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Cadê as abelhas?

Principais polinizadores da natureza, elas são essenciais à agricultura / Foto: Vale-CSIRO
Principais polinizadores da natureza, elas são essenciais à agricultura / Foto: Vale-CSIRO

Por: MARCELO SANTOS

No inverno de 2006, o “The New York Times”, principal periódico dos Estados Unidos e um dos mais influentes do mundo, noticiou o desaparecimento de até 70% das colmeias de apicultores do estado da Califórnia e em algumas regiões da costa do Texas. Os americanos foram pegos de surpresa porque nunca se imaginou que algo assim pudesse um dia acontecer. Mas o que está ruim pode às vezes ficar pior: a crise se intensificou e 30% das abelhas criadas em cativeiro no território daquele país simplesmente sumiu (foram dizimadas, seria o certo a dizer), refletindo um problema que vem ocorrendo moderadamente desde a década de 1940 e agravado subitamente no início deste século. Sobretudo nos Estados Unidos, Europa, Rússia e parte da Ásia. No Velho Continente, por exemplo, das 68 espécies do inseto, 46% estão em declínio e 24% correm o real risco de extinção.

Por alguma razão ainda não esclarecida, as abelhas sociais, que vivem em colônias, estão desenvolvendo um transtorno no sistema nervoso, prejudicando sua memória e senso de direção. Desorientadas, elas não retornam às colmeias, deixando para trás mel, crias e até mesmo a rainha. O distúrbio tem sido alvo de pesquisas de cientistas em todo o planeta e recebeu o nome de Colony collapse disorder – CCD (Síndrome do Colapso das Colônias).

A importância das abelhas não se restringe apenas às atividades de produção dos subprodutos apícolas, como a cera, a geleia real, o mel e o própolis. Elas são os principais polinizadores da natureza, exercendo grande relevância em mais de 70% das culturas agrícolas e 85% das plantas com flores (transferência de pólen das anteras de uma flor masculina para o estigma das flores femininas). Há até quem garanta que o Albert Einstein, o físico da teoria da relatividade geral e que nada tinha de profeta, observou certa feita que se as abelhas desaparecessem da face da Terra, restaria para humanidade apenas mais quatro anos. Sendo a citação verdadeira ou não, o fato é que sem abelhas simplesmente não há polinização. E sem polinização a flora não se reproduz, fenômeno que causaria a mortandade dos animais e, por consequência, da raça humana.

Na Europa, por medida de precaução, foi banido até o ano de 2015 o uso de defensivos agrícolas à base de neonicotinoides considerando estudos que os responsabilizam pela mortandade do inseto. Já nos Estados Unidos, em junho de 2014, a Casa Branca publicou um memorando emergencial para que se descreva um diagnóstico mais preciso sobre o que considerou um “problema grave”. O documento, assinado pelo presidente Barack Obama, ressaltou ainda que “só a polinização das abelhas acrescenta mais de US$ 15 bilhões em valor para as culturas agrícolas a cada ano nos Estados Unidos”.

De acordo com Osmar Malaspina, pesquisador da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), em Rio Claro, no interior de São Paulo, o Brasil também sofre com a morte das abelhas. Mas ele descarta uma correlação com o que vem acontecendo nos Estados Unidos e na Europa. “As abelhas de lá, chamadas de abelhas ocidentais, são mais suscetíveis à ação de doenças, bactérias e ácaros. No Brasil, ao contrário, ela é mais rústica, uma mistura da ocidental com a africana, uma história que começou na década de 1960, aqui mesmo em Rio Claro”, relembra o pesquisador.

Malaspina refere-se a um notório episódio da genética de insetos no país, quando o também pesquisador daquela universidade, Warwick Estevam Kerr, que chefiava o setor de Biologia do recém-criado departamento de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, viajou à África, em 1956, atendendo a um pedido do Ministério da Agricultura. Sua missão: estudar as abelhas do continente africano, conhecidas por produzirem mel em grande quantidade e também por sua agressividade.

Função de longevidade

Kerr retorna algum tempo depois trazendo a tiracolo algumas colônias consigo e que foram acomodadas no Horto Florestal da cidade. Porém, durante um manejo, 30 rainhas escaparam para as matas próximas. A espécie se adaptou bem às novas condições ambientais e rapidamente se espalhou pelo país. Hoje, a espécie africanizada é encontrada desde o Uruguai a até algumas regiões dos Estados Unidos. “Nossas abelhas são mais resistentes e quase não apresentam doenças”, observa Kerr. Ele aponta três possíveis causas para a mortandade das abelhas no Brasil. “Primeiro, a tecnologia de manejo, considerando que numerosos apicultores ainda têm dificuldades com a alimentação de suas colmeias, com os cuidados necessários e com a troca das rainhas. Segundo, a questão do clima, pois em nosso país muitas regiões enfrentam longos períodos de estiagens. E, terceiro e a mais grave de todas: a morte decorrente do uso de pesticidas, principalmente com as pulverizações aéreas feita de forma indiscriminada”.

Para Kerr, o desconhecimento sobre a importância dos polinizadores naturais agrava o problema. “Só depois que a imprensa começou a retratar a mortandade das abelhas como uma crise mundial, os produtores rurais e apicultores passaram a sair à procura de mais informações sobre o fenômeno, prestando maior atenção e devotando maior cuidado ao uso de pesticida em regiões de apiários ou de matas próximas a plantações”.

O pesquisador da Unesp conta que recebe, em média, 30 ligações por dia, especialmente de empresas do ramo de defensivos agrícolas. “Estão preocupadas com sua imagem institucional, pois sabem que serão responsabilizadas pela morte das abelhas, assim como os caçadores de baleia são acusados pelo extermínio da espécie nos oceanos”, exemplifica. “Em minha opinião, as grandes empresas de defensivos, que ganham muito dinheiro, devem pagar essa conta e não a universidade, os apicultores ou a sociedade de maneira geral”.

Em busca de respostas mais esclarecedoras, pesquisadores do Instituto Tecnológico Vale (ITV), em Belém (PA), instituição criada pela mineradora Vale, e da Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO), agência nacional de pesquisa da Austrália, desenvolveram uma metodologia que permite medir a influência dos fatores que interferem na saúde das abelhas, levando-as à morte prematuramente. A pesquisa vem sendo desenvolvida com colmeias na Amazônia e na Tasmânia. “Descobrimos uma ‘função de longevidade’, uma espécie de índice de saúde das abelhas. Com essa função, conseguimos medir o impacto de qualquer fator debilitante sobre os insetos e, possivelmente, o ponto crítico de ruptura da estrutura social da colmeia, ou seja, o CCD”, explicou o físico brasileiro Paulo de Souza, coordenador do experimento.

Por meio de um microssensor instalado no tórax dos insetos, Souza, juntamente com um grupo de 22 pesquisadores e alunos de mestrado do ITV e de doutorado de universidades australianas, monitora os sobrevoos das abelhas no Brasil a partir de um apiário de Santa Bárbara do Pará, na região metropolitana de Belém. “Desenvolvemos uma metodologia que permite comparar diferentes níveis de estresses”. Ele cita, como exemplo, monitoramentos de abelhas expostas a alimentos geneticamente modificados ou pesticidas, e de colônias que vivem livres dessa modalidade de exposição. “Avaliamos o desempenho das abelhas, comparamos o resultado e checamos o impacto não apenas no inseto, mas em sua colônia, e fazemos o mesmo em relação à nova geração”.

Varredura mundial

Segundo o pesquisador, além dos pesticidas, há uma lista de fatores, ou mesmo todos eles juntos, que podem explicar a causa do distúrbio CCD. “Ondas eletromagnéticas emitidas por redes de telefonia celular; mudanças climáticas, particularmente com maior ocorrência de eventos extremos; infestação por parasitas, como a varroa, um ácaro que se alimenta do sangue das abelhas; a disseminação da monocultura; a poluição do ar e mesmo o emprego de técnicas para aumentar a produção de mel, que estressam e desorientam os insetos”, enumera Souza.

Outra iniciativa, também proposta por brasileiros, é a campanha “Bee or not be”, uma ação escorada num forte trabalho de marketing que reúne pesquisadores do Centro Tecnológico de Apicultura e Meliponicultura (Cetapis), do Rio Grande do Norte, liderados pelo professor Lionel Segui Gonçalves, da Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto. “Lançamos, em março de 2014, um aplicativo para smartphones, tablets e computadores para o registro de desaparecimento, mortes e perdas expressivas de abelhas em apiários, a primeira plataforma online por geolocalização do gênero”, explica Daniel Malusá Gonçalves, diretor da agência 6P Marketing & Propaganda. “Pelo aplicativo, apicultores, meliponicultores e a comunidade científica podem apontar, numa plataforma única e de forma colaborativa, o sumiço das abelhas em todo o mundo, indicando o local, a intensidade e as possíveis causas”, completa.

Em julho de 2012, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) publicou uma norma proibindo a pulverização aérea com algumas classes de defensivos agrícolas portadores de neonicotinoides. Porém, após enorme pressão da agroindústria, a decisão foi flexibilizada três meses mais tarde. Atualmente, é permitida a aplicação aérea nas culturas de algodão, soja, cana-de-açúcar, arroz e trigo. “Claro que o ideal é a não aplicação de agrotóxicos, todavia, sem eles o mundo sofreria com a fome muito mais do que já padece hoje”, opina Alexandre José Cattelan, chefe-geral do Centro Nacional de Pesquisa de Soja da Embrapa. O problema é que muitas culturas como algodão, café, cana-de-açúcar, citros em geral, soja, milho e trigo são altamente dependentes do uso de defensivos daquele tipo. “Não há como prescindir dos agrotóxicos. O não controle de pragas, por exemplo, implica numa redução média de 20% na produtividade da soja”, adverte Cattelan.

A questão reside, segundo ele, na redução dos impactos do controle de pragas sobre as abelhas – que não são pragas – e na criação de alternativas viáveis ao produtor para o controle das praguicidas, especialmente percevejos, que causam grandes prejuízos às lavouras. “É possível equacionar a aplicação de produtos em horários quando as abelhas não estão visitando as plantas, como na parte da tarde, bem como evitar a aplicação durante a florada das culturas”, destaca.

Com o propósito de avaliar a extensão do problema, cientistas brasileiros monitoraram, entre os anos de 2002 e 2005, as cidades de Ponta Grossa (PR), Esteio e Bom Jesus (RS), e algumas regiões de Curitiba e Santa Catarina. Nenhuma espécie da abelha Bombus bellicosus, a popular mamangava, foi encontrada. O inseto já foi abundante no sul do país até a década de 1990 e é polinizador de diversas culturas agrícolas, como o tomate, a berinjela, a gabiroba, o feijão, a castanha-do-pará, o maracujá-amarelo e doce, entre outras. “As principais causas que atribuímos à extinção local dessa espécie é a elevada taxa de destruição das áreas naturais devido ao avanço da agricultura e em razão da urbanização acelerada, além de mudanças no clima, que tornaram algumas regiões mais ao norte, como o Paraná, por exemplo, menos adequadas para a Bombus bellicosus”, ressalta a bióloga Aline Martins, que participou da pesquisa encabeçada pela Universidade Federal do Paraná.

A exportação de mel brasileiro também tem sofrido diretamente com o problema. Em 2009, foram colocadas no exterior, aproximadamente, 26 mil toneladas, volume que despencou para 16 mil toneladas em 2013. “Acredito que tenhamos fechado o exercício passado com a venda internacional de pouco mais de 22 mil toneladas”, relata Constantino Zara Filho, presidente da Associação Paulista de Apicultores Criadores de Abelhas Melíficas Europeias (Apacame). Ele afirma que o Brasil amarga uma produção estagnada há anos, com a oferta média anual de 40 mil toneladas, longe, portanto, dos maiores do setor em escala mundial. “Mas temos potencial para produzir 220 mil toneladas de mel todos os anos”, garante. Zara Filho conta que apicultores paulistas têm reclamado da mortandade de suas colônias em regiões próximas a lavouras de laranja e cana-de-açúcar, onde há a aplicação aérea de inseticidas. “Apenas em agosto, 700 colmeias foram perdidas”, informa. Em Leme, cidade do interior paulista e a 190 quilômetros da capital, foram dizimadas 200 colmeias desde o início do ano, segundo a associação dos criadores locais.

Aluguel de colônias

Sabemos que, de acordo com dados de um relatório da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA, na sigla em inglês), (o mesmo estudo usado para embasar o banimento, até 2015, dos neonicotinoides), a polinização contribui com € 22 bilhões para a agricultura do continente, mas foge do nosso conhecimento o valor econômico da transferência do pólen de uma planta para a outra realizada pelas abelhas em nosso país. O trabalho desses pequenos seres produtores de mel não é levado em conta como fator de produção na agricultura e mesmo na conservação dos ecossistemas silvestres.

Autora da pesquisa “Valor Econômico da Polinização por Abelhas Mamangavas no Cultivo do Maracujá-amarelo”, patrocinada pela Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, a professora Patrícia Fernanda da Silva Pereira Vieira, mestre em economia aplicada e docente na Faculdade Santa Rita (Fasar), em Novo Horizonte (SP), acredita que o Brasil perde em não precificar a contribuição das abelhas. “O valor econômico do serviço de polinização pelas abelhas mamangavas foi estimado em R$ 14.686,02 por hectare, em valores de 2007, para os três anos de cultivo do maracujá-amarelo. Esta estimativa evidenciou o quanto os produtores rurais entrevistados deixavam de incorrer em custos com a transferência manual do pólen, com salários e encargos sociais, quando se beneficiavam gratuitamente da polinização natural”, ela salienta.

Alguns produtores, porém, já se deram conta das vantagens da contratação dessas pequeninas operárias para suas lavouras. A Renar Maçãs, de Fraiburgo, em Santa Catarina, uma das principais cultivadoras da fruta no país, comemora a produtividade de 51 toneladas por hectare, bem maior que a média nacional, que é de 30 toneladas. O zum-zum das abelhas nos seus pomares foram, segundo Henrique Roloff, diretor financeiro da companhia, determinantes para a obtenção desse resultado. “A macieira depende de polinização cruzada. Então locamos, há oito anos, colmeias para esse fim”. A Renar utiliza de três a quatro colmeias em cada um dos 757 hectares destinado ao cultivo, num custo anual de R$ 170 mil.

“É melhor sempre contratar o trabalho de pessoas especializadas, assim cada um cuida melhor do seu negócio”, observa, há 3,5 mil quilômetros de distância, o engenheiro agrônomo Francisco Vieira da Costa, da Brazil Melon que também aluga colônias para o cultivo de melão e melancia na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Com três fazendas que, juntas, totalizam 650 hectares, Costa foi além de apenas alugar abelhas, contratando uma consultoria especializada no manejo dos enxames. “Usamos cinco colmeias por hectare, colmeias grandes, com 50 a 60 mil abelhas cada”.

O consultor da Brazil Melon é Raimundo Roberto Filho, presidente da Cooperativa de Criadores de Abelhas Melíferas do Ceará (Coopermel) e diretor técnico da Empresa Apícola do Nordeste, sediada em Pacajus, naquele estado. Há 25 anos cuidando do manejo das abelhas, Roberto Cariri, como gosta de ser chamado, passou a ser convidado por empresas da região de Mossoró, mais importante polo de produção de melão do país, para cuidar dos enxames que estavam desaparecendo. “Em algumas fazendas o porcentual de perda de colmeias era da ordem de 91%, mas conseguimos reduzir esse índice para 4,5%”, afirma.

Roberto Cariri não apenas loca abelhas de seu apiário, mas presta toda uma consultoria de gestão apícola, visitando colônia por colônia com sua equipe. “Meu negócio não é a polinização, mas eu entendo de abelhas”, resume, enumerando cuidados que se deve ter com os bichinhos, como, por exemplo, sombreamento, água potável para os enxames, proteção contra os predadores naturais e uso consciente de defensivos agrícolas. E, mesmo em tempos de seca no sertão, que já duram três anos, o número de colmeias vem sendo preservado.

Porém, tudo isso não teria serventia para seus clientes caso ele não conseguisse comprovar na prática a eficácia de seu método. “É quando o melão chega ao packing (fase de embalagem). Lá fica comprovado a uniformidade, a quantidade, o número de sementes polinizadas dentro do fruto, o Brix (índice de açúcar) e a grande redução do refugo. De cada cem caixas de melão produzidos pelas empresas para as quais presto consultoria, apenas três ficam para o mercado interno”.

O sucesso no trato com as abelhas fez com que Roberto Cariri fosse convidado a prestar assessoria em outros pontos do país e até na Europa, na cultura do morango. “Estamos vivendo um grande momento, o das alianças. Ganham os produtores e ganhamos nós, que preservamos os enxames. É a polinização de resultados”, ele comemora.