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Escritora tardia, mas a espera valeu

Em capa de livro,  Zélia Gattai ao lado de Jorge Amado / Foto: Fernando Vivas/Folhapress
Em capa de livro, Zélia Gattai ao lado de Jorge Amado / Foto: Fernando Vivas/Folhapress

Por: HERBERT CARVALHO

Em 1976 Jorge Amado se retirou para uma chácara nas imediações de Salvador, onde desfrutaria do isolamento necessário para a gestação de mais um romance, Tieta do Agreste. Entediada, a mulher que se tornara sua companheira em 1945 – quando ambos, militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), se conheceram e se apaixonaram – decidiu colocar no papel, na forma de um conto, a pedido dos filhos, uma divertida história de sua infância que se tornara familiar a eles tantas foram as vezes que ela a relatou.

A tentativa de escrever uma ficção foi logo abortada a conselho do marido que lhe disse com conhecimento de causa: “Jogue o conto fora e escreva suas memórias de infância e adolescência. Descreva a vida em tua casa, a família, os amigos, os parentes, a rua, o bairro, a vinda dos avós e pais para o Brasil, os do lado paterno – anarquistas florentinos – para a famosa Colônia Cecília; os do lado materno, católicos vênetos, que emigraram para substituir os escravos nas plantações de café. E fale das reuniões proletárias, os primeiros automóveis chegados a São Paulo, o Brás, o Bexiga, tudo que viveste e de que guardas memória. Farás um livro único, um depoimento singular.”

Assim, durante três anos, aos poucos, Zélia Gattai foi achando brechas no cotidiano de mãe, dona de casa, fotógrafa e secretária – funções nas quais registrava em imagens momentos importantes da vida do marido e passava a limpo seus originais –, para iniciar, aos 63 anos, uma carreira de memorialista, designação que preferia à de escritora, embora tenha nos deixado também um romance (Crônica de uma Namorada) e três livros infantis. A primeira obra de uma dezena que viria a público durante três décadas (de 1979 a 2008), integralmente dedicada ao gênero “memórias” (modelo de muito sucesso na tradição inglesa e francesa, mas de pouca evidência e presença em nossa realidade editorial, no dizer da professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, Lilia Moritz Schwarcz) foi Anarquistas, Graças a Deus.

A consagração da autora foi imediata: sucederam-se as edições, traduções e a transposição do livro para o seriado homônimo de enorme sucesso na Rede Globo, dirigido por Walter Avancini. Embora tivesse se casado pouco antes com o homem que a recém-aprovada Lei do Divórcio lhe permitiu oficialmente chamar de esposo – já que ambos eram desquitados e amigados, como então se dizia – ela recusa a muleta do sobrenome Amado em sua caminhada literária. Zélia Gattai, o nome de solteira que os pais colocaram na caçula de seus cinco filhos, há cem anos, passa a simbolizar a saga da brava gente que atravessou o oceano em busca de seus sonhos.

Um desses casos extremos em que a vida pessoal e a literatura estão completamente entrelaçadas, os livros da escritora nascida em São Paulo e falecida em Salvador, acompanham sua trajetória e a de seu ilustre marido, compondo, ao mesmo tempo, um painel das lutas políticas e sociais do século 20. As aventuras começam mesmo antes, na década de 1880, quando um italiano de nome Giovanni Rossi – misto de cientista, botânico e músico – encontra-se em Milão com o compositor brasileiro de óperas Carlos Gomes, e por intermédio dele entrega ao imperador Pedro II um pedido de terras, para nelas instalar uma “colônia socialista experimental”.

Embarca nessa aventura o avô paterno de Zélia, Francesco Arnaldo Gattai, operário de ideias anarquistas, então difundidas na Europa pelos russos Bakunin e Kropotkin. Com ele viajam a mulher e cinco filhos, entre os quais Ernesto, então com quatro anos de idade, pai e personagem principal da futura escritora em seu livro de estreia. A família integra o grupo de 150 pioneiros idealistas que parte de Gênova em 1890, quando o Brasil já se tornara uma República e o monarca que lhes concedera 300 alqueires de terras incultas e desertas no estado do Paraná amargava o exílio. Sem qualquer apoio oficial e hostilizada pela população católica – que se indignava com o ateísmo daqueles livres pensadores, adeptos, ainda por cima, do amor livre – a Colônia Cecília teve duração efêmera. Tanto que, dois anos após a chegada, os Gattai já estavam radicados em São Paulo, onde o jovem Ernesto conheceria Angelina Da Col.

Agruras familiares

A mãe de Zélia também viera criança da Itália, só que da região do Vêneto, de onde a família católica chefiada por Eugênio Da Col emigrara para colher café, na condição de colonos, em uma fazenda do interior de São Paulo. Embora para destinos diferentes, os Gattai e os Da Col seguiram para o Brasil no mesmo navio Città di Roma, nome que daria título a outro dos livros de memória de Zélia, por meio do qual retomaria as lembranças familiares de antes da imigração.

Em Anarquistas, Graças a Deus, a autora tangencia as origens, para focar o relato em sua infância e adolescência. A partir desse ângulo privado, surge a São Paulo das três primeiras décadas do século 20, onde os cinemas e automóveis convivem com carroças puxadas a cavalo e o proletariado imigrante se reúne nas Classes Laboriosas, salão de festas e conferências políticas frequentado por Ernesto Gattai e sua família. O título escolhido, contraditório no próprio enunciado, ilustra o paradoxo do patriarca que exigia virtude das filhas e se adaptava ao ambiente religioso de uma cidade ainda provinciana e moralista: “Seu anarquismo tinha limitações, graças a Deus!”.

Escrito na forma intimista de um diário, só que sem datas ou cronologia rígida, o texto surge como lembrança de um momento que se foi, mas é redigido no tempo presente. “Mistura temporalidades como quem alterna realidades”, resume a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, para quem “o leitor, bem acompanhado, visita uma São Paulo de outrora, em um momento marcado por utopias de toda sorte”.

Testemunho das transformações urbanas da metrópole, o livro começa descrevendo o casarão alugado pelo pai em 1910, na Alameda Santos, número 8, em um terreno amplo dotado de enorme barracão, ligado a uma antiga cocheira, com entrada também pela Rua da Consolação. Impossível melhor localização para a oficina mecânica de Ernesto Gattai, que além de consertar os carros também os pilotava em corridas por estradas precárias, causa de um acidente que lhe custa a vida de um ajudante, e quase também a sua própria. A saga termina quando, na década de 1940, a velha casa é demolida, para dar lugar a um dos muitos espigões que pontificam na região da Avenida Paulista.

Ainda no livro inaugural, Zélia conta como o anarquista Ernesto Ristori – deportado durante o Estado Novo (1937-1945) – emprestara-lhe Cacau, obra também iniciante de um certo escritor baiano. Ela estava então casada com Aldo Veiga, intelectual militante do PCB, e era mãe do menino Luís Carlos – assim batizado como milhares de outros, na época, em homenagem a Luís Carlos Prestes, O Cavaleiro da Esperança, conforme o intitulara Jorge Amado na biografia que escrevera do líder comunista, preso desde 1936 – quando teve a oportunidade de conhecer pessoalmente aquele que seria o responsável por colocar a Bahia no mapa literário do Brasil e do mundo.

O encontro, ocorrido durante o I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, em 1945, é descrito por Zélia Gattai em Um Chapéu para Viagem, seu segundo livro, publicado em 1982. Na introdução, ela explica porque continuava a escrever: “Aos que me perguntavam quando publicaria novo volume de memórias, respondi que com Anarquistas, Graças a Deus iniciara e encerrara minha carreira literária. Era essa realmente minha intenção. Acontece que em 1981 comemorou-se o cinquentenário da publicação do primeiro romance de Jorge, e em agosto de 1982 ele completaria 70 anos de idade. Ocorreu-me a ideia de homenageá-lo narrando um pouco de sua vida, sobretudo de sua infância, reproduzindo histórias ouvidas da boca de seus pais, Coronel João Amado de Faria e dona Eulália Lea Amado, seu João e Lalu, duas pessoas extraordinárias”.

Ao narrar o período inicial de sua vida com Amado, entre 1945 e 1948, ela descreve também as agruras familiares nos estertores da ditadura do Estado Novo: o pai anarquista preso durante mais de um ano e que não resistiu à febre tifoide que o acometeu logo após ter saído da prisão, faleceu aos 54 anos; a mãe, viúva, teve seus depósitos bancários bloqueados e em seguida confiscados em razão do Brasil estar em guerra contra a Itália. E teve a circulação clandestina dos exemplares de Vida de Luiz Carlos Prestes, el Caballero de la Esperanza, lançado na Argentina, em língua espanhola.

A dona do baile

Sucedem-se a volta dos exilados, entre os quais Jorge Amado, a anistia aos presos políticos e a libertação de Prestes, o comício do líder do PCB no estádio do Pacaembu e a eleição da bancada comunista à Assembleia Constituinte de 1946, que coloca o homem ao qual acabara de se ligar como um dos deputados mais votados. O casal parte então para o Rio de Janeiro, onde nasce o filho João Jorge. A felicidade conjugal, entretanto, é abalada, da mesma forma que a recém-instalada democracia brasileira se verga perante a tempestade da Guerra Fria: em 1948 o PCB é banido e seus parlamentares são cassados.

Procurado pela polícia, Jorge Amado segue outra vez para o exílio. Zélia em breve irá encontrá-lo, no mesmo porto de Gênova de onde seus antepassados haviam partido para o Brasil muitas décadas atrás. Quando subira pela primeira vez num avião, em São Paulo, ao lado do companheiro, para conhecer os sogros que os esperavam no Rio de Janeiro, então a capital do país, ela usava um chapéu, considerado indispensável na época para compor a elegância feminina nas ocasiões solenes. Agora, na despedida, a atriz Maria Della Costa a presenteia com outro modelo: “Com este você embarca e desembarca – determinou a conselheira. Precisa estar bem bonita no encontro com Jorge.”

A partir destes dois primeiros livros, os seguintes deixaram de ter explicação da autora: seus editores cobravam-lhe novas desovas, de olho nas vendas em alta e sabedores de que, com muito a contar, ela abraçara em definitivo, ainda que de modo tardio, a carreira literária. “Um Chapéu para Viagem mostrou que o sucesso do primeiro livro não foi acidental. A literatura não era uma circunstância ou um divertimento, estava em seu sangue”, avalia o crítico José Castello no ensaio Zélia, Historiadora do Amor.

Dois relatos nos trazem reminiscências das andanças do casal pelo mundo, até que as condições políticas possibilitassem o retorno de Amado ao Brasil, no início dos anos 1950. O primeiro é Senhora Dona do Baile, título extraído da crônica sobre um banquete na Romênia durante o qual o presidente do país a tira para dançar, ao som de uma orquestra cigana. “Rodopiava acompanhando meu par, sem errar o passo, em meio à roda que se formara em nossa volta, na alegria da polca, sentindo-me a própria senhora dona do baile”.

Pelas páginas que descreve os anos de 1948 e 1949, desfilam escritores e poetas como o russo Ilya Ehrenburg, o cubano Nicolás Guillén e o chileno Pablo Neruda, além de pintores como Picasso e Marc Chagall, todos envolvidos, na época, com a campanha pela paz mundial e a interdição das armas atômicas. Nesses dois anos Jorge e Zélia se estabelecem em Paris, onde ela estuda língua e civilização francesa, na Sorbonne. Mas viajam muito e colecionam histórias pitorescas, como a visita a um museu soviético para ver o berço em que dormira Joseph Stalin, ou o pesado casaco de pele comprado pelo baiano em Moscou, e logo apelidado de Encouraçado Potenkin.

Ao final, uma ingrata surpresa: são acordados em uma madrugada pela polícia francesa e informados de que dispunham de apenas 15 dias para deixar o país. Uma violência só reparada em 1984, quando o presidente François Mitterrand condecora Jorge Amado com a Legião de Honra.

Da França, eles fixam residência nos arredores de Praga, capital da então Tchecoslováquia, país que se dividiu em dois após a queda do Muro de Berlim. Ali, na localidade de Dobris, onde nasceu a filha Paloma, em 1951, eles passam a viver num castelo que o governo socialista expropriara da nobreza aliada aos invasores nazistas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, para destiná-lo a moradia e local de trabalho de escritores nacionais e estrangeiros. O título da obra sobre esta etapa do exílio, Jardim de Inverno, tanto se refere a uma dependência do castelo como, em sentido figurado, aos países submetidos ao dogma do stalinismo, nos quais havia, nas palavras de Zélia, “um medo que podia tocar-se com a mão”. “O herói de ontem é o espião de hoje. O ministro de hoje é o sentenciado de amanhã”, resume Otto Lara Resende na orelha do livro.

Rio Vermelho

Em 1952 os dois, ainda militantes do PCB, recebem autorização da direção do partido para retornarem ao Brasil. Durante os dez anos seguintes, instalados no apartamento dos pais de Jorge Amado, no Rio de Janeiro, eles se dedicam a criar os filhos pequenos, vivenciando as contradições do país que deixava de ser agrário e rural para se industrializar e urbanizar rapidamente. Nesse período ocorrem a morte de Stalin e o afastamento de levas de intelectuais dos partidos de esquerda em todo o mundo.

No Brasil, aproveitando o racha que faz surgir o Partido Comunista do Brasil (PC do B) por parte dos dirigentes que não aceitam o relatório de Kruschev sobre o stalinismo, Jorge e Zélia se afastaram da militância. Enquanto ele retoma a carreira de escritor com o livro que será um sucesso planetário – Gabriela, Cravo e Canela –, será a vez dela retribuir as atenções que recebera na Europa, ciceroneando personalidades desse continente em giros pelo Brasil. É assim que ela testemunha, e conta no livro Chão de Meninos, um maravilhado Jean-Paul Sartre exclamar, diante da arquitetura de Brasília: “Depois da Renascença, nada se fez de mais belo”.

O sexto livro de memórias da autora, que conduz para o desfecho a saga de sua vida, é A Casa do Rio Vermelho, que nos traz as histórias de quatro décadas da família nesse bairro popular, distante do centro de Salvador, onde o casal buscou a paz junto aos netos e amigos, depois de tanto perambular pelo mundo. Para lá eles se mudaram no início da década de 1960, quando o Rio de Janeiro os assustara com os primeiros sinais da violência que mais tarde se tornaria avassaladora. A capital da Bahia, ao contrário, era então uma pacata cidade com menos de 500 mil habitantes.

“Do terraço da casa no alto de uma colina, podíamos ver o mar em toda a sua grandeza, a Igreja de Santana e o pequeno porto de pescadores, de onde, todo dia 2 de fevereiro, sai a procissão de barcos, levando os presentes que o povo oferece a Yemanjá”, de acordo com a descrição de Zélia. O marido, que vendera à Metro Goldwyn Mayer (MGM) os direitos autorais de Gabriela, anunciara rindo: “Comprarei essa casa com o dinheiro do imperialismo americano”.

Em Navegação de Cabotagem – Apontamentos para um Livro de Memórias que Jamais Escreverei, lançado em 1992, é Jorge Amado quem resume o final da epopeia, em texto transcrito na contracapa do livro da mulher, abaixo da foto em que aparecem abraçados: “Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida!, na medida de nosso desejo, no ritmo de nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu. Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira. Aqui, neste recanto do jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento.”

Para ele, a hora chegou em 6 de agosto de 2001. Um ano depois, Zélia é eleita para a Academia Brasileira de Letras e ocupa a mesma cadeira 23 que desde 1961 pertencera a Jorge Amado. Depois de mais de meio século de vida em comum, suas figuras literárias também se misturam, marcadas pela mesma paixão de viver para contar.

Sua morte ocorre em Salvador, em 17 de maio de 2008, quatro anos após lançar o derradeiro Memorial do Amor, prefaciado pela filha Paloma Amado: “Este livro, que Zélia Gattai terminou de escrever aos 88 anos, em plena forma de sua espantosa juventude, foi inspirado na saudade, no amor, na amizade e na generosidade. Nele encontramos tudo isso elevado à sua máxima potência, contado da mesma forma simples e direta que marca sua obra.”