Ser e não ser

Livro de Jamil Dias, que contempla a trajetória do ator Sergio Cardoso, contou com cuidadosa pesquisa embasada em periódicos de todo o país e em depoimentos de críticos e artistas contemporâneos
O teatro é uma arte ao mesmo tempo fascinante e ingrata. Se abre as portas para a realização de momentos sublimes no palco, ao mesmo tempo tranca esses momentos na memória dos privilegiados que os assistiram. Não resta um registro em movimento que fique para a eternidade, tal como o cinema, a literatura, a música. Às vezes, salvam-se fotografias, que trazem apenas uma mínima fração, instantâneos de um segundo, quando a realização do todo é o que importa. Daí a relevância do resgate feito por pesquisadores que, à caça de informações muitas vezes escassas ou duvidosas, levam anos para enfim oferecer ao público uma biografia que legitime a importância de determinado artista. É o que faz, com extremo talento e competência, o professor e pesquisador Jamil Dias em Sérgio Cardoso: ser e não ser, biografia de um dos maiores atores do palco brasileiro que, ironicamente, é um nome desconhecido para praticamente toda a população desse deste país. Alguns poucos informados vão associá-lo ao Teatro Sérgio Cardoso, localizado no bairro paulistano do Bixiga e onde, aliás, existia antes o Teatro Bela Vista, fundado justamente por Cardoso e sua então mulher, a atriz Nydia Licia.

Mais que recuperar a trajetória de um grande artista, Jamil Dias precisou apresentá-lo, como se desconhecido fosse. Sérgio Cardoso é apontado como um dos maiores (se não o maior) ator do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), grande celeiro de talentos da cena. Mesmo assim, seu nome é raramente lembrado quando se fala do TBC. Talvez sua morte prematura em 1972, aos 47 anos, tenha contribuído para o esquecimento, quando muitos de seus pares (Paulo Autran, Tônia Carrero, Cleyde Yáconis, Leonardo Villar) faleceram já no século XXI. Por outro lado, uma das maiores de nossas atrizes, Cacilda Becker, morreu antes, em 1969, aos 48 anos, e ainda é uma referência viva. Dias busca pistas para tal ostracismo injustificado, pois Sérgio Cardoso hipnotizava a plateia com suas marcantes atuações.

Peixoto Gomide (SP), em 1968.
Acervo NL SC
Quando chegou do Rio para integrar o TBC, nos anos 1950, ele Sérgio trouxe um estilo de interpretação que destoava da forma praticada por seus novos colegas de palco. O pesquisador explica: “um dos traços característicos da personalidade artística de Sérgio era um natural e raro sentido de estilo, podendo-se mesmo falar de uma tendência para um teatro mais poético, ou seja, era um ator muito mais talhado para a exuberância e a elaboração formal do teatro clássico do que para o despojamento do realismo moderno. Bastaria esse traço para garantir-lhe um lugar à parte na galeria dos atores brasileiros”. Ele ainda era ainda dono de múltiplos recursos e de uma voz que era extraordinariamente plástica, além de sua elegância de movimentos. Tais qualidades, ao mesmo tempo em que provocavam assombro, despertavam inveja. É assustador acompanhar os detalhes levantados por Dias sobre a desastrosa estreia do espetáculo Lampião, que marcou o início da Cia. Nydia Licia-Sérgio Cardoso, em 1954. Uma série de boicotes da equipe técnica prejudicou a montagem de tal forma que Sérgio, também diretor, desmaiou ao final da apresentação, tamanha a exaustão.
O ator participou ainda de várias telenovelas, na Tupi e na Globo, e era o protagonista de O primeiro amor quando um repentino ataque cardíaco o vitimou, a 28 capítulos do fim da trama. Foi substituído por um de seus pupilos, Leonardo Villar. Dias novamente oferece detalhes do trágico momento, assim como dissipa o famoso (e maldoso) boato sobre uma catalepsia do ator. O ponto final de uma biografia delicada, dedicada e, finalmente, agora, disponível.
Ubiratan Brasil
Jornalista e editor especializado em cultura, além de responsável por coberturas de grandes eventos, como premiações de cinema e feiras literárias nacionais e internacionais.
*Texto publicado originalmente na orelha do livro
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