Sesc SP

postado em 16/01/2025

Rastros de resistência na floresta

Indígena araweté coletando mel de abelha arapuá, 1982. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Indígena araweté coletando mel de abelha arapuá, 1982. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

      


Novo livro das Edições Sesc procura desvendar os rastros dos povos indígenas isolados na Amazônia e reafirma a urgência de proteger a floresta e seus guardiões 

Em junho de 2022, pouco depois de a pandemia de covid-19 ser considerada oficialmente controlada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), recebemos com indignação a notícia do assassinato do sertanista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, no Amazonas. Naquele momento, o biólogo, educador e indigenista Daniel Cangussu entendeu que precisava ir além dos aspectos ecológico e antropológico de sua pesquisa para fazer ecoar também seu entendimento sobre o indigenismo e a relevância do sertanista em ambientes quase sempre hostis.

Para isso, nos faz enxergar nesta obra a Floresta Amazônica em três dimensões possíveis: de fora para dentro, como um biólogo; de dentro para fora, como um educador; e de dentro para ainda mais dentro da mesma floresta, como um sertanista. Para validar seu percurso científico, o autor apoia-se na botânica e na arqueologia, e assume o viés político de seu trabalho ao denunciar a característica de refugiados que os povos indígenas em isolamento, cada vez mais ameaçados e acuados em sua própria terra, acabam assumindo na Amazônia. Parte do quadro de funcionários da Funai, Cangussu promove expedições nas matas do sul do Amazonas, perto da fronteira com Rondônia, em um território cobiçado e já invadido pelo extrativismo mineral predatório, pela exploração ilegal de madeira e pelo avanço do agronegócio. Essas expedições observam o percurso de grupos e/ou indivíduos indígenas que habitam secularmente a região e tentam escapar do contato com invasores.

Assim, o primeiro capítulo deste "Vestígios da floresta: povos indígenas refugiados da Amazônia" contextualiza a política do não contato, esclarecendo por que muitos povos indígenas amazônicos optam por não ter contato formal com os não indígenas. Já no capítulo subsequente, Cangussu introduz a ideia de ciência mateira, para a qual arbustos quebrados ou sementes descartadas são convertidas em informações acerca da mobilidade e da territorialidade dos povos indígenas isolados. O terceiro capítulo, por sua vez, traz fundamentações ecológicas e botânicas associadas à pesquisa acadêmica e à experiência indigenista do autor, que se coloca como discípulo daqueles que o acompanham nas expedições. Os guias, ou mateiros, são quase sempre indígenas, tornados telescópios e microscópios humanos, bússolas mentalmente georreferenciadas, periscópios do oceano de árvores. Por fim, no último capítulo, o biólogo analisa o relato de um contato entre ribeirinhos e indígenas isolados nas cabeceiras do igarapé Canuaru, no sul do Amazonas, onde estão os Jamamadi, os Jarawara, os Banawa e, presume-se, os Hi-Merimã, ainda “isolados” e com população estimada em cem pessoas. Ao relato, associa seus saberes botânicos e arqueológicos em formato de notas, como nos diários dos viajantes do século XIX, e esmiúça a efetiva materialidade de um coletivo de pessoas que, forçadamente, se invisibilizam e, paradoxalmente, se revelam por sinais que anunciam que aquele território tem donos, o que bastaria para explicitar a conveniência de nosso afastamento.

Marco na defesa da floresta e dos povos originários, este livro é inestimável pelo ineditismo de sua abordagem; pela sustentação científica dada à “ancestralidade territorial”, ao direito originário e ao conhecimento tradicional; por afirmar o papel estratégico dos povos indígenas na contenção do desmatamento; e – razão bem menos nobre – pela visibilidade que a ação indigenista junto a povos indígenas isolados assumiu a partir do crime devastador contra Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari.

Marina Kahn
Cientista social, presidente do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) e vice-presidente do Instituto Socioambiental (ISA)

O texto acima foi publicado originalmente na orelha do livro.

Veja também:

:: trecho do livro

 

Produtos relacionados