Ao artista antropofágico: um livro-homenagem a Zé Celso

Organizada por Claudio Leal, a obra celebra a vida de Zé Celso como um processo contínuo de reinvenção e descolonização, reunindo depoimentos, ensaios e entrevistas
Reunindo ensaios e depoimentos inéditos de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Maria Bethânia, Bete Coelho, Jorge Mautner, entre muitos outros, as Edições Sesc lançam O Devorador: Zé Celso, Vida e Arte. O livro traça uma narrativa multifacetada da carreira de José Celso Martinez Corrêa (1937–2023), marcada pela inovação radical, pela crítica política e pela celebração da liberdade artística e corporal. A obra coletiva é organizada pelo jornalista e pesquisador Claudio Leal.
Estruturado de forma cronológica e temática, o livro está dividido em capítulos que percorrem a trajetória intensa do encenador, articulando ensaios críticos, entrevistas, cartas e depoimentos de amigos e colaboradores — entre diretores, atores, técnicos, críticos, arquitetos, músicos, cineastas, poetas e jornalistas.
O livro conta ainda com projeto gráfico inovador do premiado designer Mateus Valadares. Ele revela uma lombada de costuras aparentes ao se desdobrar a capa tripla que faz as vezes de pôster e que revela fotos de diferentes fases de Zé Celso, sendo a principal delas um icônico registro de Bob Wolfenson. Além disso, um generoso caderno de imagens colorido serve como acompanhamento visual aos mais de 40 textos do volume.
A publicação percorre desde seus primeiros passos em Araraquara, passando pela fundação do Teat(r)o Oficina, as montagens históricas de O rei da vela e Roda viva, seu exílio em Portugal e Moçambique durante a ditadura militar, até sua luta pela preservação cultural e urbana do Oficina em anos mais recentes.
Inspirado no conceito modernista da antropofagia de Oswald de Andrade, Zé Celso transformou o teatro brasileiro ao promover a fusão entre arte, política e vida, colocando em cena o inconsciente nacional com irreverência, paixão e crítica. Sua prática artística propôs uma constante devoração e reinvenção dos códigos estéticos e sociais.
Zé Celso e o Teatro Oficina
Nascido em 1937, em Araraquara (SP), teve uma juventude marcada por inquietações familiares e políticas, incluindo uma breve passagem por um centro cultural integralista, que mais tarde seria exorcizada. A morte de Getúlio Vargas, em 1954, marcou profundamente sua geração, criando um senso de orfandade simbólica que impulsionou muitos jovens artistas à busca de novas formas de expressão. Esse impulso o levou a São Paulo, onde, nos corredores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, começou a gestar a ideia de um teatro de ruptura.
A fundação do Teatro Oficina, em 1961, acontece nesse contexto. Ao lado de outros jovens artistas, Zé Celso rejeitou as influências importadas do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e buscou um caminho próprio, influenciado por Stanislavski, Brecht e, posteriormente, Oswald de Andrade. As primeiras montagens, revelaram um domínio das formas realistas, mas foi com O rei da vela (1967) que ele rompeu de vez com os modelos tradicionais. Incorporando elementos do teatro de revista, da ópera e do carnaval, a peça consolidou a estética antropofágica do Oficina.
A peça O rei da vela, escrita por Oswald de Andrade em 1933 e encenada pela primeira vez apenas em 1967 pelo Teatro Oficina, é uma obra central da estética modernista e tropicalista brasileira. A montagem transformou a peça num verdadeiro marco do teatro de vanguarda no Brasil, conjugando sátira política, carnavalização e uma linguagem teatral radicalmente inovadora.
Zé Celso conseguiu transformar a peça em um verdadeiro ritual de descolonização cultural — uma forma de esculhambar as estruturas conservadoras e imaginar um Brasil reinventado, sexualmente e politicamente liberto. O engajamento político do Teatro Oficina cresceu em meio à radicalização do país nos anos 1960, e com a montagem de Roda Viva (1968), com texto de Chico Buarque, que chegou a ser violentamente atacada por milicianos, simbolizava o último embate entre a arte libertária e a repressão da ditadura militar. Mais tarde, Zé Celso foi preso e forçado ao exílio, retornando ao Brasil somente em 1978. Encontrou um país em transição, e seu teatro havia perdido espaço. Iniciou a lenta reconstrução do Oficina, com projetos que dialogavam com a cidade, com a história brasileira e com a experiência vivida fora do país.
O Devorador
A antropofagia é um conceito fundamental para entender a trajetória de Zé Celso. A ideia nasce do Movimento Antropofágico da década de 1920, especialmente dos escritos de Oswald de Andrade que sugerem que a arte brasileira deveria se libertar do colonialismo cultural "devorando" — assimilando criticamente — as influências estrangeiras, misturando-as aos ingredientes da própria brasilidade.
Zé Celso adota e expande essa noção ao longo de sua vida artística: para ele, a antropofagia é uma prática permanente de devorar e transformar. No seu teatro, cada espetáculo negava e ultrapassava o anterior, num processo de crítica, reinvenção e absorção contínua. Percebendo a história brasileira — e o próprio teatro — como resultado dessa dinâmica devoradora: engolir referências externas, misturá-las com a cultura popular brasileira (o circo, a chanchada, a verborragia, a violência recalcada) e cuspir algo novo, irreverente, politizado e profundamente enraizado no Brasil.
A antropofagia é também uma postura política: um gesto de descolonização cultural. Em suas entrevistas, ele explica que a verdadeira independência do Brasil não viria pela simples rejeição do que é estrangeiro, mas pela digestão criativa dessas influências, criando algo autenticamente nosso. Inspirado por Oswald, não enxerga o processo histórico de maneira linear e progressivo, mas como um terreno de "simulacro", de um Brasil carnavalesco e grotesco, que também pode ser compreendido a partir da esculhambação.
“A partir do hemisfério sul, olhar o hemisfério norte e devorar a cultura norte-americana. Foi um processo de antropofagia maravilhoso, não só no meu trabalho, como no trabalho de Caetano, do Gil, do Tom Zé. Enfim, abriu um caminho enorme essa devoração, essa antropofagia.”
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:: trecho do livro