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O filme como representação histórica

A relação entre história e cinema ocorre desde os primórdios da invenção técnica do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Filmes produzidos sem que a narrativa ainda estivesse constituída se prestavam ao registro de viajantes que o haviam adquirido. Dessas experiências, a linguagem começou a ser edificada, e pequenas narrativas passaram a ser produzidas. Tanto no campo documentário quanto no do cinema de ficção, desde o início da circulação dos aparelhos há filmes realizados por todo o Brasil.

O deslumbre da chegada de navio à Baía de Guanabara, o encontro com as florestas tropicais, a cidade em movimento e o projeto de expansão modernizadora são registros particulares existentes e tentativas iniciais de organização de uma produção em série. Pequenos documentários (digamos assim) em que famílias se preocupavam em registrar o próprio lazer e seu lugar na sociedade fazem parte do acervo que a Cinemateca Brasileira. Filmes documentários feitos sob encomenda de industriais, os quais funcionavam como pequenas obras de propaganda, visavam à construção de narrativas afirmativas do poder em expansão. Hoje esse acervo nutre pesquisas sobre hábitos, costumes, questões de política e representação de poder, entre várias novas abordagens e problemas que acadêmicos e curiosos encontram ao se debruçarem sobre esse material.

O filme histórico vem no bojo do desenvolvimento da narrativa cinematográfica e é simultâneo a essa produção caseira e de encomenda. Em São Paulo, imigrantes envolvidos com o entretenimento, espetáculos em geral (teatro, circo, musicais, etc.), são os primeiros produtores de uma cinematografia que pretende contar a história do Brasil. As referências para as representações são tomadas principalmente da literatura brasileira romântica do século XIX. O indianismo literário serviu de inspiração aos temas adaptados nos filmes produzidos precariamente. Nesses filmes, exaltavam-se miticamente os indígenas que eram tratados de maneira idealizada; entretanto, os índios não podiam representar a si mesmos. O cineasta Vittorio Cappelario, em 1926, foi interrogado na delegacia de São Vicente por ter chamado indígenas locais para participar da filmagem de adaptação do livro O Guarani. Questionava o delegado por que, afinal, com o nosso progresso e tanto do desenvolvimento a mostrar, colocar indígenas atuando. Assim, atores negros costumavam representar o papel de indígenas, embora, e contraditoriamente, não pudessem ver suas próprias histórias representadas em tela, pois estas não haviam sido incluídas na história do Brasil até então construída. Dos primeiros cineastas restaram basicamente os relatos coletados em depoimentos para a construção de uma história desses primeiros tempos, e pouco material fílmico sobreviveu à precariedade de sua preservação.

Nos anos 1930 e 1940, foram produzidas narrativas mais organizadas e houve financiamento do Estado para algumas produções de cunho nacionalista. Humberto Mauro realizou O Descobrimento do Brasil e Os Bandeirantes, entre vários outros filmes que eram encomendados para corroborar uma história oficial do Brasil. Entretanto, os filmes produzidos nem sempre atingiram as finalidades dos projetos originais e foram rejeitados pelo público. Escolas cinematográficas diversas e concorrentes se difundiram desde então. Seja na abordagem romântica, na patriótica ou na nacionalista, como também na alegórica (que despontou com o Cinema Novo nos anos 1960/70, em plena Ditadura Civil-Militar), a História foi tema polêmico dos discursos produzidos.

Em 1972, Independência ou Morte, filme produzido pela companhia cinematográfica Cinedistre, de Oswaldo Massaini, com o ator/galã das novelas Tarcísio Meira, narrou patrioticamente o momento da separação de Portugal. O filme foi muito bem recebido pelo público e pelo governo do Gal. E. G. Médici –correspondia aos anseios comemorativos do momento histórico, o bicentenário da independência. Entretanto, não recebeu financiamento do Estado, sendo um filme de iniciativa privada. Outra produção que pode ser comparada em termos de sucesso a tratar desse tema é Carlota Joaquina: princesa do Brasil, de Carla Camurati, realizada a partir da Lei Rouanet e, portanto, com o aval do Estado. O filme faz uma abordagem carnavalizante da vinda da família real ao Brasil, na qual a política e os políticos são desqualificados. O retorno de público foi generoso e marcou um processo de restabelecimento da produção cinematográfica reiniciada desde a organização das leis de isenção fiscal no governo de Itamar Franco.

As polêmicas em torno da representação do Brasil seguem porque o ver-se em tela provoca incômodo e gera atritos ao se (des)sacralizar a maneira como nos compreendemos. O auto-olhar alimenta as diversas possibilidades de expressão e reconhecimento necessárias para a própria identidade e construção cidadã do país. A produção fílmica é necessária e salutar para o permanente questionamento construtivo da sociedade democrática.

Mônica Brincalepe Campo é professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia e desenvolve pesquisa em história e cinema