Sesc SP

postado em 30/08/2022

Uma visão iconoclasta

Gabriel Abrantes no filme Taprobana, 2014.
Gabriel Abrantes no filme Taprobana, 2014.

      


Terceiro volume da coleção Arte, trabalho e ideal é dedicado a Gabriel Abrantes, cineasta e artista visual reconhecido por trabalhos marcados pelo sarcasmo e pelo olhar crítico à cultura de massa

Por Solange Farkas*

 

Pouco antes de participar da primeira mostra abrangente de seu trabalho realizada no Brasil, como um dos artistas convidados do 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em 2015, Gabriel Abrantes falou, em entrevista, de seu espanto diante de um mundo que resiste a reconhecer e a incorporar suas próprias e óbvias transformações, em especial no que diz respeito à sacrossanta instituição das identidades culturais nacionais. “Surpreende-me o tom nacionalista ainda dominante na organização e no consumo da cultura”, disse, em fala registrada no catálogo do festival. “Como é persistente e forte a negação do hibridismo cultural, mesmo após quinhentos anos de migrações de populações inteiras.”

Longe de deter-se no incômodo expresso nesse comentário – que soa quase como um desabafo –, o corpo da obra de Abrantes já nasce em um lugar situado bem além dele. Ou, como ele mesmo concluía: “Todos os meus filmes parecem se comprazer com um pouco de hibridismo e ambiguidade. Não me interessa tanto ‘criar’ híbridos, mas sublinhar o fato de que as coisas já são híbridas; identidades padronizadas e imutáveis são uma ficção.”

 


Cena do curta-metragem "Les Extraordinaries Mésaventures de la jeune fille de pierre", 2019 | Foto: Divulgação.

 

Filho de mãe angolana e pai zairense, nascido no estado norte-americano da Carolina do Norte e formado em arte e linguagens audiovisuais entre Nova York, Tourcoing e Paris, Gabriel Abrantes aporta à grande onda pós-colonial – ou, no melhor dos casos, descolonial – na cultura de uma perspectiva particularíssima, de uma contemporaneidade que ultrapassa seu tempo. Seu conceito flexível de geografia e seu gosto pelo artifício refletem uma visão iconoclasta da história, da geopolítica, da arte e do cinema; em seu universo pessoal de campos utilizáveis, cabem da cultura clássica aos gêneros hollywoodianos padronizados, do futebol à psicanálise, da poesia visual à ironia.

Interessado em “lugares onde formas contemporâneas de vida estão a ser inventadas”, filmou em Angola, no Haiti, em Sri Lanka e no Brasil, e recriou paisagens afegãs e iraquianas em estúdio, compondo especulações narrativas que exploram o atrito sutil entre eixos de poder tradicionais e emergentes. O frescor de seu olhar libertário, que mira a forma como a cultura global está sendo transformada pela ascensão de novos atores – e os impactos dessas identidades em culturas antes hegemônicas –, chamou atenção em um festival que, em 2015, abria sua convocatória a artistas portugueses, incluindo o país no desenho simbólico do Sul do mundo.

 

Cartazes dos fiilmes de Gabriel Abrantes | Foto: Divulgação.

 

Desde 2015, ano em que também participou da 56ª Bienal de Veneza, Gabriel Abrantes fez seu primeiro longa-metragem, premiado em Cannes, entre outros trabalhos que reafirmam o caráter dissonante e visionário do olhar que lança às mudanças em nosso mundo. O mergulho aprofundado em sua obra que este livro empreende, da perspectiva da articulação entre arte, trabalho e ideal, é oportuno e inspirador: mais que cenários, nos apresenta os lugares internos onde o contemporâneo está sendo inventado.

 

*Solange Farkas é curadora, fundadora da Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil e presidente da Associação Cultural Videobrasil.

 

Clique na imagem para ler trecho do livro

 

Sobre o Artista

Gabriel Abrantes é artista multidisciplinar, cineasta e professor. Sua obra transita por um vasto universo temático, permeável às mais diversificadas referências. No processo de criação, considera os aspectos experimentais, valorizando a dimensão lúdica da arte, com apurada visão crítica dos meios e modos de produção. Seus filmes e vídeos exploram procedimentos artesanais e a estética do cinema popular, forjando uma filmografia situada na fronteira entre realidade e ficção.

 

Sobre a coleção Arte, trabalho e ideal

Organizada por Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz, a Coleção Arte, Trabalho e Ideal propõe uma série de livros de pequeno porte, cada um contemplando uma entrevista do artista, uma breve biografia, um ensaio crítico de notório conhecedor de sua produção e fotos de suas obras mais representativas para o contexto da Coleção e de seu trabalho.

 

Veja também

A cozinha do artista | Com primeiro livro dedicado ao gravurista Evandro Carlos Jardim, coleção Arte, Trabalho e Ideal chega ao público para aproximá-lo do gesto da criação.

Um olhar sempre à frente | Um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira, Anna Bella Geiger é revisitada no segundo livro da coleção Arte, Trabalho e Ideal.

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