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Riachão

Crédito: Leila Fugii
Crédito: Leila Fugii


Com 92 anos, um acervo de mais de 500 músicas e memória invejável, Riachão revela passagens inusitadas de uma vida dedicada à canção


Redescoberto como um dos grandes valores da música brasileira, Clementino Rodrigues, o Riachão, nasceu e ainda mora no bairro do Garcia, em Salvador, na Bahia. Faz músicas baseadas no dia a dia que impressionam pelas letras espertas e sacadas inusitadas que compõem uma amostra de sua qualidade como sambista.

Com quatro discos gravados, Mundão de Ouro (Comando S Discos, 2013); Humanenochum (Produção Independente, distribuído pela Sony Music, 2000); Samba da Bahia (Selo Fontana LP – Riachão, com Batatinha e Canela, 1973) e Sonho de Malandro (Produzido para o Desenbanco, LP, 1981), vem trabalhando para registrar o seu baú de canções. Auxiliado por seu sobrinho Jacson Paim e pela produtora Vania Abreu, em parceria com o selo Comando S, está recuperando um material que antes só vivia na memória. Por isso é necessário gravar, transcrever, ordenar e organizar sua produção. Até agora, foram registradas 74 músicas inéditas.
Acompanhe o depoimento descontraído que o sambista concedeu à Revista E.


As composições surgem

Sempre disse aos amigos que não pego na caneta para compor. Esse é um dom que Deus me deu. Não sei há quantos anos estou nessa vida e foi sempre assim. As músicas aparecem!

Tive outras profissões, mas sempre cantei. Trabalhei como contínuo em banco e antes do banco era rádio, aliás, antes de tudo isso, sou alfaiate. Trabalhei nas grandes alfaiatarias da Bahia e nesse meio sempre cantei. Tenho impressão de que nasci cantando, porque, na minha mocidade, minha mãe dizia que a parteira comentou quando eu nasci: “Maria, este menino é diferente”.

Bom, soube disso depois que cresci e fiquei imaginando o porquê dessa ideia. Hoje em dia tenho a impressão de que nasci cantando mesmo. E a minha vida é essa. É alegria e é cantar.

O romântico

Gosto demais de músicas românticas. Eu tenho uma música chamada Somente Ela, em homenagem às mulheres. Porque eu tenho pra mim, e digo a realidade, estou aqui por causa de Deus e da mulher. Ela é a razão de ter milhões em cima desta terra, depois de Deus.

Lá no Rio de Janeiro, meu grande amigo João Soares disse: “Riachão, as mulheres gostam de você, eu quero saber qual o segredo dessa música, Vá Morar com o Diabo” (regravada pela cantora Cássia Eller em março de 2001). 

Respondi que sou muito ligado ao amor das mulheres, reconheço que estou aqui por causa de Deus e delas. Agora, sobre a composição dessa música, ela é minha, mas não gosto dela, porque tem um trecho que maltrata a mulher. Foi num caso, com a turma comendo e bebendo em um bar da Bahia e um daqueles amigos me chamou de lado e começou a me contar a vida dele e da gata dele. Fiquei escutando com todo o respeito e dedicação de amigo, ouvindo que ela não queria nada. Não queria cozinhar, não queria lavar. No fim do bate-papo, ele virou e disse: “Quem é que aguenta isso? Ah, vá morar com o diabo!” E foi embora. Na mesma hora, Jesus mandou a música. Gosto da composição, mas dessa parte eu não gosto. A mulher não merece essa frase, “vá morar com o diabo”.

As minhas músicas sobre as mulheres são românticas, como: Eu gosto dela, amigo / pode crer / amo bastante / tenho o maior prazer / Meu coração faz de tudo para não te perder (canta). Já a minha ligação com Vá Morar com o Diabo é diferente do que com outras canções.

Encontro tropicalista

A história com o Caetano Veloso e o Gilberto Gil é de quando eles voltaram do exílio, em 1972, e resolveram se juntar com a equipe do Rio de Janeiro e vieram para a Bahia procurar uma música que se adequasse a essa fase, depois do período que viveram fora do país por causa da ditadura militar. Prepararam um convite para os malandros da Bahia. Muitos colegas foram cantar, mas tem uma passagem desagradável. Pediram que me avisassem, e os meus colegas não me deram o recado: era para eu estar no dia da reunião com os malandros para cada um cantar a sua música para a equipe ouvir. Nesse tempo, era contínuo no banco. Meu chefe, o doutor Gadelha, disse que eu tinha esnobado o convite, mas expliquei que não sabia de nada, não havia sido avisado. Subimos ao gabinete dele, que fez um bilhete mostrando o local. No sábado, tomei um bocado de cachaça e fui para lá.

Quando cheguei ao endereço, todos me abraçaram com aquela alegria. Pegaram o violão e eu cantei vários sambas, mas, quando chegou a hora de Cada Macaco no Seu Galho (Chô Chuá), a equipe toda estava sentada, e eu cantava e olhava para eles. Dali a pouco, vejo todos com o sinal de joia, suspendendo o dedão. Aí, ouvi um grito: “É essa, malandro. É essa e não tem outra”. A música foi gravada e escolhida para representar a entrada de Caetano e Gil no nosso país. Foi o que aconteceu. Organizou-se tudo e eles gravaram.

Da Bahia para São Paulo

Há uma passagem na minha vida com São Paulo... Quando ainda trabalhava em rádio na Bahia (anos 1950) e houve um passeio para cá. E, como em toda a minha vida, Jesus arranjou uma música. A rádio Sociedade Bahia chegou à cidade com o ônibus cheio. Nesse tempo, a cidade não tinha o envolvimento com a arte que tem hoje. São Paulo, segundo a história do povo, era só trabalho, nada de música.

Logo fiz um samba: Pela primeira vez que entrei em São Paulo da garoa / Constatei que a terra é boa. / É ou não é? E o refrão foi a confusão do outro dia com a imprensa, porque eu cantava: “São Paulo tem garoa, café e é pai de Pelé”, que estava no auge naquele tempo. Uma zoadeira só na noite de São Paulo com esse ônibus.

No outro dia, a imprensa botou pra quebrar, falou do ônibus fazendo zoada, mas essa é a nossa vida artística. Pelé tomou conhecimento e me mandou uma camisa número 10 autografada que eu guardo em casa até hoje.


“Tenho impressão de que nasci cantando, porque, na minha mocidade, minha mãe dizia que a parteira comentou quando eu nasci: ‘Maria, este menino é diferente’.”