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Turbulência em pleno voo

Sanovicz: “Em 2016, o déficit de caixa poderá ser superior a R$ 12 bilhões” / Foto: Divulgação
Sanovicz: “Em 2016, o déficit de caixa poderá ser superior a R$ 12 bilhões” / Foto: Divulgação

Por: CARLOS JULIANO BARROS

Entre 2002 e 2012, a aviação comercial brasileira voou em céu de brigadeiro. O número de passageiros mais do que triplicou, tendo ultrapassado a expressiva marca de 100 milhões por ano. O tíquete médio teve redução de mais de 50% e o transporte aéreo definitivamente se transformou em um modal de massa. Porém, a crise econômica vem obrigando as empresas do setor a fazer um pouso forçado. “A aviação é reflexo da atividade econômica do país”, define Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), entidade que representa as quatro companhias que dominam o mercado doméstico nacional: Tam, Gol, Azul e Avianca.
Aos 55 anos, Sanovicz divide seu tempo entre a presidência da Abear e a carreira de professor do curso de Lazer e Turismo na Universidade de São Paulo (USP). Religiosamente nos fins de semana, desce a serra em direção a Santos, onde foi criado e cursou a faculdade de história. Nesta entrevista exclusiva concedida à reportagem de Problemas Brasileiros na sede da Abear, na capital paulista, Sanovicz fala sobre os desafios do setor aéreo e elege os dois principais obstáculos a serem superados: a redução do preço do querosene de aviação – o combustível das aeronaves – e a retirada do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) da composição dos custos das passagens.

Problemas BrasileirosO Brasil atravessa uma forte desaceleração econômica. No setor aéreo, as empresas tiveram um déficit de caixa de R$ 1,9 bilhão em 2014, e R$ 7,3 bilhões em 2015. Em 2016, esta queda pode ser superior a R$ 12 bilhões. O que esperar diante desse quadro?
Eduardo Sanovicz – A aviação é um reflexo da atividade econômica do país. Sempre. Isso é uma característica deste setor no mundo inteiro. No Brasil, aproximadamente, 65% da ocupação dos voos se referem a passageiros viajando a negócios ou para participar de algum evento. São os chamados “passageiros corporativos”. Os outros 35% dizem respeito a passageiros que viajam a lazer, para passar férias, visitar a família ou cuidar da saúde. O volume de passageiros corporativos, ao longo de 2015, sofreu uma queda de 40%. E esse tipo de viajante tem uma característica especial: ele compra a passagem muito perto da data de viagem, em cima da hora e, por isso, tem um tíquete médio mais alto. Portanto, quando isso deixa de acontecer, a capacidade do setor da aviação de gerar receita cai muito. Além disso, as empresas são de aviação regular, ou seja, os aviões têm de levantar voo, independente de ter um, dez ou cem passageiros. As empresas aéreas até desenvolveram um conjunto de ações promocionais para tentar colocar passageiros de lazer no lugar de passageiros corporativos. Então, nos primeiros meses de 2015, o esvaziamento não foi notado porque continuava tendo gente a bordo. Mas a qualidade da receita vinha se deteriorando. Porém, no segundo semestre de 2015, o público em geral começou a rever a vontade de viajar. Todo mundo vem pisando no freio. O dado real é que o valor do tíquete médio caiu e a ocupação também.

PBEsses passageiros corporativos estão substituindo as viagens por reuniões por telefone e internet?
Sanovicz – Essa coisa de web conference vale mais para a área de eventos. Mas o problema vai além disso. Quando uma determinada empresa suspende a operação que faria em outro estado, seus funcionários deixam de viajar. Reforço novamente que a aviação é a cara da economia do país. Quando a economia avança, o crescimento da aviação vai além do crescimento do [Produto Interno Bruto] PIB. Quando a economia se retrai, a queda da aviação vai além da queda do PIB.

PBApesar da crise, até julho de 2015, o setor acumulava 22 meses seguidos de expansão na oferta e na demanda por passagens aéreas. Por que isso não se traduziu em lucro para as empresas?
Sanovicz – Nós vivemos um período muito positivo de 2002 até 2012. Em 2002, houve a liberação das tarifas. Isso se deu num ambiente muito competitivo, com quatro empresas aéreas disputando o mercado doméstico. É mais do que no mercado norte-americano, em que há três empresas concorrendo no setor. E isso aconteceu num momento em que o Brasil experimentou um período bastante longo de inclusão social, de crescimento de renda e de emprego. Assim, a aviação foi de 30 milhões de passageiros por ano para mais de 100 milhões. Esse processo de crescimento se estendeu até 2012. Em 2013, começamos a sentir os primeiros sintomas de que as coisas estavam se complicando porque os custos dispararam, principalmente do querosene de aviação, e não temos como acompanhar esse aumento de preços com tarifas. O terceiro resultado da liberação é de que a tarifa média, que era de R$ 580 até 2002, encolheu para R$ 330 em 2013. E, até agora, está girando em torno disso. Então, principiamos a sentir o baque em 2013. No ano seguinte, o cenário no qual os custos disparam, a situação se radicaliza: a economia começa a andar de lado, não há como repor as tarifas e começam as complicações.

PBApesar dessa queda do tíquete médio das tarifas, existe uma percepção do público de que os preços das passagens continuam altos...
Sanovicz – Altos para quem? Essa frase é generalista. Se havia 32 milhões de passageiros voando em 2002 e havia, para ser preciso, 104 milhões de passageiros voando em 2014, e se os dados mostram que de 2010 para frente o transporte de avião superou o transporte de ônibus entre os estados brasileiros, esses dados são os únicos que podem dizer se a aviação se tornou um meio de transporte acessível ou não.

PBMas é possível oferecer tarifas mais acessíveis?
Sanovicz – É possível. Quando a economia começou a fazer água, na virada de 2013 para 2014, já vínhamos há alguns anos, desde 2009, adaptando e trabalhando a aviação para fazer tarifas mais competitivas. Triplicamos o número de passageiros porque baixamos as tarifas, mas não ganhamos um metro quadrado em Congonhas. Imagina que Congonhas triplicou o número de gente entrando e saindo. Imagina se todo mundo tivesse ainda que ir ao balcão do check-in para pegar o bilhete de papel. Como seria? Em vez de chegar meia hora antes, teria que chegar duas horas antes. Gastamos milhões em tecnologia, em informação, em revisão de procedimentos e de gerenciamento das empresas, a fim também de reduzir custos. Mas já deixamos público, aos governos federal e estaduais, quais são as medidas necessárias para que a aviação brasileira possa se equiparar à aviação internacional em termos de custos. Entregamos um serviço de parâmetro internacional, nosso índice de atrasos é menor do que o norte-americano e o de extravio de bagagem é menor do que a média mundial. Só que nós temos custos internacionais maiores por conta de normas regulatórias que só existem no Brasil e da precificação do querosene de aviação – o combustível das aeronaves. Eliminando as distorções nos custos impostos à aviação brasileira, podemos avançar ainda mais na redução das tarifas. Vai ficar muito mais barato? Não, porque andar de avião não é andar de bicicleta. Tem um custo. Nós nos orgulhamos de ter trazido a tarifa média para uma faixa tão barata como US$ 80. E o nosso grande orgulho é ter chegado a 100 milhões de passageiros por ano. Mas chegamos ao limite da nossa capacidade de resolver os problemas sozinhos.

PBComo a recente disparada do dólar afeta as companhias aéreas?
Sanovicz – Em média, 40% dos custos dizem respeito ao querosene de aviação. Ele é pago em dólar, ao câmbio do dia. Embora 81% do querosene de aviação sejam produzidos no Brasil, pagamos como se a totalidade viesse de fora – e em dólar. Essa é uma das distorções.

PBEsse é um problema regulatório?
Sanovicz – É o problema decorrente de uma fórmula definida pela Petrobras e que precisa ser revista urgentemente porque ela onera o passageiro brasileiro e o setor de aviação de maneira injusta. Por que é calculado assim? Porque há quase três décadas, quando a fórmula foi feita, 100% do querosene de aviação vinham de fora. Isso mudou, mas a fórmula não foi alterada. A segunda grande fonte de custo é o leasing [locação financeira ou arrendamento mercantil. O cliente desta modalidade de financiamento geralmente é uma empresa.] das aeronaves. Ele é calculado em dólar e não há o que fazer porque as aeronaves vêm do exterior. Então, quando o câmbio dispara, o impacto nos custos é brutal. Em 2015, o aumento nos gastos foi de 27% enquanto as receitas subiram cerca de 2,5% em relação a 2014. Ou seja,
 a conta não fecha.

PBO governo e o Congresso Nacional vêm discutindo o aumento da participação acionária de investidores estrangeiros em empresas aéreas brasileiras – de 20% para 49%. Inclusive, as quatro grandes empresas que dominam o mercado doméstico já têm operações em parceria com grupos estrangeiros. Qual é a opinião da Abear sobre esse tema?
Sanovicz – Aumentar a participação acionária estrangeira em até 49% é importante, pois vai ampliar e baratear o acesso das empresas nacionais ao capital e nos colocar em um patamar equivalente ao dos mercados internacionais. Mas não é nada que mudará a aviação brasileira, não é uma medida revolucionária. É importante, mas não ganha o jogo. O que muda o cenário é enfrentar as distorções mais graves, como, volto a reafirmar, a precificação do querosene de aviação. E é importante que o público saiba: a passagem aérea que o usuário paga no Brasil tem 40% do seu custo baseado no valor do combustível. A média mundial é 28%. Além disso, quando o passageiro compra uma passagem aqui, paga ICMS sobre o querosene de aviação. O Brasil é o único país do mundo que tem um tributo regional sobre esse combustível. Essa é a segunda grande distorção. Em São Paulo, o imposto chega a 25%. É uma loucura! Muitas vezes, o passageiro entra num avião de São Paulo para Fortaleza e fica bravo porque é mais caro do que viajar para Buenos Aires. A mesma bomba que abastece o avião de Fortaleza abastece o de Buenos Aires. Mas o que vai para Buenos Aires não paga ICMS, é isento. Por quê? Como ninguém no mundo é cobrado por isso, não se pode cobrar aqui de um voo que vai para fora. Então, o avião que voa para Buenos Aires já sai daqui mais barato e, na Argentina, é abastecido com um combustível também mais barato. Só de combustível, a diferença entre o voo que vai para Buenos Aires e o que vai para Fortaleza chega a quase 18%. Aí acontece uma coisa cruel: em vez de incentivar que as pessoas saiam de São Paulo para visitar o Nordeste, essa absurda distorção estimula as viagens para fora do país. Isso joga contra a receita cambial brasileira.

PB Além disso, prejudica o desenvolvimento do turismo brasileiro...
Sanovicz – Claro! E o turismo é uma atividade cujo impacto de geração de emprego e de renda, além do desenvolvimento cultural e de autoestima, é fundamental em regiões do país pobres em industrialização.

PB Paralelamente, há um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional que prevê a possibilidade de as empresas estrangeiras disputarem o mercado de voos domésticos. O que o senhor pensa disso?
Sanovicz – Não há no mundo país onde empresas estrangeiras fazem voo doméstico. Nem aqui, nem nos Estados Unidos, nem na França, nem na Alemanha, em lugar algum. Nos Estados Unidos existem as três majors: American, United e Delta. Aqui temos quatro. O Brasil é um dos mercados mais abertos e competitivos do mundo. Isso é bom para o consumidor.

PBNos últimos anos, o governo federal vem tocando um programa de concessão à iniciativa privada dos principais aeroportos do país. Como o senhor avalia essa medida?
Sanovicz – De maneira positiva. Nós somos favoráveis ao seguinte: o aeroporto tem que ser bom, acessível, confortável e barato. Para nós, se é público ou privado, é o que menos importa. Agora, sejamos realistas: o fato é que os aeroportos privados por concessão têm ofertado serviços de melhor qualidade aos usuários. Portanto, nós somos favoráveis ao programa de concessão e favoráveis à sua continuidade e ao seu aprofundamento. Temos algumas disputas quanto ao modelo de concessão e algumas brechas para o aumento abusivo de preço por parte das concessionárias.

PBSe, por um lado, a concessão dos aeroportos melhorou a infraestrutura, por outro, as companhias reclamam do aumento das taxas cobradas pelas administradoras, que a Abear calcula em 181%. É isso mesmo?
Sanovicz – Sim, pois há taxa que chegou a aumentar 1.800% em relação ao que era cobrado pela [Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária] Infraero. Então, essa política tem que continuar. Ela é boa. É inegável que Guarulhos mudou de cara, que Brasília é outro aeroporto. Esperamos que Confins [Minas Gerais] e Galeão [Rio de Janeiro] sigam no mesmo rumo. Os aumentos abusivos aconteceram em temas dos contratos que não foram regulados adequadamente, foram colocados sem parâmetros. Um dos temas que levamos ao governo é que queremos ter uma participação mais efetiva no debate para definição do modelo dos próximos contratos de concessão nos leilões.

PBAs concessionárias dizem que precisam cobrar tarifas mais altas para cobrir os investimentos feitos na reforma dos aeroportos...
Sanovicz – Cada um vai defender sua posição. A sociedade, o governo e a mídia vão ter que se posicionar. Você falou no início da nossa conversa sobre o sentimento de que a passagem poderia ser mais barata. Pois bem, um dos componentes que formam o preço da passagem é justamente a taxa cobrada pelos aeroportos.

PBO senhor bateu na tecla de que um dos principais gargalos enfrentados pelas empresas aéreas no país é o preço do querosene de aviação. A Abear defende, por exemplo, a isenção de ICMS sobre o combustível. Mas esse tributo é a principal fonte de arrecadação dos governos estaduais. Como é possível equacionar esse problema?
Sanovicz – Nós não somos contra o ICMS apenas porque somos contra o imposto. O que nós defendemos é o seguinte: toda sociedade nos cobra, e é justo que faça isso, que tenhamos padrões de serviço internacionais – e nós temos! Só que não temos padrões de custo e de regulação iguais aos do mercado internacional. Nenhum país pratica um tributo regional sobre o querosene de aviação da ordem que existe nos estados brasileiros e destacadamente, no estado de São Paulo, onde se concentra mais de um terço da aviação de todo o país. Isso impacta diretamente nos preços das passagens. É simples assim. É importante as pessoas entenderem que a aviação virou um transporte de massa e que a população foi para dentro dos aeroportos. Mas não queremos e nem defendemos subsídios. Vamos disputar cada real do nosso negócio com serviço de qualidade. Mas é muito injusto nos cobrarem uma entrega com condições tão adversas.

PBO volume de ICMS que as companhias aéreas pagam por ano é de qual ordem?
Sanovicz – Quase R$ 1,5 bilhão, anualmente. É muito dinheiro.

PBUma das principais bandeiras da Abear é a “liberdade tarifária”. Mas isso já está garantido desde 2002. Essa questão não está resolvida?
Sanovicz – Depende. De vez em quando aparece no Congresso Nacional um parlamentar querendo apresentar um projeto com vistas a impor um teto à tarifa em um determinado estado. O que a experiência pregressa mostra no mundo inteiro? Toda vez que se fixa o teto, sobe o piso. Toda vez que se cria sistemas artificiais de controle de tarifa, o preço acaba mais alto e o consumidor pagando a conta. Estar sempre atento, mostrando as vantagens da liberdade tarifária, é a melhor maneira de garantir que a sociedade se mantenha favorável a uma política que se mostrou benéfica.

PB Quais são as perspectivas do segmento aéreo no Brasil?
Sanovicz – No começo de 2012, fizemos um estudo bastante amplo com o propósito de desenhar o cenário futuro do setor, partindo dos dez anos anteriores. A partir disso, elaboramos algumas estimativas para 2020, e chegamos a três previsões bastante emblemáticas: chegar a 200 milhões de passageiros por ano, dobrar o número de rotas no Brasil e passar de 1,1 milhão para 1,6 milhão o número de empregos na nossa cadeia produtiva. Ao final de 2012, já tínhamos os primeiros sinais de complicação da economia. Em 2013, esses sinais se confirmaram. Em 2014, tivemos um ano ruim e, em 2015, assistimos a um desastre. Pensamos em revisar as previsões, mas acabamos não publicando porque o cenário econômico é tão conturbado que fazer projeções neste momento talvez não seja uma boa ideia, pois, quem sabe, teríamos de refazê-las seis meses depois. Já não propagandeamos mais a meta de 200 milhões de passageiros até 2020. Concluímos que ela não será atingida, infelizmente.