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Passado à luz do presente

João Batista de Andrade tem 75 anos, é escritor, roteirista e cineasta. Seu primeiro filme foi o documentário Liberdade de Imprensa (1967), caracterizado como “cinema de intervenção” e apreendido pelo regime militar em 1968. Entre seus outros trabalhos se destacam O Homem que Virou Suco, A Próxima Vítima, O país dos Tenentes, A Greve, O Tronco e Vlado, Trinta Anos Depois, sobre seu amigo Vladimir Herzog. Foi secretário estadual de Cultura de São Paulo, quando criou a Lei da Cultura (PROAC) com editais e incentivos para a produção cultural. Em 2012 foi nomeado presidente da Fundação Memorial da América Latina. Neste mês estreia Na Sombra da História, nova série do SescTV.

 

Há alguma ligação da nova série com o seu filme Liberdade de Imprensa (1967)?
Eu acho que tem tudo a ver com o Liberdade de Imprensa porque ele é a matriz do meu cinema documentário. Quando o viram, pessoas importantes do cinema brasileiro, como Jean-Claude Bernardet e José Carlos Avellar, acharam que ele era uma renovação, um rompimento com a tradição que se seguia aqui, com a ideia do cinema que esconde a câmera e a equipe, como se para filmar a realidade fosse preciso fazer de conta que se está ausente. Eu fiz o contrário.

Esse rompimento foi pensado, ou surgiu espontaneamente?
Eu descobri isso na filmagem. O meu impulso foi por aí. Tem uma sequência no Liberdade de Imprensa em que eu levo livros para as pessoas lerem na rua. Eu filmo a distribuição, filmo a leitura e depois vou conversar com as pessoas sobre o que elas leram. Isso acabou recebendo o nome de cinema de intervenção. Eu intervenho na realidade, a realidade se modifica e eu filmo a modificação. Em vez de esconder a presença, deve-se levar em conta que a simples filmagem já muda a realidade. Então era preciso aprender a usar essa mudança. Descobri que estando presente eu tenho mais capacidade de revelar coisas que estão ocultas.

Isso não pode parecer ruído visual para algumas pessoas?
Eu sou um documentarista tradicional e sou considerado um dos principais documentaristas brasileiros. Essa é e sempre foi a minha linha. Eu faço questão de que o espectador sinta o tempo todo que aquilo é uma filmagem, isso dá mais espírito crítico para ele. Hoje é uma linha extremamente aceita em documentário, mas no meu tempo não. O [Eduardo] Coutinho, no Cabra Marcado para Morrer, que fez nos anos 1980, já andava com a câmera acompanhando, entrando nos lugares.

Como você transpõe esse pensamento para a edição?
Eu filmo com três câmeras. Sempre tem uma que está mais fechada nos depoimentos. Outra pega o entorno, os movimentos de fora, as pessoas passando, olhando, curiosas. E há uma terceira, média, na qual eu estou presente, a pessoa que depõe está presente, eventualmente um fragmento da equipe. São três planos para a gente montar.

Em Na Sombra da História, qual o propósito de não identificar os entrevistados?
Esse filme é rua. As pessoas que foram filmadas são pessoas comuns da rua, elas não estão ali pela sua função na sociedade. O professor Marco Aurélio Nogueira, que dá um depoimento, estava na Barão de Itapetininga (centro de São Paulo) com o filho dele. Não busquei ninguém, as pessoas foram escolhidas ao acaso, em lugares movimentados.

O programa suscita a necessidade de conhecimento histórico do brasileiro?
Hoje a falta de memória do Brasil em relação ao passado é impressionante. Eu acho que esse desconhecimento passa pelo processo de formação da sociedade brasileira, que torna as pessoas muito pragmáticas. É o dia a dia que vale, como você vai ganhá-lo. A formação cultural sempre foi elitista. Você vê o papel que os africanos tiveram na formação do povo brasileiro e vê a situação deles até hoje. Eles são marginalizados, perseguidos, discriminados. A formação do povo brasileiro se dá subalternamente, tentando encontrar espaço dentro de uma sociedade que, primeiro, foi ocupada pelos portugueses, espanhóis, árabes, italianos, que vieram de países onde a luta de classes já estava mais avançada e formaram uma camada média da sociedade. Essas pessoas já tinham consciência dessas questões, tanto que os movimentos sociais estouram no começo do século passado com imigrantes, espanhóis e italianos principalmente. A formação do povo brasileiro é pobre culturalmente. O sistema de educação, em vez de chamar as pessoas para as coisas que elas vivem e para a história delas, é um sistema imposto, uma burocracia. O domínio oligárquico é tão grande que as pessoas têm vergonha de não saber as coisas e de falar de sua origem também. Quem expõe a sua realidade são só os rebeldes, que estouram. Esse medo imposto pela própria aristocracia à população a afasta de tentar saber demais das coisas. O povo brasileiro foi criado com um medo pavoroso de se imiscuir nas questões da elite e dos poderosos. Vivemos um momento de esgotamento ideológico, dos modelos ideológicos, de partidos que estão superados no mundo inteiro e não só aqui. O aumento de uma população com desejo de participar, no mundo inteiro, é muito grande. Aqui há uma insatisfação com a forma como o país é gerido.

E essa falta de memória histórica não prejudica as pessoas na hora de reivindicarem alguma coisa?
Prejudica porque falta referência de como a população lutou no passado. É por isso que quero falar do passado para revelar o presente. O conhecimento histórico ajuda a sociedade a encontrar caminhos de luta, ajuda as pessoas a perceber que elas têm um papel na construção da história. A história existe na vida das pessoas, só que elas não têm consciência, não têm memória disso. Por isso está na sombra. Recuperar isso é muito importante. Eu acho que a série ganhou mais atualidade pelo momento em que a gente se encontra. A história é viva. Na Sombra da História é um experimento, é uma educação histórica ao vivo.