Mago dos prodígios
Gianni Ratto fez parte da geração que reinventou o teatro italiano no pós-guerra e, no auge do sucesso, veio ao Brasil para expandir sua atuação e contribuir na estruturação do teatro moderno brasileiro. O livro é ricamente ilustrado com fotos, desenhos e esboços.
Nascido em 1916 em Milão, na Itália, e criado em Gênova, Gianni Ratto desde criança se interessou pelo universo das artes, influenciado pela mãe pianista. Teve a juventude marcada pelo regime fascista e pela Segunda Guerra Mundial, e conheceu o sucesso no país natal como cenógrafo. Em 1954, decidiu largar tudo e vir para o Brasil, onde sua carreira teve um segundo ato como, além de cenógrafo, também diretor teatral, figurinista, iluminador, ator e gestor cultural. Essa vida repleta de realizações que coincidem com a vida cultural de boa parte do século 20, em dois continentes, foi tema da mostra Gianni Ratto 100 Anos, exibida em 2017 no Sesc Consolação, que inspirou O teatro de Gianni Ratto: Mago dos prodígios, novo lançamento das Edições Sesc São Paulo, com apoio cultural do Instituto Gianni Ratto, em edição bilíngue (português e inglês).
O volume, organizado por Antonia Ratto, designer e artista visual, filha de Gianni, e pela crítica e curadora Elisa Byington, é um registro minucioso da vasta produção do artista ítalo-brasileiro. Com textos introdutórios de Vittoria Crespi Morbio, sobre a fase italiana, e de Sergio de Carvalho, sobre Gianni no Brasil, o livro traz informações detalhadas, ilustradas por desenhos e fotos, das montagens com assinatura de Ratto, desde Calígula, que estreou em Milão em 1946, até Café, ópera de Mário de Andrade encenada em 1996 no Teatro Municipal de Santos (SP), sua última cenografia.
Jocy de Oliveira, Ítalo Rossi, Fernanda Montenegro, Gianni Ratto e Luciano Berio. Rio de Janeiro, 1961. Foto: Acervo Jocy de Oliveira
Serviço militar obrigatório e reconstrução do país pela arte
Em seu texto dedicado ao pai, Antonia, nascida quando Gianni já tinha 60 anos e uma longa trajetória, recorda que “para um homem de convicções anarquistas e humanistas, a interrupção da vida por oito anos de serviço militar obrigatório, dentre os quais quatro de guerra, não sairia sem ônus”. Ele serviu o exército italiano sob Mussolini entre 1938 e 1945. O fim da guerra e a necessidade de reconstruir o país natal também artisticamente deu o primeiro impulso à produção como cenógrafo. Foi na Itália que, “por sua inteligência sintética e capacidade singular de materializar uma variedade de mundos sobre qualquer palco, tinha sido chamado de ‘mago dos prodígios’, segundo Elisa Byington em sua Introdução. A participação de Gianni no grupo do Piccolo Teatro de Milão, que também incluía Giorgio Strehler e Paolo Grassi, a partir de 1947, propondo a encenação inovadora de grandes clássicos e textos contemporâneos, deu nova vida ao teatro italiano após décadas de censura imposta pelo fascismo e pela guerra. O grupo do Piccolo Teatro teve um forte intercâmbio com os cineastas do neorrealismo italiano, como Vittorio De Sica e Adolfo Celi.
Antonio Battistella (esq.) e Marcello Moretti (dir.). Fotos: Claudio Emmer | Arquivo Piccolo Teatro de Milão
A vinda para o Brasil
Em 1954, após nove anos “inacreditavelmente intensos”, com mais de 120 espetáculos realizados e reconhecimento da crítica europeia, incluindo óperas antológicas no Teatro alla Scala de Milão, Ratto decide vir ao Brasil, a convite de Maria Della Costa, para expandir sua atuação e estrear como diretor. Segundo a filha, “sua visão de encenador, desde o início, na construção de uma visão conceitual de cada espetáculo como um todo coeso, o faziam sentir-se um tanto restrito apenas no papel de cenógrafo”. Para Elisa Byington, a atuação de Ratto “marcou de modo indelével a renovação do teatro italiano do pós-guerra e a estruturação do moderno teatro brasileiro”. Estreou como diretor com O canto da cotovia (L’Alouette), de Jean Anouilh, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo. Logo conheceu e ficou muito amigo do casal de atores Fernando Torres e Fernanda Montenegro.
Croquis Gianni Ratto | Arquivo Histórico Teatro Alla Scala de Milão
Parceria de Gianni Ratto com Fernanda Montenegro e Fernando Torres
O trio de amigos fundou em 1959 o grupo O Teatro dos Sete. Na década de 1960, Ratto fundou ainda o Teatro Novo, ambicioso projeto de escola de teatro, música e companhia de balé, brutalmente fechado pela ditadura militar em 1968. Byington lembra que “tamanho arbítrio o fez abandonar o teatro e se retirar a uma praia deserta por mais de um ano”. Foi trazido de volta à cena por Flávio Rangel, com quem estabeleceria uma fértil parceria.
Espetáculos na Itália e no Brasil
Em sua fase italiana, Ratto encenou, entre outras, Ricardo III e A tempestade, de Shakespeare; Crime e castigo, de Dostoiévski; A morte de Danton, de Büchner; Electra, de Sófocles; A engrenagem, de Sartre; Seis personagens em busca de um autor, de Pirandello; La Traviata, de Verdi; Pulcinella, de Stravinski; Wozzeck, de Alban Berg; e O rapto do serralho, de Mozart. No Brasil, em cinco décadas, assinou montagens como O santo e a porca, de Ariano Suassuna; As três irmãs, de Tchekhov; O beijo no asfalto, de Nélson Rodrigues; César e Cleópatra, de Bernard Shaw; Werther, de Goethe; Os saltimbancos, de Sergio Bardotti e Luís Bacalov; A flauta mágica e Don Giovanni, de Mozart; O guarani, de Carlos Gomes; O barbeiro de Sevilha, de Rossini; e A queda da casa de Usher, de Philip Glass. Ao longo da carreira, a luz foi ganhando papel preponderante em suas cenografias, que vão se tornando cada vez mais minimalistas. Todas as peças listadas são ilustradas com fotografias, desenhos e esboços originais de Ratto.
Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi e Sebastião Vasconcelos na montagem de 1964 | Acervo Gianni Ratto
“O segredo da vida é o encontro de gerações”. Essa frase de Ratto é a mais marcante para o amigo Marcos Caruso – ator, autor e diretor de teatro, cinema e televisão –, que assina o texto de orelha do livo. “Lendo este livro, emociono-me com as encenações ao ar livre em Florença e Veneza com o mestre da luz transformando ‘escadas e janelas em casebres, tribunal e catedral’, manuseando o ‘pincel ao ritmo das óperas’, vendo-o acreditar, depois de tudo, num ‘teatro despojado, pobre – até andrajoso’”, afirma Caruso. Ele também se diz emocionado “pela delicadeza ativa com que passou por uma guerra mundial e duas ditaduras em dois países lutando pela arte, pela reconquista da liberdade, sempre instado a começar do zero”.
Entrevista com as organizadoras Antonia Ratto e Elisa Byington
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