Sesc SP

postado em 04/01/2023

Jovens entre o palimpsesto e o hipertexto

destaque-site

      


Coletânea reúne artigos e conferências do antropólogo e filósofo Jesús Martín-Barbero, considerado o precursor dos estudos culturais latino-americanos

Por Rose de Melo Rocha*

 

Jesús Martín-Barbero, Jesús, como gostava de ser chamado, é muito mais do que o fundador dos estudos culturais latino-americanos, ou, como alguns também o situam, o artesão que posicionou as teorias da comunicação e da mídia sob bases humanistas, plurais e socialmente implicadas, sem ceder a mediacentrismos. Dos meios, deslocou-se às mediações, às lógicas culturais, aos usos e apropriações. Indo além dessas alcunhas, esse autor brilhante e pesquisador incansável, dotado de uma verve única, o que tornava suas conferências acontecimentos inesquecíveis, propunha algo ainda maior. Seu saber quente, que mergulhava e imergia na cultura em suas expressões processuais e cotidianas, tomava por observatórios do social fenômenos e sujeitos impuros, “menores”, ou aqueles menosprezados por intelectuais empedernidos e por cientistas afeitos ao estável, ao organizável e ao categorizável. Assim, elegeu como alguns desses observatórios fulcrais as juventudes, as tecnicidades, as urbanidades, que percebia em suas manifestações vitais e abordava sem melindres e sem essencialismos.

Talvez tenha sido um dos primeiros, em sinergia transatlântica com Edgar Morin, a falar das juventudes no plural, para além das representações midiáticas e dos dualismos. Não as demonizava, não as endeusava. Mas perseguia suas epistemes. Suas estéticas. Suas ambivalências. Suas astúcias e angústias. Via ali conhecimento. Aprendizados. Pedagogias existenciais outras.

 

 

O “cartógrafo mestiço”, como o chamou com afeto e precisão Rossana Reguillo, sua comparsa de insubordinações reflexivas que assina o precioso epílogo desta obra, foi, antes de mais nada, um auscultador de sinais, um colecionador de pistas, um inventor de metáforas. Foi desde a cultura em seus usos e apropriações que Martín-Barbero analisava o mundo em que vivia, este mundo irremediavelmente impregnado da comunicação e de suas materialidades. Não por acaso, os conceitos nucleares que dão base à estrutura argumentativa dos capítulos que compõem este livro remetem a tessituras comunicacionais plásticas, a saber, o palimpsesto e o hipertexto, eles mesmos metáforas-observatórios da contemporaneidade.

Já na introdução do livro, o próprio Martín-Barbero destaca: “bem cedo encontrei na juventude um veio fundamental de compreensão das mudanças que a sociedade inteira estava vivendo”. Com seu tirocínio e seu humor fino, ele, de fato, não foi apenas um acadêmico. Nunca deixou de estudar, nunca deixou de se interessar pelo novo, pelo desconhecido e mesmo pelo que lhe parecia talvez incompreensível. Intelectual envolvente e engajado, encantava os jovens estudantes com quem interagia, invariavelmente impactados com a atenção com que o experiente mestre os escutava. Fui uma dessas jovens pesquisadoras, e desse contato resultou um aprendizado inestimável de que os grandes mestres não são olimpianos nem inacessíveis.

 

 

Toda essa vivacidade e inquietação expressam-se também em uma perspectiva epistemológica particular. Néstor Garcia Canclini refere-se a Jesús e a seu “modo de refletir indisciplinadamente” no prefácio do livro, indicando a vasta implicação entre política, vida e experiência nos escritos de Martín-Barbero. Em caminho similar dá-se a reflexão filosófica sobre as tecnologias e as mutações no campo da educação, podendo traçar-se um paralelo, na leitura de Martín-Barbero, entre os desafios pedagógicos e os desafios no plano democrático. Para Jesús, ambos deveriam ser pautados pela busca de novos regimes de emancipação, autonomia, inteligibilidade e cidadania – uma cidadania outra, comunicacional, corporal, sensorial, sensível e subjetiva.

Sua paixão pela cidade e pelas imagens também atravessa a escrita, compilada, aos moldes curatoriais, por Carles Feixa e Mònica Figueras-Maz. Lendo-as a contrapelo, Martín-Barbero nelas percebe as forças abissais, mas igualmente as potencialidades libertárias, e nessas passagens situa sua crítica às audiovisualidades no âmbito de uma crítica à globalização, preocupação da qual já se ocupara em obras anteriores. 

As narrativas impregnadas de relatos vitais que constituem este livro, como em uma grande anamnese biográfica e coletiva, revelam um pesquisador visionário que mobiliza temas ainda atuais, antevendo problemáticas como a das políticas identitárias, a visada sudaca e os debates de sexualidade e gênero. Jesús já não está mais entre nós, tragicamente vitimado pela covid-19 no ano de 2021. É um alento reencontrá-lo tão pulsante nesta escrita. O mestre de sorriso fácil e olhar curioso, como se vê neste livro, mirava com horror e indignação a degradação da vida e das relações sociais, colocando em franca suspeição os Estados modernos. Todavia, acreditava na potência da estética e das mutações tecnoculturais. Acompanhá-lo em ambos os fluxos é um prazer e um privilégio. Boa jornada!

 


Trecho do livro

 

*Rose de Melo Rocha é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP, pesquisadora da Clacso e líder do GP Juvenália. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

Produtos relacionados