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Tecendo histórias

Foto: Paulo Liebert
Foto: Paulo Liebert

Enio Rodrigo B. Silva (1)

Atividade proposta a partir das obras de Arthur Bispo do Rosário (*) e Leonilson (**) como fio condutor para a experiência da fruição artística e para aproximações com a Arte Contemporânea.

Entre 17 de abril e 26 de julho de 2015 a unidade Jundiaí recebeu a exposição Arthur Bispo do Rosário e Leonilson: os Penélope. Para desenvolver a ação educativa, uma equipe de educadores engajou-se na pesquisa e no desenvolvimento de estratégias diversas de mediação da arte para variados públicos.

Entre os diversos desafios condicionados ao papel de educador nessa exposição, estavam o de discutir o tema proposto pelo encontro desses dois grandes artistas brasileiros – o diálogo estético entre Arthur Bispo do Rosário e José Leonilson, cujas obras se situam no bojo do conjunto amplo da Arte Contemporânea – e a aproximação, por meio de atividades de cunho educativo, de um campo por vezes hermético aos diversos públicos atendidos pelo Sesc, em especial aos chamados públicos prioritários, como jovens, crianças e idosos. Partindo de uma das principais características das obras de Bispo e Leonílson – o bordado e a costura, utilizados como suporte estético e expressivo em diversas obras dos dois artistas –, os educadores propuseram a oficina intitulada “Costurando memórias, tecendo histórias”, desenhada especificamente para o público idoso presente na unidade do Sesc Jundiaí. A atividade, assim como a exposição, partia do mito grego da Penélope de Ulisses, que, aparentemente viúva, esperava o amado voltar de seu périplo, fugindo do assédio de novos pretendentes à sua mão com uma promessa: Penélope dizia que se decidiria por um novo casamento assim que terminasse de bordar um sudário para o marido sumido. O que os pretendentes não sabiam, porém, é que ela bordava o sudário de dia e desfazia os pontos à noite, ganhando tempo para que Ulisses voltasse de sua longa viagem, o que ocorreu muitos anos depois. Em seguida, palavras ativadoras – retiradas das obras de Bispo e Leonilson – serviam de provocação para o início das histórias pessoais, verbalizadas e compartilhadas no grupo de idosos que participavam da atividade. Aos poucos, essas histórias se transformaram em intervenção poética utilizando um rolo de tecido que se desdobrava em uma espécie de pergaminho das memórias passadas, presentes e futuras. Ao final da exposição, ao contrário de Penélope, o manto/mural não foi descosturado, mas persistiu como resíduo estético, eternizando uma experiência que poderia ter se encerrado na efemeridade. 

Transversalidades
A principal característica da oficina “Costurando memórias, tecendo histórias” foi a transversalidade da proposta, que de forma positiva conseguiu trazer para o público com mais de 60 anos elementos diversos. Aproximando-os de personagens mitológicos (Penélope e Ulisses) e reais (Bispo do Rosário e Leonilson), trazendo à tona a história dos dois artistas – ambos falecidos, ambos com histórico de doenças e de percepções singulares da realidade à sua volta – e desvelando os processos pelos quais essa dupla de “penélopes” (bordadores à espera de um final, feliz ou não, para suas histórias) superou suas mazelas por meio de um constante e obsessivo fazer artístico. O bordar, é necessário salientar, também foi um elemento de ligação para a ação, conforme observaram os educadores posteriormente. Em um primeiro momento estabeleceu-se um elo emocional com Bispo e Leonilson, dois homens que se apropriaram de um fazer comumente ligado ao feminino e o utilizaram para dar vida às suas obras. Depois, por ser um elemento de reconhecimento entre as pessoas daquele grupo da atividade, que se enxergavam iguais nas habilidades e memórias. E, finalmente, por proporcionar um sentimento de pertencimento àquele momento, e orgulho com o resultado final partilhado no mesmo suporte – um manto –, onde as costuras de todos se encontravam para ali permanecer em um tempo para o qual não se via um fim, virtualmente eterno, como há de ser o tempo das obras de arte. Foi possível perceber que, ao final da atividade, Bispo, Leonilson e os idosos ali presentes finalmente dialogavam, por meio das linhas costuradas no manto.

Forma-ação
Uma análise importante de todo o processo relatado diz respeito ao time de educadores que desenhou inicialmente a oficina e acompanhou os grupos de idosos em três ocasiões diferentes. O modelo utilizado durante a exposição “Arthur Bispo do Rosário e Leonilson: os Penélope” contou com um time de dez educadores formados – dois deles em posição de supervisão – e dois educadores em formação, estudantes universitários. Entre as vantagens desse modelo está a rápida curva de aprendizado e adaptação dos educadores formados, o que resultou em ações propositivas como oficinas para públicos específicos – idosos, mães e bebês e crianças, por exemplo – em tempo muito curto após a inauguração da exposição (algo que ocorreu, vale ressaltar, concomitante à inauguração da unidade Jundiaí). A equipe formada tinha característica multidisciplinar: fotógrafos, professores do ensino básico, músicos, educadores infantis, artistas plásticos e um matemático. Multidisciplinaridade que se refletiu na multiplicidade de respostas para resolução de problemas. O resultado dessa atividade, portanto, deu--se nas potencialidades desenvolvidas a partir 
de uma leitura interdisciplinar e transversal, com base na valorização dos indivíduos e com foco no acolhimento, na sociabilidade, na afetividade, no respeito à alteridade e na autonomia do público.

Considerações finais
É importante destacar que o trabalho desenvolvido com o público idoso, com viés educativo e no âmbito das exposições de artes visuais, pouco ou quase nada tem de diferente daquele desenvolvido com qualquer outro público. A profundidade das discussões, a problematização dos conteúdos apresentados, a análise estética das obras, o estímulo ao olhar sensível, mas ao mesmo tempo crítico, são os mesmos. O diálogo com o visitante, o entendimento dos seus interesses, a escuta atenta e aberta, a percepção sobre quais pontos fazem mais sentido para ele são as condutas esperadas dos educadores que se propõem a fazer um trabalho significativo. Assim, o diferencial do trabalho a ser desenvolvido com o público idoso está essencialmente no acolhimento, que transparece à medida que o educador entende as características mais comuns – mas não exclusivas nem fatídicas – dessa população, que pode girar em torno das questões de saúde como mobilidade reduzida, baixa visão ou audição, cansaço, entre outras; ou das suas condições familiares e afetivas, como relação com filhos e netos, viuvez, relações de amizade; ou ainda das suas dinâmicas cotidianas, seus horários de afazeres, tempo livre, possibilidade de locomoção, etc. Enfim, quando se olha tentamente para esse público, e se entende suas necessidades e comportamento, a possibilidade de desenvolver um trabalho aprofundado e significativo – nesse caso, em torno das artes visuais – é muito maior,pois as barreiras são desviadas ou derrubadas,
e o foco da ação mantém-se preservado. Neste sentido, o trabalho desenvolvido a partir da exposição “Arthur Bispo do Rosário e Leonilson: os Penélope” buscou criar conexões com aqueles velhos participantes e os artistas em questão, sem desconfigurar a relação com as obras, mas, pelo contrário, apropriando-se da potência da arte a fim de adentrar as questões fundamentais para a transformação do olhar para si mesmo e para o mundo. Abaixo o relato feito por um dos educadores ao final da atividade, e que pode auxiliar a vislumbrar esta experiência.

“O acolhimento se fez com a apresentação de cada participante, com duração de 30 minutos. Para introdução à história da Penélope
de Ulisses, realizamos uma contação de história com interpretação em primeira pessoa, misturando memória e emoção, temas propostos pela oficina. Antes de iniciar a prática da costura realizamos um pequeno alongamento de mãos e braços; como jogo interativo e ferramenta de criação entregamos individualmente e em ‘segredo’ papéis contendo a palavra ‘travessia’. Assim, a costura começou com este tema. A escolha da palavra ‘travessia’ se dá como estopim para a criação por conter similaridade tanto com o Arthur Bispo quanto com Leonilson, como viagens, preparação para a morte, o mar, etc., direcionando dessa forma as memórias individuais para os diálogos com a exposição ‘Os Penélope’. Ao final da atividade, todas descobriram que a palavra ‘travessia’ havia sido o trampolim de criação em comum, o que foi uma surpresa para o grupo, assim como gerou a percepção do quanto podem ser diferentes as visões e criações a partir de um mesmo ponto de partida, pois, apesar do mesmo início, o processo criativo individual remeteu a diferentes lembranças e histórias, gerando diferentes resultados"

 

(*) Arthur Bispo do Rosário (Japaratuba/SE 1911 - Rio de Janeiro/RJ 1989). Artista visual. Em missão que considerava divina teceu, bordou, colou, juntou, agregou, miniaturizou, inventariou o mundo.

(**)José Leonilson Bezerra Dias (Fortaleza/CE 1957 - São Paulo/SP 1993). Sua obra inclui pinturas, desenhos, bordados e algumas esculturas e instalações.

 

(1) Designer gráfico formado pela Universidade Estadual Paulista (FAAC/Unesp), Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (PGEHA/USP). Animador cultural no Sesc Jundiaí. E-mail: enio@jundiai.sescsp.org.br