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A pedra como metáfora

Ilustração: Fernanda Simionato
Ilustração: Fernanda Simionato

texto: Naomi H. Moniz

Minha primeira aula de “educação pela pedra” aconteceu quando tive a oportunidade de testemunhar o compromisso total de Denise Milan com a pedra como metáfora de sua obra, durante a peregrinação  que fizemos aos grandes parques nacionais  no oeste norte-americano: o Vale do Monumento,  o Cânion de Bryce  e o Parque de Sião.  Aprendi uma nova maneira de olhar para a pedra e a entender como sua visão apaixona as pessoas.  Durante dias, paramos para admirar, fotografar e meditar em meio à beleza dessas colossais catedrais pétreas dos Four Corners, localizada na divisa de quatro estados: Arizona, Utah, Colorado e Novo México. Uma região com as maiores reservas indígenas, dos EUA, com pueblos situados na vastidão a perder de vista, seus amplos horizontes de 360 graus e um céu  com luminosidade  que faz reverberar uma gama  de vários tons de rosa, roxo e ocre das rochas. Tudo isso sempre inspirou pintores, escritores, compositores, arquitetos, ceramistas e atores. Essa região é também o último reduto dos hippies ou daqueles que buscam viver out of grid – longe da civilização e da sociedade em busca de formas de vida alternativas e sustentáveis para o planeta. As paisagens são conhecidas no mundo inteiro, nas pinturas de Georgia O’Keefe,  na música de Copland e  Dvorâk,  e no icônico  Vale do Monumento com seus panoramas cinematográficos tão típicos dos clássicos  filmes de caubóis e índios  de Hollywood ou no pôster  publicitário do  mitológico  herói do faroeste, o Marlboro Man.

Após rodarmos 1.500 km  nessa região de formação de rocha sedimentada com mesas, mesetas, torres, monolitos e hoodos, cruzamos o legendário rio Colorado, atravessamos um túnel estreito de 1.711 m cavado no coração do paredão de arenito do
Cânion do Rio dos Pinheiros e descemos  800m numa queda quase vertical ao fundo do vale, exaustas e cobertas de poeira em direção ao oásis  Pérola do Deserto. Era um hotel elegante dentro de uma certa simplicidade zen, com o som das águas do Rio Virgem saltando  ali perto em seu raso leito de pedras.

No primeiro dia, um handyman tipo “pau prá toda obra” veio consertar a televisão e conversou animadamente sobre o lugar. Ele voltou logo em seguida com uma grande cesta de frutas e ofereceu gentilmente que trocássemos o apartamento no rés do chão por um outro, no segundo andar,  com uma vista espetacular da  montanha de pedra rosa banhada pelo  sol crepuscular: “Eu sou artista que trabalha com a pedra e preciso estar com os pés plantados na terra, jamais subiria para o segundo andar!”, respondeu Denise Milan com veemência inesperada  e indignação altaneira que pegou o  simpático senhor de surpresa pois ele queria somente agradar.
Visitar o espaço onde Denise vive é descobrir a tela na qual ela se expressa artisticamente.  Vejo desfilar perante meus olhos uma autobiografia em três dimensões:  a “Sherazade paulistana”  tece  fábulas duma infância mágica na residência de estilo mourisco dos avós libaneses, a fascinação pela pura geometria matemática dos arabescos harmoniosos espalhados pela casa e da caixa de jogo de gamão decorado com a estrela de seis pontas  que se tornou o leitmotif (do alemão, “motivo condutor”) de sua obra: o átomo do quartzo. Ali está a cadeira de balanço de seu pai Rachid, marido de Rosa, sua mãe. O casal tem nomes significantes que lembram a pedra de Roseta (encontrada em Rachid, no Egito e que ajudou Champollion a decifrar os hieróglifos egípcios) e a filha caçula, Denise, será aquela que vai gerar a linguagem  da pedra, literalmente,  porque maktub (‘estava escrito’, em árabe).
Conhecer o imaginário de Denise Milan é como entrar num universo de viagens, descobertas, observações do mundo natural, das ciências, é entrar num Wunderkammer – um gabinete de maravilhas com uma coleção enciclopédica  de pedras. Nesta biblioteca, os livros de pedra são como aqueles mapas que surgem na Europa desde o século 13, com desenhos da orbe celeste, da rosa dos ventos e acompanhados  de antigos instrumentos  de navegação: o astrolábio, a bússola, o telescópio, a sextante, e que ajudaram os antigos   marinheiros a encontrar  os caminhos  marítimos observando a Natureza .
Num canto da sala da artista há maquetes de muitos dos seus trabalhos feitos com Ary Perez, uma parceria que caracteriza seu modo de trabalhar e que levou a  outras parcerias, por exemplo, a ópera feita com seis compositores sob sua maestria, baseada no seu libreto e nas  suas anotações musicais pictográficas  da linguagem da Terra. Outro projeto de Denise em arte-educação nas comunidades carentes da Grande São Paulo, Espetáculo da Terra, também envolve muitos parceiros em sua “prática social” e mostra a tendência atual de se fazer arte em parceria porque “criatividade é interdependência” como enfatiza o artista escandinavo, considerado na Europa o filósofo do espetáculo,  Olafur Eliasson, em cujo estúdio trabalham noventa pessoas. 

No alto da estante de maquetes se encontra uma cabeça de mármore branco cujo cérebro seccionado é uma lâmina da “pinha” da ametista, num estilo reminiscente da estética  steampunk  da era vitoriana fascinada com o jeito “como as coisas funcionam” do início da Revolução Industrial e hoje praticada como estilo de arte e design. O cérebro de pedra desafia e subverte com humor e ironia as distopias futurísticas do cyberpunk e de cyborgs.

Numa outra parede vemos obras em metacrílico da exposição profética Mist of the Earth realizada em Chicago (2013), na qual ela reexamina o mito do Brasil como paraíso terrestre desde a época da sua descoberta. A coleção é dividida em três partes: primeiro, o “paraíso” com figuras de plantas antropomórficas e zoomórficas – a comunhão da natureza e dos moradores da Mata Atlântica na exuberante variedade da flora brasileira; segundo, o “paraíso perdido” cujo sonho do Eldorado leva ao desastre ecológico causado pelo desmatamento; finalmente a terceira, uma mensagem de esperança  nas mandalas formadas pela conjunção do mundo mineral e vegetal, a sugerir um retorno `às origens do universo assim como ao seu futuro, antecipando dessa maneira  nossa evolução nessa jornada cósmica. Tudo isso faz parte de uma “instalação total” onde preside o geodo de ametista, a Agrégora, protagonista de sua Ópera das Pedras. A heroína atravessa precipícios e cavernas tenebrosas, vencendo tentações e obstáculos até encontrar Solser – o coração raro e solar da ametista que vai iluminar  seu caminho e ajudá-la na sua tarefa de salvar a Terra.
Denise é uma artista multidisclipinar e realiza obras em várias mídias e gêneros: escultura, colagem, desenho, fotografia, videoarte, instalações, poesia, dança, coreografia e performance. Organiza debates interdisciplinares sobre arte pública no Brasil, arte-educação e performance urbana do Espetáculo da Terra nos espaços públicos. Dado o caráter interdisciplinar de sua obra, ela serve de veículo para muitas leituras e propicia diversos tipos de colaboração e parcerias.

A maneira como Denise trabalha reflete a sua postura como artista do século 21, com preocupações relacionadas à velocidade alucinante das  transformações e a questão urgente da sobrevivência e da sustentabilidade do planeta em vista da mudança climática.Ela examina sua fragilidade e o momento crítico que vivemos nesse globo, que ela chama de “a pedra azul”. Denise utiliza o epíteto dito pelos astronautas da missão espacial Apollo 17 em 1972,  quando viram  a terra inteiramente redonda, iluminada pelo sol , e tiraram uma foto do planeta, a primeira feita por um ser humano: “It is a blue marble!”  Um dos astronautas  comentou  que teve uma revelação  epifânica ao ver o planeta Terra  “só, frágil, e isolado no espaço” e percebeu que éramos parte duma só tribo, a humana.  O único astronauta árabe que esteve em missão no espaço, Sultan bin Salman, ilustra esse novo  espírito dos tempos. Diz ele que, vista do espaço, “nós nos damos conta que só existe uma Terra”. Este momento marca uma mudança no paradigma da história humana: entrar na fase de compreensão unificada da vida a partir da percepção de sermos todos participantes de uma jornada histórica maior, cósmica. Nestes tempos de comodificação da experiência humana na “sociedade do espetáculo” e da cultura hiper-estimulante das mídias sociais, Denise exorta todos a parar e refletir:
“Se nos conscientizarmos da relatividade deste momento no spectrum maior dos tempos, poderemos nos unir, olhar de frente os males e enganos que a Terra sofre para descobrir as vias de uma vida saudável, aqui e agora. Percorreremos numa epopeia, o trajeto mítico da grande pedra azul, Terra, terra saudável que aspira liberar a Natureza de seus aspectos de destruição, para lhes oferecer o seu poder regenerador.”