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postado em 06/06/2022

Guru do desbunde

O estudante de filosofia Luiz Carlos Maciel. Porto Alegre, c. 1950 | Foto: acervo pessoal LCM
O estudante de filosofia Luiz Carlos Maciel. Porto Alegre, c. 1950 | Foto: acervo pessoal LCM

      


Textos reunidos em Underground: Luiz Carlos Maciel apontam para a atualidade das ideias difundidas pelo principal intelectual da contracultura brasileira

Por Gustavo Ranieri*

 

Na contemporaneidade, até aqueles que dizem se posicionar fora da cultura de massa, circulam de alguma forma dentro dela, uma vez que se valem dos mesmos recursos digitais que caracterizam este início de século, como as redes sociais, por exemplo. Mas isso não significa que a contracultura tenha deixado de existir. E uma das melhores formas de entendê-la é revisitar os pensamentos daquele que foi um de seus maiores intelectuais: o filósofo, escritor e jornalista brasileiro Luiz Carlos Maciel (1938-2017). 

Isso é possível com o lançamento de Underground: Luiz Carlos Maciel, uma coletânea de ensaios publicados por ele entre os anos 1960 e 1970 em jornais, livros de sua autoria e, especialmente, em sua coluna homônima no célebre O Pasquim. A publicação tem organização de Claudio Leal, jornalista e mestre em teoria, história e crítica do cinema pela Escola de Comunicaçõe e Artes da Universidade de São Paulo - ECA USP. Boa parte do trabalho foi realizado ainda na presença de Maciel, que chegou a acompanhar etapas da seleção de textos e a ler o prefácio escrito por Caetano Veloso, que o conheceu quando ele dirigia espetáculos na Escola de Teatro da Universidade da Bahia.

Para Luiz Carlos Maciel, conhecido também como o “guru da contracultura” ou o “guru do desbunde”, os pensadores e militantes contraculturais eram aqueles ignorados ou descartados pelas universidades, nos anos 1960; os mesmos, como aponta Leal, que hoje são estudados à exaustão em mestrados e doutorados.

“Bob Dylan venceu o Nobel de Literatura. Gilberto Gil está na Academia Brasileira de Letras. A contracultura se estabeleceu como cânone. A sociedade de consumo talvez seja a sua inimiga mais inabalável. Ao mesmo tempo, e de uma forma impensável para militantes da década de 1960, a cultura de massa e as mídias digitais vulgarizaram, positivamente, ideias contraculturais sobre formas harmônicas de estar no mundo, conferindo um alcance inédito a pensadores antissistema. Mas sem ilusões, os benefícios das tecnologias digitais também favorecem o conservadorismo e o extremismo de direita, ampliando, por exemplo, as vozes de negacionistas do Holocausto, racistas, malucos da terra plana e militantes anti-vacina em tempos pandêmicos”, ressalta o organizador.

 

Reprodução do texto Cabelo. Coluna "Underground" foi recordista de cartas no semanário humorístico O Pasquim. Foto: Acervo Jornal O Pasquim.

 

Ainda que escritos há mais de 50 anos, os textos presentes em Underground guardam frescor e facilmente se relacionam aos anseios das gerações atuais. Esse é um dos pontos que Claudio Leal explica na entrevista que pode ser lida a seguir. Nela, ele também fala sobre a contracultura no século 21 e sobre como Maciel observava esses textos escritos por ele décadas atrás.

 

O que é contracultura hoje?
A dificuldade em definir o que seria um gesto contracultural hoje se deve, em grande medida, à assimilação de bandeiras da contracultura por governos e instituições. Em vários países, os movimentos identitários conquistaram leis mais tolerantes em questões de direitos civis, liberdades individuais, diversidade sexual e igualdade racial e de gênero. Com o tempo, as políticas de estado passaram a acolher, não sem protestos e episódios violentos, as pautas de ativistas negros, gays, feministas e pacifistas surgidos no fenômeno histórico da contracultura, nas décadas de 1960 e 1970. A contracultura virou cultura. Os debates sobre a descriminalização da maconha e a denúncia da estupidez da guerra antidrogas sugerem uma derrota parcial do discurso demonizador das drogas. Além disso, houve avanços nos usos medicinais da cannabis e na aplicação de psicodélicos em tratamentos psiquiátricos. Em países democráticos, os legisladores abrandaram as punições a usuários. São inegáveis conquistas da contracultura e de pioneiros como Ken Kesey, Timothy Leary e, no Brasil, de intelectuais como Luiz Carlos Maciel. Apesar do triunfo a conta-gotas dessas pautas, a extrema direita continua a mobilizar o imaginário de libertação pessoal da contracultura, ligando-o a um quadro patológico de perversões.

E o que é ser da contracultura atualmente?
Vejo a permanência de conexões históricas com a contracultura. As rebeliões juvenis dos anos 1960 embutiam uma resposta existencial à ameaça de extinção numa guerra nuclear. Isso estimulou a busca por saberes de xamãs e povos originários, algo marcante nos poetas beats. Agora, as mudanças climáticas dão bons argumentos a quem teme o fim do mundo e exigem um retorno a saberes marginalizados pelo capitalismo. Os indígenas Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Sônia Guajajara são contracultura.

 


Falecido em 2017, Maciel acreditava que os textos presentes no livro Underground
farão efeito sobre os rebeldes contemporâneos. Foto: 
Rodrigo Sombra.

 

Em sua opinião, quais são os pontos principais que não somente entrelaçam os textos presentes em Underground, mas dão certo frescor a eles ao serem organizados em um livro como esse?
Na organização do livro, procurei contemplar o pensamento contracultural de Luiz Carlos Maciel em sua diversidade temática, incorporando textos que nunca frequentaram suas antologias de 40 ou 50 anos atrás. São ensaios e artigos que enfocam o teatro de vanguarda de Nova York, os hipsters, o Teatro Oficina, Oswald de Andrade, o cinema novo de Glauber Rocha e o tropicalismo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Torquato Neto, além do surgimento dos Novos Baianos. Na antologia, começamos por textos que prenunciam sua sensibilidade contracultural, embarcamos nos escritos da contracultura e chegamos a reflexões posteriores sobre o fenômeno. Os 70 textos de Underground preservam o frescor original porque foram escritos numa prosa direta, sem pedantismo, e porque abordam questões perenes da política, do sexo, das religiosidades, da vida em comunidade e da sensibilidade corporal, mobilizando autores racionalistas e irracionalistas. Três fases muito claras da contracultura – hedonismo, politização e misticismo profético – estão presentes no conjunto de textos.

Os textos de Underground evidênciam que alguns dos anseios, dúvidas e conflitos existenciais que alimentavam a contracultura dos anos 1970 continuam sem um "desfecho", mas perpetuam nas novas gerações. Como você observa isso?
O desfecho violento do filme Easy Rider (1969), de Dennis Hopper, explicitou o quanto o conservadorismo norte-americano espreitava as ilhas de liberdade da contracultura. Quem explorou a expansão da consciência, a vida comunitária ou a libertação sexual logo reconheceu os limites sociais, políticos e econômicos para as mudanças do ser. A contracultura brasileira lidou ainda com a repressão de uma ditadura militar, que engrossou a tortura e a perseguição aos dissidentes depois de dezembro de 1968. Visto como um guru do desbunde, Maciel alertava que a ameaça fascista podia estar no centro da própria experiência de liberdade extrema. Apesar de todas as conquistas históricas de que lhe falei, o sentimento de regressão das utopias se alastrou nas últimas décadas e ganhou cores melancólicas durante a pandemia. No Brasil, um governo neofascista demonstra que o caminho é longo.

Em sua opinião, que balanço o próprio Maciel faria sobre esses textos escritos 50 anos atrás e lidos nesse 2022 pós-pandêmico? E qual balanço você faz como organizador?
Maciel acompanhou um bom pedaço da seleção de textos e leu o prefácio de Caetano Veloso, mas não viu a conclusão da pesquisa e edição de Underground, sua antologia de textos mais abrangente. Em 2017, perto de morrer, ele andava triste com a virada autoritária do Brasil e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Não chegou a assistir à vitória de Jair Bolsonaro. Ao contrário de outros companheiros de geração, que migraram para a direita e se voltaram contra o ideário de juventude, Maciel se manteve na esquerda. Seu último texto, “Memórias do futuro”, presente nesta coletânea, fala da urgência da reabertura de um horizonte utópico. “A questão que nos confronta hoje é a necessidade de novas lembranças do futuro, de informação sobre nosso destino através de um processo semelhante ao que operou nos anos 1960”, escreveu Maciel. No início do projeto, ele confiava no efeito de seus textos sobre os rebeldes contemporâneos. Como se sabe, sua coluna em O Pasquim se tornou um fenômeno geracional, a recordista de cartas no semanário humorístico. Eu acredito na permanência desse fascínio. A ascensão de ideias e lideranças fascistas, nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, confere uma atualidade incômoda a esses textos da contracultura, um movimento internacional que confrontou os entraves à felicidade coletiva e pessoal. Maciel ainda nos ajuda a pensar nesses impasses.

 


Trecho do livro

 

*Gustavo Ranieri é jornalista e escritor

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