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Sílvio Fiorani

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


A Paixão segundo Judas
fragmentos de um evangelho apócrifo


Dado que muitos já se puseram a narrar os fatos que se cumpriram entre nós, a mim também me pareceu lícito proceder ao registro do que aconteceu nos dias em que o Rabi exerceu o seu ministério. Ora, vivia em Nazaré uma virgem chamada Maria, que estava comprometida em casamento com José, um carpinteiro bem mais velho que ela, mas, antes que coabitassem, ela percebeu que estava grávida. José, não querendo denunciá-la publicamente, resolveu repudiá-la em segredo, mas, segundo o seu próprio testemunho, um anjo lhe disse em sonhos que a gravidez de Maria havia sido obra do Espírito.
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Reinava Herodes quando o menino nasceu. Eis que vieram os magos do Oriente perguntando: “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Céu e viemos homenageá-lo”. Sabendo disto, Herodes alarmou-se, e com ele toda Jerusalém. Mandou então chamar os magos e lhes disse que, se encontrassem o menino, o avisassem, pois queria também homenageá-lo. Porém, advertidos em sonhos para que não voltassem a Herodes, os magos regressaram à sua terra por outro caminho. Percebendo que fora enganado, Herodes mandou matar, em Belém, todos os recém-nascidos. Avisados pelo Anjo do Senhor, José e Maria fugiram para o Egito com a criança. Só voltaram quando Herodes morreu.
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Antes de iniciar seu ministério, ele foi batizado no Rio Jordão por João, que foi depois seu opositor. O Rabi viera para o que era seu, e os seus não o receberam. Nem a família o reconheceu como se devia. Depois de feitas as primeiras curas, tendo ele se dirigido à casa de Pedro, muita gente o seguiu até ali, e não o deixava por causa das curas que fazia. Houve afinal necessidade de que a multidão se alimentasse, e não havia comida para todos; e a inquietação tomou as pessoas. Quando sua mãe e seus irmãos souberam do que acontecia, saíram para detê-lo, dizendo: “Ele está louco”.
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Ele disse que o Reino de Deus era semelhante ao campo de um lavrador. Ele lança a semente sobre a terra e a semente germina e cresce sem que ele saiba de que modo, pois a terra por si permite que a semente frutifique; e quando o fruto está pronto, o lavrador vai com a foice para a colheita. Ele dizia também que o Reino era semelhante ao fermento que alguém toma e esconde em três medidas de farinha e aguarda que tudo fique fermentado. Lhes falava, pois, por meio de parábolas, que, em particular, explicava aos discípulos. Estes queriam sinais, queriam entender tudo. É que para eles o trigo só podia ser trigo; o joio, apenas joio; o fermento, não mais que fermento. A gente simples do campo sabia que não era assim, e entendiam muito bem tudo o que o Rabi dizia.
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A ele nunca lhe pedi nada em particular porque seria impróprio. Ao Cristo, que estava nele, haveria eu de pedir algum bem? Isto seria, do mesmo modo, impróprio. Eis que ele dissera: “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós; eu sou a videira e vós os ramos; estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós”. Eu o compreendi e o segui e o obedeci até o último dia, pois assim como eu estava nele, ele estava em mim. E eu, afinal, disse-me a mim mesmo que seu sacrifício seria o meu sacrifício.
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A árvore da vida do Paraíso era a videira. O Messias é como a videira, e a vinha é o Reino de Deus. “Eu sou a videira e este é meu sangue”, dissera Ele ao levantar o cálice da oblação. “Bebei todos, eis o sangue da nova aliança que nos redime.” O sangue da videira é o vinho. Ele dissera ainda: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor; permanecei em mim e eu permanecerei em vós; o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós não podeis tampouco dar fruto se não permanecerdes em mim”. Palavras do Cristo.
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Eu o soube por Ele: “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há é o senhor do céu e da terra, e não habita em templos feitos por mãos humanas, mas no coração do homem. Nem é servido pelos homens, como se necessitasse de alguma coisa, porque é Ele quem dá a todos a vida, respiração e tudo mais. É nele que temos a vida, o movimento. Nós todos pertencemos à sua estirpe tanto quanto o ramo pertence à videira.
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Contou-nos esta parábola: “Um homem tinha dois filhos, e o mais novo pediu que ele lhe desse a sua parte da herança; e o pai assim o fez. O jovem partiu, então, para um lugar distante e ali dissipou sua fortuna em meio a uma vida de devassidão. Sobreveio ao lugar uma grande fome, e ele começou a passar privações, e foi empregar-se com um homem que o pôs a cuidar dos porcos, o que o fez pensar na casa paterna e no convívio que perdera: “Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, enquanto eu estou quase a morrer de fome”, considerou. Decidiu, então, que regressaria e que diria ao pai: “Pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser teu filho. Deixa-me viver em qualquer canto de tua casa; mesmo a condição do mais humilde de teus empregados me servirá”. E partiu de regresso. O pai o viu de longe, correu ao seu encontro e o abraçou e o cobriu de beijos. E o filho disse, com efeito, o que guardara em seu coração: “Pequei contra o céu e contra ti”. Mas o pai não o julgou; antes, mandou que os servos trouxessem a melhor túnica para o filho, que lhe pusessem um anel no dedo e sandálias nos pés, e que apanhassem o novilho cevado: “Comamos e festejemos”. O filho mais velho, que estivera no campo, ouviu, ao aproximar-se, que havia música e dança, e estranhou, mas um servo lhe disse: “Teu irmão voltou, e teu pai festeja porque o recuperou com saúde”. O mais velho indignou-se, não quis entrar. O pai, sabendo-o ali, saiu e suplicou-lhe que entrasse; mas ele lhe disse: “Sabes bem há quanto tempo te sirvo e observo a ordem da casa e não transgrido um só dos teus mandamentos; nem por isso me deste um cabrito sequer para que eu banqueteasse com meus amigos; no entanto, para esse que dissipou seus bens com meretrizes, tu matas o novilho cevado. Mas disse o pai: “Estiveste sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; era justo, porém, que houvesse festa porque teu irmão estava perdido, e foi reencontrado, estava morto e reviveu”.

Foi o que nos contou o Rabi. Todos os presentes entenderam a parábola quanto à sua evidência, mas não o seu outro sentido, que versava sobre a ressurreição. Para o pai, foi como se seu filho, antes morto para seus olhos e para a vida plena, tivesse iniciado uma nova existência. Era assim que as pessoas mais simples entendiam a ressurreição, em contradição com os discípulos, que a tinham como um regresso do mundo dos mortos.
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Tomando os doze à parte, falou de novo sobre o que aconteceria em breve com ele: que seria entregue aos sacerdotes e estes o condenariam à morte e o entregariam aos gentios para ser supliciado e morto, mas que ressuscitaria. Ninguém, no entanto, compreendeu aquele discurso, pois ninguém atinava que era o Cristo eterno quem se expressava através do Rabi. Era um discurso obscuro até para os gregos. Morto, ele não morreria. Ele, porém, tinha já em seu coração o projeto de entregar o seu corpo ao destino da carne, bem como o projeto de convocar-me para o seu sacrifício.
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Não fiz mais que cumprir a escritura que dizia: “O que come o pão comigo, este me entregará”. Deu-me o bocado de pão, e disse: “Tomai e comei, em memória de mim”. Ao comer o pão, estremeci. “Faz depressa o que tens a fazer”, ele disse. Eu O obedeci. Como ramo da videira, entreguei-me à escuridão da noite e ao meu destino.
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Eis o salmo que me vale: “Todos conspiram contra mim; pelos inimigos que tenho, já me tornei um escândalo; para meus vizinhos, abjeção; caí no esquecimento como um morto reduzido à condição de um vaso quebrado. Só no Senhor a minha alma repousa; o Cristo é meu Senhor, minha rocha; jamais vacilarei; nele estou, ele está em mim. Até quando vós vos lançareis sobre um homem, todos juntos, para derrubá-lo, como se fosse uma parede inclinada, um muro prestes a ruir?”


Sílvio Fiorani é autor de O Paradoxo da Serpente (Record, 2013), que tem por subtítulo “Cristianismo, a fé usurpada”.
Publicou romances e contos, entre eles O Evangelho Segundo Judas (Record, 2014)
e Investigação sobre Ariel (Girafa, 2005), Prêmio Machado de Assis de melhor romance de 2005