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Por um mundo precioso

Reportagem: Gabriel Vituri e Ivonete Lucirio
jornalistas

“O que é precioso pra você?” Estampada na camiseta de centenas de crianças e adolescentes que se aglomeravam pelas vielas de Heliópolis, bairro da zona sul de São Paulo, a pergunta podia até parecer ingênua. Na prática, porém, a resposta demandou um processo de transformação e identificação tão complexo quanto as metamorfoses pelas quais passam as pedras que há muitas eras povoam o planeta. “É necessário entender a estrutura do coração para entender as pedras”, explicava uma folha de papel escrita à mão, pregada na roupa de um garoto com aparência de oito anos de idade, boné vermelho na cabeça e um tênis de futebol no pé.
A quarta edição do Cortejo das Vidas Preciosas, que encheu de cores os espaços da comunidade, ocorreu no dia 13 de junho de 2013. Pelos estreitos e sinuosos caminhos de Heliópolis, cerca de 600 jovens – monitorados por educadores – caminharam juntos. Empunhando balões multicoloridos, eles consolidavam ali um trabalho de muitos meses, feito com a ajuda do Centro da Criança e do Adolescente (CCA) da região. A iniciativa baseava-se em uma analogia poética desenvolvida ao longo dos anos pela artista Denise Milan: as transformações do quartzo na natureza podem ser usadas como metáfora para as mudanças que correm
nas vidas humanas.

Experiência de arte pública
O Cortejo das Vidas Preciosas havia sido realizado pela primeira vez em 2010, com um roteiro mais amplo, que incluía uma manifestação no Parque da Independência, em São Paulo. A escolha do monumento que relembra o instante em que Dom Pedro I proclama a libertação da colônia do Brasil do domínio português não era acidental. Ao contrário. “Intervir nos marcos da cidade é uma das formas da arte preencher com novos significados esse acervo simbólico”, explica Denise Milan.
“As crianças e adolescentes ocupavam o parque com uma proposta de reinventar a história do Brasil e representar a vida humana valorizada – não como uma pedra preciosa que só tem valor quando é extraída de seu contexto, mas como algo próprio, concreto e possível”, lembra Denise, sobre as edições inaugurais do Cortejo. “O olhar de quem não vê se transforma em olhar visionário, conectado com a Terra, a natureza, as pessoas e suas vidas, mesmo aquelas em geral esquecidas”, completa a artista.
Esses dois primeiros cortejos, realizados em 2010 e 2011, foram exitosos, sobretudo do ponto de vista do engajamento das comunidades envolvidas com a proposta: Heliópolis, Grajaú, Jaguaré, Interlagos, Osasco, Pinheiros, Santana, Itaquera.

Gênese de um trabalho coletivo
Desdobramento da Ópera das Pedras, uma apresentação multimídia de Denise Milan criada em 2006, o Cortejo das Vidas Preciosas surgiu como resposta possível a reflexões muito contemporâneas, como a questão do meio ambiente e da luta histórica pela preservação das riquezas do Brasil. A série de projetos da artista baseados nessa metáfora das pedras abordava o mesmo tema que as crianças dos CCAs vinham trabalhando: a integração entre o ser humano e o planeta Terra, representado – na visão da artista – como a grande Pedra Azul. No caso dos jovens de Heliópolis e de outras regiões periféricas da cidade, a caminhada e os trabalhos ganhavam uma conotação ainda mais forte: “Quando essas crianças têm uma vida valorizada, o poder de evoluir é reintroduzido no cotidiano delas, o sonho volta a ser uma possibilidade”, analisa Denise.

Um projeto de arte-educação
Era 2009 quando Carla Govêa, analista técnica educacional que desenvolve atividades educativas no SESI há cerca de duas décadas, teve o seu primeiro contato com a Ópera. “Eu comecei a estudar as obras da Denise, achei fantástico e adaptei a ideia com uma proposta puramente pedagógica na comunidade de Heliópolis”, ela lembra.
A ela se juntaram Regina Barros, socióloga e educadora do UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), e Rosa Iavelberg, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
No ano seguinte, já com a formação dos professores estruturada, o trabalho das três educadoras se estendeu aos grupos de crianças e adolescentes. “Eles estudaram história, geologia e ciência, por exemplo”, conta Carla. O processo educativo e de sensibilização culminou no primeiro Cortejo das Vidas Preciosas, em 2010.
A partir desses estudos, a proposta de trabalhar a arte com uma linguagem pedagógica, envolvendo os princípios da Ópera das Pedras, passou a ser bastante utilizada nos CCAs. “Muitas vezes, a educação fica apartada de programas que buscam valorizar a cultura porque existe uma dificuldade em perceber que isso faz parte de um todo”, analisa Carla. Para ela, o diferencial da obra da artista é a valorização das relações humanas, do desenvolvimento da autoestima e da crença em uma sociedade melhor. “O propósito de aliar arte e cultura à educação sempre foi um norte, mas a Denise deu um frescor a isso”, completa.

Metáfora e inovação
O alicerce desse trabalho é a possibilidade de fazer uma analogia entre uma pedra preciosa, que se transforma com o passar do tempo, e a capacidade do próprio ser humano de se transformar. Na visão de Gilmar Pereira da Hora, coordenador do CCA Parceiros, a metáfora é, acima de tudo, uma reflexão sobre quem somos nós. “Trabalhar esse conceito com as crianças é despertar nelas o senso crítico, que as ajuda a entender valores sociais, humanos, e a buscar ferramentas para se tornarem cidadãos ativos”, afirma.

Acostumados a métodos de trabalho mais ortodoxos, era de se esperar que houvesse dificuldade inicial dos educandos em compreender o significado de uma analogia não tão explícita. Em outras palavras, explicar o passo a passo de uma transformação mineral a uma criança e fazê-la entender que o processo pode estar intimamente ligado à sua própria vida poderia parecer um complexo desafio.

Juliana Kelly da Silva, a Fuca, Coordenadora de Arte e Cultura do Instituto Anchieta Grajaú, relembra o caso de um aluno que estava passando por um momento bem difícil na época: “A criança não sabia como lidar com a morte, a saudade, a falta”, ela conta. “Resolvemos usar a simbologia trabalhada no projeto da Denise. Pedi para a criança procurar pelo terreno pedras que demonstrassem o que sabia sobre a morte. Lindamente ela me trouxe cinco pedras e explicou: uma era o nascimento, a idade de criança quando engatinha, a segunda representava a idade da primeira experiência com a escola, a terceira, simbolizava a adolescência, a quarta, a fase adulta e a quinta, a velhice. Perguntei, e depois? A criança me respondeu que depois vinha a morte e que a morte era o medo da saudade e a sensação de sentir-se sozinha. A comparação simbólica deu cores, leveza e ressignificou o sentido da perda e da dor”, conclui Juliana.

Carla Govêa confirma que os resultados foram surpreendentemente positivos. “A criança não tem receio do novo nem bloqueios, enquanto nós, adultos, temos formatos pré-concebidos e precisamos de mais tempo para entender ideias muito diferentes das que já vivemos diariamente”. “Eles interagiam o tempo todo como protagonistas, sugerindo jogos, exposições e atividades por conta própria”, completa a educadora.

Comunidade e desafios
O relacionamento das crianças com a obra da artista foi se aprofundando e, já na edição 2013, todo o evento foi organizado pelos próprios representantes dos CCAs, em conjunto com as crianças e os adolescentes inscritos nos centros, além de outras pessoas da comunidade.

“O envolvimento dos pequenos mostra como eles se vincularam ao projeto. Cada desenho, cada bandeira, tudo tem a cara deles, é a construção de uma identidade própria”, afirma Antonia Cleide Alves, presidente da UNAS, que participou das edições anteriores do cortejo.

Gilmar Pereira, um dos articuladores do evento dentro da comunidade, ressalta a importância da ação: “Isso partir daqui de Heliópolis representa um processo de identificação com uma obra que viajou o mundo inteiro”. De fato, o trabalho de Denise Milan não se restringe ao Brasil. Chicago, nos Estados Unidos, e a cidade de Assis, na Itália, possuem exemplares permanentes de seus trabalhos. Suas instalações já passaram por lugares tão diversos como Taiwan e Marknesse, na Holanda.
Para Gilmar, falar de vidas preciosas nos espaços que representam o cotidiano desses jovens é uma vitória significativa: “Nada melhor do que debater um assunto assim, tão importante, na porta da própria casa, dividindo com o vizinho que ele também é precioso e pode ser uma pessoa melhor”.

“Em Heliópolis existe vida comunitária”, salienta Regina Barros, “lá encontramos a semente do coletivo. Pessoas lutam diariamente para que a qualidade de vida melhore para todos. Crianças abandonadas pela vida e às vezes até por seus próprios pais, são recuperadas pela atuação de lideranças da comunidade, que não desistem dela”, avalia a socióloga.

Euforia
Quando o primeiro turno da caminhada começou, pouco depois das 8 horas da manhã de um dia ameno, o silêncio que dominava as ruas de Heliópolis foi rasgado pela euforia das crianças. Após meses de preparação, começava, enfim, o esperado Cortejo das Vidas Preciosas de 2013. “A busca do ser humano é transformar o ser em sua própria preciosidade”, dizia a camiseta de um punhado de meninas que ajudavam a acalmar a agitação dos mais novos. “Não jogue lixo no chão, porque o mundo é precioso”, pedia um grupo de meninos que empunhava balões verdes e marchava lentamente ladeira abaixo.

Com mensagens sobre o meio ambiente, a importância da família e pedidos de paz, entre várias outras, crianças e jovens com idades variando entre 6 e 15 anos percorreram as ruas. Das janelas, nas varandas, o povo – tanto os moradores quanto os comerciantes – espreitava a barulhenta caminhada com curiosidade; vermelho, verde, azul, lilás, rosa, amarelo, um mar de cores representando diferentes pedras preciosas e a promessa de uma vida melhor. “Muita gente pensa que a educação pode ser feita de qualquer jeito, mas é preciso ter consciência sobre a aprendizagem, é preciso ensinar a esses jovens que as atitudes deles criam responsabilidades na sociedade”, reflete Genésia Ferreira da Silva Miranda, diretora da UNAS e coordenadora do CCA Mina.

A caminhada não durou uma hora. Os resultados do ato simbólico, todavia, vão repercutir ao longo de toda a vida. “Às vezes nós recebemos uma criança de sete anos de idade, por exemplo, que chega sem autoestima, com dificuldades para se relacionar, e alguns anos depois ela se torna uma liderança, um exemplo vivo dos frutos desse trabalho”, exemplifica Gilmar Pereira. “Estamos falando de desenvolvimento humano, de algo que impacta no dia a dia desses jovens, influencia os caminhos que eles vão escolher”, completa o educador, que recebeu no CCA Parceiros ao fim da caminhada todos os grupos do Cortejo para um momento de reflexão.

“Cada pedacinho  do universo é precioso, e a gente precisa cuidar e se orgulhar de ser parte disso”, afirmou Ana Estela Haddad, primeira-dama de São Paulo, presente no cortejo.

Visões de futuro
As bandeiras hexagonais estendidas pelo pátio do CCA, as crianças atentas ao discurso dos educadores, ansiosas para soltar finalmente as centenas de balões coloridos pelo céu, não davam margem a qualquer dúvida: mais uma vez, o Cortejo das Vidas Preciosas atingia seus objetivos. “Nesses quatro anos houve muito planejamento, é algo contínuo”, relata Genésia Miranda, da UNAS. Para a diretora, o dia é só um detalhe em um contexto maior. “Quando um adolescente sai do Centro, com 15 anos, e segue a sua vida, a formação adquirida aqui continua, o olhar dele para o futuro é precioso”, diz.

“É a sensação de que eles são capazes, é reforçar que Heliópolis pode ser bom, e isso tem muito significado”, completa Carla Govêa. Para Denise Milan, a quarta edição do Cortejo representou mais uma vitória para a arte pública: “É uma ação espontânea, a prova da relevância dessa proposta de arte-educação que criamos. Cidade Heliópolis mostra que a reflexão já foi consolidada e que agora está pronta para outros desafios”.

Chega enfim o grande momento: como em um passe de mágica, balões de todas as cores encheram o céu da zona sul de São Paulo. E vidas preciosas seguiram o seu curso.

Edição 2015 do cortejo terá oficinas de teatro e de música
Uma nova edição do Espetáculo da Terra está marcada para o dia 13 de novembro de 2015. A reunião de todos os educadores e coordenadores envolvidos no projeto aconteceu no Centro de Convivência Educativa e Cultural de Heliópolis, no dia 8 de maio. Além da apresentação da metodologia que será adotada para consolidar os resultados obtidos ao longo dos últimos anos com a experiência de arte-educação proposta por Denise Milan, junto com a equipe do Espetáculo da Terra, e desenvolvida pelos professores com as crianças da comunidade, o encontro também apresentou novidades. O objetivo é ampliar o potencial teatral do cortejo de rua a partir de oficinas teatrais e de hip-hop baseadas na criação Ópera das Pedras - Vidas Preciosas de Denise Milan. A cantora e compositora Badi Assad e a Orquestra do Instituto Bacarelli, com 70 músicos e 60 crianças no coral, também farão parte da edição 2015 do cortejo.

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