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Cultura e periferia

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


As  intensas mudanças ocorridas na periferia de São Paulo nos últimos 20 anos têm repercutido nas políticas culturais do município e na ascendente formação de coletivos de arte. Diante disso, qual o impacto causado pelas produções culturais e artísticas? De que forma coletivos artísticos podem transformar a realidade de uma região? Analisam a questão o professor e assessor de Cidadania Cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo Renato Souza de Almeida e o sociólogo Tiarajú D’Andrea.


Cultura de periferia em movimento
por Renato Souza de Almeida


Com a significativa ampliação do processo de urbanização no Brasil nas últimas décadas é possível notar, em cidades de grande e médio porte, a formação de extensas regiões periféricas, distantes do centro histórico e comercial nesses municípios. Em geral, essas regiões são ocupadas por trabalhadores de baixa renda, migrantes ou filhos de migrantes. E, por vezes, chamam atenção por concentrar altos índices de criminalidade ou pelas formas de organização de seus moradores em ações reivindicatórias. No entanto, sobretudo nas duas últimas décadas, outro aspecto vem atraindo olhares de todos os lados para as periferias brasileiras: a produção artístico-cultural desses moradores.

Nos anos 1990, para além da cidade de São Paulo, onde surgiu, o movimento hip-hop influenciou toda uma geração juvenil, principalmente moradora das regiões periféricas das grandes cidades. Essa influência se deu pelas letras de suas músicas, pelas vestimentas, pela representação artística de suas realidades... O movimento, juntamente com outras expressões culturais produzidas nesses locais, contribuiu para o surgimento de uma intensa produção cultural nas periferias desde a virada do milênio até os dias de hoje.

A chamada cultura periférica ou arte de periferia é composta de um conjunto de ações, tais como saraus com poetas e escritores moradores desses bairros, produções de audiovisual, músicas, grafites, danças, cortejos e batucadas, que apontam para outro imaginário simbólico desses locais. Em São Paulo, por exemplo, há mais de uma década, diferentes ações culturais que acontecem nas periferias têm-se caracterizado por um novo movimento político na cidade, tamanha a força dessas produções culturais, protagonizadas, sobretudo, por jovens. Trata-se de produções que acontecem, na maioria das vezes, em espaços públicos: praças, ruas, centros culturais, bares etc. Não é uma arte que “tira o jovem da rua”, mas que o coloca na rua, no centro da disputa pelo espaço público.

Há uma série de aspectos comuns nas periferias. Geralmente, esses bairros distantes do centro têm população composta de negros, migrantes, indígenas etc. Essas identidades se fazem presentes nas produções culturais, seja de forma estética ou na ética que as orienta. Assumir-se como “periférico” é assumir uma identidade que abarca esse conjunto de realidades. E, vale dizer, a condição de classe também é algo bastante relevante e presente nesse complexo identitário. A palavra periferia remete, quase automaticamente, a uma referência de onde estão localizadas as classes populares de uma dada cidade, mesmo que, muitas vezes, encontre-se uma pequena burguesia nessas regiões. Assumir-se periférico é assumir politicamente pertencer à classe trabalhadora e um conjunto de outras identidades tidas como “excluídas” ou “marginalizadas”. E a arte produzida a partir desse referencial é reveladora dessa realidade. Ela é arte vivida. Representa a vida, denuncia e ressignifica essa mesma vida. Por isso, nesse tipo de produção cultural não cabe a classificação de uma “arte pela arte”, porque ela é sempre arte comprometida com a realidade a qual se vive. Esse compromisso não é doutrinário ou ideológico, mas é conteúdo obrigatório nessas produções.

Não é muito tranquilo para um jovem morador da periferia assumir-se como “periférico”, pois essas áreas costumam ser rotuladas como violentas, paupérrimas, ‘rurais’ (num sentido bastante pejorativo do rural, pois estão no perímetro urbano mas não dispõem dos recursos e serviços que o restante da cidade usufrui) etc. A arte periférica produzida nas últimas décadas vem contribuindo para que se atribua um sentido positivo (e político!) à palavra “periferia”. Algo que era motivo de vergonha e omissão tornou-se orgulho e autoestima, sobretudo, para muitos jovens dessas regiões. Ao tratar, por exemplo, da afirmação da negritude – denunciando o racismo presente na violência policial ou no conjunto da sociedade – ou das condições de vida das comunidades, a subjetividade dos jovens que produzem essa arte se altera. E por conta do que fazem, autointitulam-se cineastas, poetas, atores etc... Esse reconhecimento não vem de uma titulação universitária, da grande mídia ou de quaisquer instituições exteriores, mas de uma prática reconhecida por esses próprios produtores, por seus coletivos e por suas comunidades. Com isso, esse jovem morador fazedor de arte também se refaz. Reposiciona-se no mundo, nos caminhos de sua identidade. Essa arte contribui para que ele perceba a condição na qual está inserido, mas de forma bastante diferente daquela veiculada pelos estereótipos.

Para além das transformações no plano subjetivo desses produtores, é importante perceber as implicações que a cultura periférica vem provocando nas comunidades e nas políticas públicas. Uma característica fundamental desse tipo de produção artística é que as ações acontecem, sobretudo, de forma coletiva. Dificilmente, a ação se esgota no trabalho de um único artista. Geralmente, ele está vinculado a algum grupo, coletivo ou rede. São muitos os relatos de ações culturais desenvolvidas por coletivos periféricos que contribuem para transformar pontualmente as realidades de suas comunidades. Desde o cinema no campo de futebol, o sarau de poesia no boteco, a música estranha na praça, ao circo no barracão abandonado pela municipalidade, a ação cultural nas periferias tem provocado o poder público local a promover melhorias, como iluminação e reformas de vias públicas, e execução de outros serviços que o bairro carecia, como saúde, educação, a criação de centros culturais ou casas de cultura...

As diversas redes que se formaram nas periferias da metrópole paulistana (muitas, inclusive, em contato permanente com coletivos de outras capitais) vêm cada vez mais exigindo políticas culturais na cidade que promovam essa arte, seja por meio de leis e programas de fomento ou exigindo a criação de equipamentos culturais nas regiões mais afastadas do centro. Diversos estudiosos e pesquisadores da cultura periférica a apontam como um dos novos movimentos sociais e políticos de maior força na Pauliceia neste novo milênio. A compreensão da cultura como um direito ainda é um desafio para o poder público e toda a sociedade brasileira. E o direito à cultura e à cidade – a luta por uma cidadania cultural – tem sido o ponto central de reivindicação dessas redes e coletivos.


“A arte periférica produzida nas últimas décadas vem contribuindo para que se atribua um sentido positivo (e político!) à palavra ‘periferia’. Algo que era motivo de vergonha e omissão tornou-se orgulho e autoestima para muitos jovens dessas regiões”

Renato Souza de Almeida é mestre em Ciências Sociais, assessor de Cidadania Cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e professor da FAPSS/SC – Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano


 

Por que a periferia foi fazer arte?
por Tiarajú D’Andrea


Um dos acontecimentos mais importantes ocorridos nas periferias paulistanas nos últimos 20 anos foi o aumento considerável de coletivos e indivíduos que passaram a produzir arte nos bairros mais empobrecidos da urbe. De fato, os bairros populares sempre foram férteis em manifestações culturais. A confluência dessa característica histórica com algumas situações específicas da década de 1990 fez com que aumentasse a quantidade e se modificasse a forma dessa produção. Hoje, colorindo os corações e denunciando a realidade, a periferia produz uma profusão de saraus, comunidades do samba, cineclubes, produções audiovisuais, grupos de teatro, grupos de dança, literatura marginal, posses de hip-hop, dentre outras atividades culturais e artísticas. Mais do que constatar o fenômeno, tentaremos neste breve texto entender por que esse fenômeno ocorreu em um dado tempo histórico.

No Brasil, a década de 1980 se caracterizou pelo fim do regime militar e pela mobilização de diversos movimentos sociais que buscavam democratizar o país e conquistar direitos sociais. Nesse bojo, foi promulgada a Constituição de 1988 e em 1989 houve a primeira eleição direta para presidente depois de décadas.

Aprofundando a crise econômica dos anos anteriores, a década de 1990 se caracterizou pelo aumento considerável do desemprego e pela privatização de serviços públicos. Como se não bastasse, e resultante dessa crise, as periferias de São Paulo entravam em um ciclo de pobreza e violência. Os homicídios se multiplicavam e a desconfiança pairava entre vizinhos, preocupados com a violência entre jovens, com a violência estatal e com a violência paraestatal. O melhor retrato artístico desse período é um CD dos Racionais MC’s intitulado Sobrevivendo no Inferno (1997), uma crônica cantada de um tempo de desesperança. Naquele momento, a periferia necessitava buscar saídas para o labirinto histórico em que se encontrava. A primeira tarefa era manter-se vivo.

Nesse contexto de pobreza e violência, incentivar a produção artística e manifestações culturais foi uma das respostas encontradas por essa população para aliviar seu sofrimento, criar coesão social e possibilitar um futuro. Desse modo, tentaremos esmiuçar agora cinco motivadores de por que a periferia foi fazer arte:

Arte como pacificação – Esse motivador se expressa na tentativa de utilização dos espaços comuns como forma de fomentar a socialização e a coesão de indivíduos amedrontados pela violência. A arte também teria um efeito humanizador em um contexto de estigmas e baixa autoestima. Produzir arte fez com que o morador da periferia se sentisse vivo.

Arte como sobrevivência material – Em um contexto de pobreza, a produção artística foi uma forma de auferir renda sem necessitar inserir-se em um mercado de trabalho com alto grau de exploração e que paga baixos salários, e ao mesmo tempo possibilitou evitar atividades ilícitas como forma de acesso à renda. Na década de 1990 começavam a proliferar os editais públicos e privados que passaram a financiar a produção artística. O acesso às novas tecnologias propiciou produções independentes.

Arte como valorização do local – Valorizar o local por meio da produção artística se deu pela necessidade de organizar atividades coletivas em um contexto de desconfiança entre vizinhos. Em paralelo, a valorização da produção cultural dos bairros populares auxiliou na luta contra estigmas e preconceitos. Por fim, realizar atividades no próprio bairro de moradia diminuía a dependência com relação ao centro da cidade.

Arte como participação política – Na década de 1990 começava-se a esboçar uma descrença com relação às instituições políticas. Essa descrença se aprofundou com o passar dos anos, chegando até nossos dias. Nesse quadro, fundar coletivos foi uma forma de se organizar em meio à crise dos partidos e de denunciar a realidade por meio da produção artística.

Arte como humanização – Em um contexto de múltiplas violências, sejam elas ocasionadas por homicídios ou por preconceitos sociais, a produção artística serviu e serve para humanizar uma população, para mostrar-lhe que está viva e para aumentar a autoestima e a confiança em si mesma.

Nos últimos anos, processos de redistribuição de renda em nosso país tiraram milhões de brasileiros da miséria. Especificamente no caso da cidade de São Paulo, o número de homicídios começou a baixar desde o ano de 2004, e existe uma série de explicações para o fenômeno. No entanto, a luta contra a invisibilidade e por reconhecimento público se deu por ação dos próprios moradores da periferia, que por meio da produção artística cavaram uma das mais importantes trincheiras dessa batalha. Em vez de “mudar da periferia”, essa população passou a “mudar a periferia”, tornando-a um local mais habitável, mais aconchegante, pressionando o poder público a cumprir suas obrigações e denunciando a desigualdade social do nosso país. A arma utilizada foi a palavra. A receita a ser seguida foi a própria imaginação, em um tempo em que qualquer receita já não dá conta de explicar ou mudar a realidade. Nas camisetas “100% zona leste” ou “100% zona sul” expressou-se a reivindicação de valorização de territórios. É a estima contra o estigma. É o orgulho das potencialidades contra a vergonha das violências.

Auxiliando na modificação material das periferias, ao passo que lutava por afirmação e reconhecimento, a população da periferia, muitas vezes por meio da produção artística e cultural, modificou a representação sobre a própria periferia. Antes com um significado restrito a pobreza e violência. Hoje caracterizada por sua potencialidade criativa, sem negar a existência de inúmeros problemas.

Denominamos sujeito periférico àquele indivíduo que, por meio do reconhecimento de pertencer a uma localidade peculiar de nome periferia, atua, seja por meio da arte ou da mobilização política, ou das duas, para a melhoria das condições de vida nos bairros populares e para a distribuição da riqueza em uma cidade marcada pela segregação socioespacial.

Por fim, essa geração que pegou para si o termo periferia e o assumiu, fazendo da arte um instrumento para a sua própria constituição como ser social e como ser humano, pegou para si também a tarefa de contar a própria história, sem mediadores, sem aqueles que queriam fazer para a periferia, mas não com a periferia. Ter a possibilidade de contar a própria história foi uma conquista e faz parte de um processo de edificação da própria libertação, construído a sangue, suor, lágrimas e poesia.


“Nesse contexto de pobreza e violência, incentivar a produção artística e manifestações culturais foi uma das respostas encontradas por essa população para aliviar seu sofrimento, criar coesão social e possibilitar um futuro”


Tiarajú D’Andrea é sociólogo e músico. É autor da tese de doutorado “A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo”, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP, 2013).