Sesc SP

postado em 16/06/2022

Um gênio complexo

Imagem a partir do retrato de Mário de Andrade por Anita Malfatti, 1921-2.
Imagem a partir do retrato de Mário de Andrade por Anita Malfatti, 1921-2.

      


Em Mário de Andrade, epicentro, Mauricio Trindade investiga o papel de um artista fundamental na constituição do modernismo brasileiro

Por Gustavo Ranieri*


A defesa dos ideais vanguardistas na busca pelo novo na produção artística é o elemento principal, mas não único, que uniu Mário de Andrade (1893-1945), Tarsila do Amaral (1886-1973), Anita Malfatti (1889-1964), Oswald de Andrade (1890-1954) e Menotti del Picchia (1892-1988). Juntos, ficaram conhecidos como o Grupo dos Cinco e foram responsáveis por lançar as bases para a Semana de Arte Moderna de 1922, cujo legado continua a ser estudado e a impactar a cultura nacional contemporânea depois de cem anos.

Embora cada um deles galgasse seu próprio espaço e recebesse atenção especializada para o que produzia, a verdade é que não compartilhavam do mesmo protagonismo. Incontestavelmente, a figura central dos modernistas paulistas cabia a Mário, que além de pianista, musicólogo, poeta, romancista, historiador, crítico de arte, pesquisador e gestor cultural, viria a ser conhecido como um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século 20.

Foi justamente o interesse nas cartas trocadas pelos membros do Grupo dos Cinco e a rica análise crítica presente nessas missivas que fizeram brilhar os olhos do sociólogo Mauricio Trindade da Silva à época em que realizava seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Em meio às ambições, conflitos e disputas por protagonismo, Trindade queria entender de que forma o autor de Paulicéia Desvairada (1922) e Macunaíma (1928) era visto e se via na ebulição da segunda década do século 20. O resultado está no livro Mário de Andrade, epicentro: sociabilidade e correspondência no Grupo dos Cinco, livro das Edições Sesc São Paulo que integra o projeto Diversos 22: projetos, memórias, conexões, ação que o Sesc São Paulo realiza ao longo deste ano com atividades que abordam o centenário da Semana e o Bicentenário da Indenpendência do Brasil.

 


Trecho do livro

 

Conhecedor da fortuna crítica de Mário de Andrade, Mauricio fala sobre o trajeto trilhado para chegar nesta publicação e a motivação em investigar o papel de Mário mais do que o dos outros modernistas.

 

O papel central de Mário de Andrade na constituição do modernismo brasileiro, como você mostra no livro, se estendeu ao longo da vida dele em outras esferas da cultura nacional, uma vez que foi crítico, musicólogo, folclorista etc. Em algum momento ele percebia esse seu papel central de forma orgulhosa, egocentrista?
Mário de Andrade foi uma pessoa muito complexa, no sentido de que ele tinha uma autoconsciência elevada e também crítica acerca de seus alcances e limites. Os limites derivavam em grande parte de sua posição social (e de seus capitais específicos) no enquadramento societário daquele momento: foi, salvo alguma outra exceção, o único modernista que não cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (o curso era, e ainda é hoje, um marcador simbólico valorativo); vinha de uma família em franco declínio econômico (e as cartas mostram os perrengues que enfrentava para publicar seus livros ou adquirir livros importados e obras artísticas em geral); não tinha simetria com o ideário "masculino" prevalecente; sua saúde era precária etc. Os alcances, por seu turno, estão ligados a conquistas lúcidas a par de suas possibilidades de inserção social: estudo autodidata; aprendizado de línguas adicionais; disposições intelectuais ampliadas no campo da cultura etc. Balizando essas conformações, o estudo crítico do modo pelo qual Mário de Andrade se enxergava não deve cair na cilada de acreditar totalmente no que ele próprio dizia, posto que ele assumia as duas posturas, entre o orgulho (não diria egocentrismo) e a humildade.

Mas como eram as avaliações que fazia de sua própria obra?
Em muitos de seus escritos, e nas correspondências que manteve, surgem avaliações sobre a própria obra (produção circunstancial, de momento, que procurava responder a alguma questão latente ou socialmente urgente etc.), e essas avaliações sobre a importância do que escreveu são muito duras às vezes; em outras, principalmente ao debater o significado profundo de seus escritos (e queixava-se de ser muito incompreendido por seus pares), o poeta demonstra certo orgulho e consciência de seu valor. Essa atitude cambiante ganha inteligibilidade justamente a par de sua trajetória familiar e social, de sua relação com os demais modernistas (no caso mais visível, a competição com Oswald de Andrade pela liderança paulista do movimento modernista) e de seus engajamentos culturais de monta, o que procurei analisar em meu livro.

 


Retrato de Mário. Anita Malfatti, 1923 | Reprodução

 

Todos os modernistas reúnem trajetórias incríveis. Por que você escolheu investigar esse papel central de Mário? Como se estabelece sua relação, sua admiração com essa figura fascinante da cultura brasileira? 
Eu pretendia entender melhor os agentes que contribuíram para a institucionalização da cultura no Brasil. Por isso cheguei aos modernistas. A escolha por Mário de Andrade ocorreu, de certo modo, após algumas leituras de sua correspondência, que o poeta e romancista guardou e que estão custodiadas no IEB-USP. As cartas são cativantes e, como documento, permitem um estudo crítico sobre o modernismo. Na elaboração do projeto, li alguns comentadores e a apreciação geral mostrava um autor e pensador multifacetado, polígrafo, sistemático e arguto. A verve da pesquisa desbravadora era uma marca distintiva dele, que se preocupava com a cultura popular de um modo único. A ideia presente em um de seus poemas, "sou trezentos, sou trezentos e cinquenta", talvez seja a sua marca característica e a mais lembrada. Esses pontos foram me direcionando para a escolha de Mário de Andrade, mais do que Oswald ou as demais figuras modernistas. Por tudo isso, o que é mais impressionante no autor de Macunaíma, para além desse livro, se concentra em dois aspectos: a quantidade de áreas de criação cultural em que se envolveu (em muitos casos de modo inédito no Brasil) e a guarda documental que concretizou, mediante obras artísticas e correspondência, esta última por certo a mais destacada. Qualificar Mário de Andrade nesta posição epicentral, como faço, decorre desse pluralismo e permite uma abordagem sociologicamente orientada para compreender sua genialidade fora da ideia de um "gênio incriado", porque as condicionantes sociais estão constantemente em operação. Por outro lado, abordá-lo relacionalmente, como também o faço dentro do Grupo dos Cinco e identificando as interdependências entre eles, permite uma investigação que acrescenta dados às abordagens de linha biográfica. Essa foi a minha intenção: contribuir para o estudo do modernismo no Brasil.

 

*Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.

 

Veja também:

Indepenência, modernismo e livros, muitos livros | publicados sob o selo Diversos 22, títulos inéditos e reedições refletem dois acontecimentos-chave na trajetória do país

 

Serviços

Lançamento do livro Mario de Andrade, epicentro
Bate-papo com o autor Mauricio Trindade da Silva e mediação do jornalista e pesquisador Pedro Varoni 
Dia 23/6, quinta, às 19h30
Sesc São Carlos | Av. Comendador Alfredo Maffei, 700 - Jardim Sao Carlos, São Carlos - SP, 13560-649
Local: Teatro | Grátis - Retirada limitada a 1 ingresso por pessoa, com 1h de antecedência. Lugares limitados. 

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