor em contato com a experiência de um povo detentor de um rico repertório oral de tradições e mitos, mantido com o propósito de perpetuar a riqueza de sua história. A difusão do registro escrito das narrativas do povo caxinauá traduz, num certo sentido, a importância desse precioso material para a preservação da língua, da cultura e da identidade de uma sociedade indígena que, assim como tantas outras, está em risco de extinção. E também configura um ato imperioso de persistência da memória, já que os caxinauás têm o desejo de que seus filhos “observem, contem, escrevam, aprendam; e do passado não esqueçam”. Dos grupos da bacia do Juruá-Purus, sobretudo do lado brasileiro, os caxinauás são os que mais elaboram material em língua vernacular.

Alguns testemunhos registrados no livro revelam mudanças socioculturais profundas na prática de certos rituais fundamentais na tradição do grupo, como, por exemplo, o Txirim (txidim), a “dança para trás”, ou seja, o rito da memória. Outros depoimentos tratam do contato com diferentes grupos (os iaminauás) e mostram a dispersão dos caxinauás quando ainda moravam no alto rio Envira, região reconhecida como território tradicional dos ancestrais, evidenciando a acuidade perceptiva desses narradores tão singulares cujas circunstâncias diversas os colocam no papel de etnólogos ou historiadores. Um dos destaques diz respeito à importância conferida aos ornamentos e às pinturas corporais, ligada a uma valorização cultural da materialidade que se evidencia também na descrição quase obsessiva de desenhos, vestimentas, objetos e ferramentas, enfim, todos símbolos de identidade étnica. Mas, sem dúvida alguma, o aspecto mais originalmente espetacular das narrativas caxinauás consiste na descrição minuciosa da antiga prática do endocanibalismo, quando armadilhas macabras eram preparadas para aqueles parentes dos quais os caxinauás sentiam inveja.

A obra é apresentada em cinco partes. A primeira, “Como viviam os antepassados caxinauás”, retrata a vida de outrora: como eram suas malocas, quais eram seus hábitos (como a prática do endocanibalismo) e de que modo os antigos orientavam os membros da comunidade. Os textos da segunda parte ilustram diferentes contatos que os caxinauás tiveram com outros grupos, chamados de iaminauás. A terceira parte, “Os caxinauás e os nauás verdadeiros”, reúne relatos do contato do grupo com outros “nauás”, os nawa kayabi, destacando o encontro com o fotógrafo Harald Schultz, em 1951, seguido pelos sucessivos contatos com missionários e pesquisadores. Os textos da quarta parte, “Na terra dos nauás”, lembram peripécias pelas quais alguns caxinauás do Peru passaram durante as viagens que fizeram ao Brasil. Um dos textos relata a maneira como eles se sentiam vivendo como nauás. Já na quinta parte, “Dispersão”, as narrativas referem-se a duas das separações do grupo: a primeira, em razão de um conflito entre dois caxinauás, que fez muitos deles saírem do rio Envira em direção a outros rios da bacia do Juruá-Purus; a segunda, em decorrência do assassinato de um patrão de seringal, que levou o grupo a se refugiar no interior das terras e parar no alto rio Curanja, no Peru. O terceiro texto conta um pouco da vida no rio Xapuya.

O projeto editorial de Huni kuin hiwepaunibuki, A história dos caxinauás por eles mesmos segue o mesmo apuro técnico e a mesma sofisticação gráfica que as Edições Sesc São Paulo costumam dedicar aos livros de conteúdo tão original como esse. A obra é apresentada nas línguas caxinauá, portuguesa e espanhola e conta com vasto material iconográfico. Nos anexos, o leitor encontrará notas relativas à ortografia, seguidas de um léxico correspondente aos textos reunidos no volume.

Muito além do processo de documentação de sua língua e cultura, os relatos caxinauás propiciam um confronto entre diferentes perspectivas, sejam elas as visões analíticas de antropólogos, a curiosidade do leitor não indígena ou a própria interpretação dos caxinauás sobre sua noção de mundo. A história de um povo que detém uma noção de tempo e uma estrutura narrativa tão peculiares tem o poder de cativar o leitor e transportá-lo para um mundo diferente do dele. A soma desses relatos compõe uma obra fecunda e eclética no melhor dos sentidos: o leitor não encontrará nas páginas de Huni kuin hiwepaunibuki, A história dos caxinauás por eles mesmos uma simples coletânea de histórias de vida exóticas, tampouco um mero compêndio etnográfico. Os relatos dos caxinauás, além de revelar traços ricos da cultura, da língua e do pensamento do grupo, convidam esse leitor a adentrar o rico mundo das narrativas – recurso que o homem usa desde sempre para, de olhos fixos no futuro, não se esquecer do próprio passado. 

 

Veja também:

:: Vídeo

 

:: Trechos do livro

 

 

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