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Marcelo Gomes

por Marcelo Gomes
 

O cineasta Marcelo Gomes nasceu em Recife, onde se deu o primeiro contato com o cinema e a transformação em paixão, que o levou a criar, com alguns amigos, um cineclube. Formou-se em Cinema na Universidade de Bristol, na Inglaterra, e dirigiu uma série de premiados curtas-metragens. Seu primeiro longa, Cinema, Aspirinas e Urubus, estreou em Cannes em 2005 e ganhou mais de 50 prêmios pelo mundo. A seguir, os melhores trechos do depoimento do cineasta, no qual fala sobre as dificuldades em fazer cinema no Brasil e a linguagem da sétima arte.

O começo de tudo
Sou de Recife. Como bom filho de uma família de classe média baixa, tinha que fazer Engenharia, Direito ou Medicina. Decidi fazer Engenharia, mas todo dia ia ao cinema. Às vezes, até folgava a aula de Engenharia para ir. Até que um dia não deu mais, decidi que eu tinha que fazer cinema. Não existia escola de cinema em Recife. Era final dos anos 1980, início dos 90. Para compensar essa falta, juntei mais meia dúzia de amigos que também adoravam cinema e decidimos fazer um cineclube.
Em Recife, na época, existiam 12 cinemas comerciais que exibiam exatamente os mesmos 12 filmes norte-americanos que eram vistos em todo o Brasil. Não existia nenhuma sala de cinema de arte, nenhum cineclube, não existia nada. Nada de nada. Não existia videolocadora, na época um negócio que estava começando. A gente recebia a lista dos filmes das distribuidoras do Rio e de São Paulo.

Vida de cineasta
O cineclube foi uma grande influência para o meu cinema. A gente exibia filmes que instigavam nossa imaginação, nosso jeito de pensar a vida, mexiam com nossa memória, nossos sentimentos. Não aquele cinema que a gente via nas salas comerciais de Recife. Até hoje eu me encontro com pessoas que iam frequentemente ao cineclube e elas falam a mesma coisa. O nome do cineclube era Jurando Vingar, em referência ao filme de 1925 (longa-metragem brasileiro dirigido por Ary Severo). A gente jurava que ia vingar.
Com as atividades do cineclube, percebi que o que eu queria mesmo era fazer cinema. Nessa época, fui ao Conselho Britânico e solicitei uma bolsa para estudar na Inglaterra, pois na época ofereciam bolsas na área de artes. E lá fui eu, morar no interior da Inglaterra sem nunca ter saído do Brasil. Foi maravilhoso, porque foi um choque cultural para mim e que acabou repercutindo no meu cinema lá na frente.
Quando voltei da Inglaterra, começava timidamente a retomada do cinema brasileiro, com os editais de curta-metragem. Eu e outros diretores, como Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, começamos o movimento de solicitar ao governo estadual o lançamento de editais para curtas. E eles vieram. Fizemos alguns e ganhamos.

Longa-metragem
A primeira pessoa que me convidou para trabalhar em um longa-metragem foi o Karim Aïnouz, um cearense que tinha estudado cinema nos Estados Unidos e estava com o projeto do Madame Satã. Trabalhei no roteiro dele, que foi minha grande escola em longa-metragem. Depois, pedi ajuda do Karim no roteiro do Cinema, Aspirinas e Urubus, que foi o meu primeiro longa-metragem. É engraçado porque esse filme tem uma relação muito profunda com a cidade de São Paulo.
Quando eu era do cineclube, estive na cidade durante umas férias, na Mostra de Cinema de São Paulo. Aí meu pai falou: “Tem um tio-avô seu que está desaparecido em São Paulo. Migrou na década de 1940 e nunca mais se teve notícia dele. Agora, ele apareceu e está morando na capital. Você poderia visitá-lo?”. Eu falei: “Pai, eu não visito parente nem fora das minhas férias, imagina nas férias!”
Mas fui. Chegando lá, me deparei com esse meu tio-avô, que me contou uma história de que no final dos anos 1930 ele migrou para São Paulo e, no caminho, conheceu um alemão e saíram vendendo aspirinas pelo interior de Pernambuco. Essa história ficou batendo na minha cabeça, antes mesmo de eu ir para a Inglaterra. Quando voltei, tinha aprendido muito mais sobre ser pernambucano, pois fui o outro lá fora. E decidi que ia contar essa história.

Ficção e não ficção
O que eu acho bacana nas artes plásticas é que, quando você vê um filme que está em uma bienal, você não se preocupa se é uma ficção, um documentário, se aquilo é encenado ou se aquilo existe mesmo. No cinema, a maioria das pessoas, críticos ou aqueles que fazem resenha ficam com a necessidade de dizer “isso é um documentário”, “isso é uma ficção”. O [cineasta e escritor iraniano] Abbas Kiarostami fala uma coisa que acho que sintetiza muito o que penso: “Se o filme é um documentário ou uma ficção, isso depende do processo em que foi construído”.
Se você chamou atores, se encenou aquilo ou se não encenou aquilo, se você fez simplesmente um registro. Ou se você fez uma ficção parecendo que é um registro. Isso é método. Métodos de construção de um filme. O que importa é a verdade. Não a verdade filosófica, mas a verdade emocional. Por isso que a gente bagunçou, no melhor sentido, a linguagem cinematográfica. Para chegar à emoção do espectador, para fazer esse link emocional entre nós e o espectador, mas também fazer esse link emocional entre a gente e o filme. Isso é que é importante no cinema. No futuro próximo, essas divisões não vão fazer nenhum sentido.

“O que importa é a verdade.
Não a verdade filosófica,
mas a verdade emocional.
Por isso que a gente
bagunçou, no melhor sentido,
a linguagem cinematográfica.”

O cineasta Marcelo Gomes esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 16 de janeiro.